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Edição de Sábado: Em nome delas

Em 1993, recém-formada em Direito, filha do então secretário de Segurança Pública do Estado de São Paulo (e futuro presidente da República), Luciana Temer decidiu prestar concurso para delegada. Aprovada, tornou-se titular da delegacia de Defesa da Mulher de Osasco, na Região Metropolitana de São Paulo. Embora já tivesse tido alguns momentos de brutal contato com a bestialidade do mundo, considerava-se fruto de uma bolha que flutua sem grandes percalços na elite econômica do país. Foi ali, nos cinco anos diante da “vida como ela é”, como define, que Luciana compreendeu a dimensão da violência contra mulheres, de todas as feições, classes e origens. Luciana passou anos na vida pública, sempre lidando com a extrema vulnerabilidade social. Foi secretária de Esporte, Lazer e Juventude do Estado de São Paulo na gestão de Geraldo Alckmin, no período em que a Febem se tornou Fundação Casa. Depois, foi secretária de Assistência Social de Fernando Haddad, na capital paulista, e ajudou a tocar o programa De Braços Abertos, na Cracolândia.

Por isso, quando foi convidada pelo filantropo Elie Horn para criar um instituto que se preocuparia com violência sexual contra crianças e adolescentes, Luciana hesitou. Considerava uma causa menos expressiva do que a violência contra mulheres, que achava que era estrutural e testemunhara de perto. “Era ignorância minha. Mas não só. A ignorância sobre esse tema é social. E hoje entendo o contrário: a violência estrutural é contra as crianças”, ela conta na sede do Instituto Liberta, do qual é diretora presidente, em São Paulo. A entidade foi criada em 2017. Atua na comunicação e conscientização sobre esse tema tão árido e doloroso. Age em parceria com diversos interlocutores, entre eles o Fórum Brasileiro de Segurança Pública que, provocado por Luciana, passou a identificar o estupro de menores de 14 anos em suas estatísticas a partir 2019.

Diante da comoção em torno do PL 1904, que propõe criminalizar a mulher que aborta a partir da chamada “viabilidade fetal”, presumida em 22 semanas de gestação, e puni-la com uma pena maior do que aquela aplicada ao eventual estuprador que causou a gravidez, Luciana lembra o desespero que sentiu ao ver a urgência da tramitação aprovada na Câmara dos Deputados. Mas consegue enxergar uma luz no fato de que esse debate sobre as meninas violentadas, normalmente em seus lares, finalmente ganhou volume na sociedade. Confira os principais trechos da entrevista de Luciana Temer ao Meio.

Como foi essa migração da lida com a violência contra mulheres adultas para aquela praticada contra crianças e adolescentes?
Os dados de violência contra mulher eu conhecia muito bem. Havia algum tempo que o Fórum Brasileiro de Segurança Pública já vinha chamando atenção para o número absurdo de violência sexual contra mulheres. Fizemos uma provocação a eles, nossos parceiros, questionando quem é essa mulher. Então, em 2019, o fórum conseguiu separar os dados de estupro dos de estupro de vulnerável. A diferença na tipificação criminal existe. Mas os boletins de ocorrência não separavam, eles fizeram isso na unha. O estupro de vulnerável é a relação com o menor de 14 anos. E independe de consentimento. As delegacias de polícia simplesmente não faziam essa distinção. Quando o fórum fez, pudemos enxergar que 53,7% de todos os estupros registrados no Brasil eram contra menores de 13 anos. Mais da metade. E esse número vem subindo ano a ano. Nos dois últimos anos, o fórum me convidou para fazer a análise dos dados de violência sexual infantil. Esse número ficou em 61,4% em 2023. O Atlas da Violência divulgado esses dias mostra que 80% dos estupros no Brasil foram contra menores de 14 anos.

Antes de prosseguirmos, vale explicarmos o que configura um estupro de vulnerável.
Isso é super importante, porque o conceito de estupro mudou em 2009. Antes, falava-se em conjunção carnal. Tecnicamente, isso é pênis e vagina, penetração, e todo o resto era excluído e tipificado como atentado violento ao pudor ou outros crimes. Hoje, estupro é qualquer ato libidinoso, um beijo pode ser enquadrado assim. Há uma sutileza nessa análise quando se pega o recorte de crianças, né? O que é um ato libidinoso com uma criança? O adulto que está fazendo o ato sabe se aquilo é libidinoso. A criança pode sentir ou não. A gente sabe que é ótimo que os pais peguem seus filhos no colo, por exemplo, mas atualmente está se tomando consciência de que é preciso ter algum nível de permissão da criança para alguns contatos físicos. É difícil estabelecer com precisão o limite do ato libidinoso.

Mas fica claro quem são as vítimas, certo?
Sim, a gente precisa entender que quem é majoritariamente estuprado no Brasil é criança e adolescente, é até os 17 anos. Depois dessa idade, cai tremendamente. Veja, não é que combater a violência contra a mulher adulta seja menos importante. De forma alguma. Mas quando a sociedade só consegue enxergar essa imagem da mulher adulta, a gente apaga na verdade a circunstância dessa violência com meninas e meninos muito jovens — e que são a maioria. É como tentar procurar um remédio para uma doença que você diagnosticou errado. Então, quando fazemos essas leis, por exemplo, como a de prevenção do assédio em bares, elas são fundamentais, mas não atacam a maioria esmagadora dos estupros. E note que estupro não é a única forma de violência sexual contra crianças e adolescentes.

Sabemos o perfil dos agressores também?
Bem, primeiro tem uma questão relevante, que é a subnotificação. Um estudo do Ipea mostra que apenas 8,5% desses casos são denunciados. E o Liberta encomendou uma pesquisa para o Datafolha em 2022 sobre o silêncio da violência sexual. Esse levantamento feito no Brasil inteiro, com todas as classes sociais, identificou que 32% dos entrevistados tinham sido vítimas de algum tipo de violência sexual antes dos 18 anos. Desses, só 11% denunciaram e só 26% tiveram coragem de contar para alguém ao longo da vida. Estamos falando de uma coisa muito silenciosa. E quando se perguntava qual era a razão da não denúncia a resposta mais presente era “para não expor minha família”. Isso confirma o dado, também do fórum, de que mais de 70% dos estupros acontecem em casa, praticados por familiares — 44,4% por pais e padrastos. Então, quem é estuprado no Brasil? Preponderantemente, menores de 14 anos, dentro de casa, por familiares.

E em termos da classe social?
Isso é um drama, porque não temos essa identificação no boletim de ocorrência, que é de onde o fórum extrai seus dados. Mas vou dizer uma coisa com tranquilidade. Quando eu era delegada, a sociedade tinha o estereótipo muito forte de que a mulher vítima de violência era preta e periférica. E hoje temos casos como o da Ana Hickmann, da Luiza Brunet. A gente sabe que a violência contra a mulher está em todas as classes sociais. Hoje, quando você olha para violência sexual de crianças, o que está no imaginário das pessoas é a criança periférica, que não tem pai e mãe, que está largada. E não é assim. Tenho certeza disso, porque há sete anos eu falo desse assunto. Em 2022, nós tivemos uma campanha chamada “Agora você sabe", na qual convidamos pessoas adultas que se reconhecem vítima de alguma violência sexual na infância a gravarem um vídeo. Era uma passeata virtual. Conseguimos quase 3.400 imagens. Foi muito emocionante. Tinha gente de todas as classes e depois muitas pessoas vieram contar violências que haviam sofrido. Os estereótipos sociais fazem com que essa questão fique na invisibilidade. A gente sabe que, no Brasil, as questões só incomodam quando chegam na classe média e média alta.

Foi o que aconteceu no caso da violência contra a mulher adulta?
Sim, que, repito, ainda é um problema gravíssimo. Mas os movimentos feministas e a sociedade civil organizada deram consciência dele para a sociedade e começamos a falar disso com uma outra qualidade. Pressionou-se por políticas públicas. Nos últimos 30 anos, houve uma latência, com a Lei Maria da Penha, crime de feminicídio e importunação sexual, cota para mulheres candidatas, Minha Casa, Minha Vida no nome da mulher. Criou-se um arcabouço legislativo inclusive para reconhecer que há vários tipos de violência, como a psicológica, a patrimonial. Com a violência sexual infantil, há a ideia de que é uma coisa que acontece com crianças do Norte e Nordeste ou muito periféricas. Isso está começando a mudar, mas falta muito. Há uma ignorância social sobre o tema.

Como assim?
Veja, na faculdade de Medicina não se discute violência sexual infantil. Os médicos que atendem crianças e deveriam ter um olhar treinado para cuidar disso nunca estudaram o assunto. Pega a faculdade de Direito. Eu dou aula há 30 anos na PUC. Alguém fala sobre violência sexual infantil? Não. No curso de Pedagogia, onde as pessoas deviam ser super preparadas — não só para falar sobre prevenção, mas para identificar casos —, não se fala disso. No curso de Psicologia, fala-se sobre violência, mas violência sexual infantil também é uma coisa que passa. Então, quando abro um portal e vejo logo abaixo da notícia sobre o PL 1904 os dados sobre violência sexual contra crianças e adolescentes, enxergo uma luz para mudarmos isso. Para furar a bolha. O que a gente entende é que a violência sexual infantil é estrutural. Não é residual. A violência contra a mulher adulta é resultado de um processo.

Em que sentido?
O início do processo está aqui: dos 61,4% dos registros de estupro de vulneráveis, 86% são de meninas e 14%, de meninos. O Brasil tem dois bebês nascendo por hora filhos de mães menores de 14 anos. É um dado muito sério. E isso do que se tem registro. Traduzindo, temos o registro de dois bebês por hora que nascem no Brasil filhos de mães menores de 14 anos. Todas estupradas. Ah, mas como você sabe, Luciana? Porque a lei diz que é estupro. Não importa o que eu pense a respeito. É lógico que se você tiver uma relação sexual entre dois adolescentes, namorados, por exemplo, isso atenua. Mas a regra geral da nossa legislação é essa. E tem uma pesquisa do IBGE que mostra que 6 entre 10 mães adolescentes não estudam nem trabalham. Uma outra informação, da Federação das Associações de Ginecologia e Obstetrícia, mostra que uma menina que engravidou na adolescência tem 30% de chance de engravidar de novo no primeiro ano seguido ao parto. Qual é a consequência de crianças que não estudam nem trabalham? Elas não se qualificam para o mercado de trabalho. Vão ficar submetidas ao subemprego, à exploração sexual e à violência doméstica. É uma coisa que se perpetua. Cuidar da violência contra a mulher é muito importante, mas a gente está cuidando dos sintomas, não da doença.

Há outros índices das consequências dessa epidemia?
Tem um financeiro: um estudo do Banco Mundial com a estimativa de que o Brasil deixa de produzir US$ 3,5 bilhões em razão de gravidez precoce, até os 20 anos.

Esse ciclo que se perpetua não reforça o estereótipo de que a violência sexual afeta mais meninas pobres?
Quando eu falo que meninos e meninas sofrem violência sexual, independentemente da classe social, eu não digo que as consequências são as mesmas. Elas são diferentes, porque a menina que sofre a violência sexual na classe média vai ter um bom atendimento psicológico; uma rede de proteção, porque sempre tem uma tia ou alguém que está vendo que aquilo aconteceu e se dispõe a agir. Embora essa rede tenda a silenciar por um constrangimento social, eles ainda podem oferecer ajuda à garota. Agora, imagine essa mulher que foi submetida a violência, teve filho adolescente, arrumou um companheiro e ele abusa da filha dela, mas é o único sustento da casa. Bem, ela sobreviveu, a filha dela vai sobreviver, né? O que eu quero dizer é que, sim, o silêncio é muito diferente nas duas classes sociais e as razões também são. Agora, não raro, nas duas situações a vítima, quando denuncia, é vista como destruidora da família. É ela quem está causando o problema.

Do lado dos abusadores, como é que funciona esse ciclo?
Vou te dar exemplos. Firmamos uma parceria com a secretaria de Administração Penitenciária de São Paulo, e eu fui palestrar sobre violência sexual contra crianças em três presídios. No último, o público foi só de abusadores de crianças. Eram 50 abusadores e eu fiz a mesma palestra que faço nas universidades, nos escritórios de advocacia. Disse que não sabia porque cada um estava ali e nem me interessava, mas que eu tinha convicção de que se eles tivessem entrado em contato, ainda crianças, com informações sobre sexualidade, sobre violências, talvez alguns não estivessem ali. Ao final, um dos presos levantou a mão. “Doutora, a senhora falou muita coisa que eu nunca pensei. Vou contar minha história, a senhora me diz se eu fui vítima de violência sexual ou não." Quando ele tinha nove anos, seu padrasto resolveu que ele tinha de aprender a ser homem. Então, esse menino era obrigado a assistir ao padrasto transando com sua mãe. Isso é uma imensa violência sexual. Talvez o padrasto estivesse acreditando que estava ensinando algo, porque talvez tenha aprendido assim com o pai dele. É por isso que a gente tem de falar sobre o não dito. Bem, desses 50 homens, 21 deram depoimentos para nossa campanha, porque se descobriram vítimas de violência sexual na infância.

Há um componente de machismo importante nisso tudo, evidentemente.
Sem dúvida. Há abusos de meninos também, mas que são interpretados como “sorte” para aquele garoto que inicia sua vida sexual tão precocemente. Num outro caso, o preso, um homem de uns 60 anos, começou o depoimento dizendo que tinha muita sorte de nunca ter sido abusado, mas ele achava que havia sido prejudicado nos estudos, porque, aos 12 anos, dormia no quarto com duas tias mais velhas e transava com as duas. “Eu transava com uma, a outra fingia que estava dormindo, depois trocava. Só que aí eu ficava com muito sono na escola.” Olha a violência. A sociedade não compreende a dimensão de fechar os olhos para isso. Outra coisa, mas pelo outro ângulo. Se você entrar em sites pornográficos e procurar vídeos que tenham a palavra pai, filha, padrasto, vai vir uma enxurrada de conteúdo, coisa com títulos como “Mãe vai trabalhar e pai se diverte com a filha". É uma cultura horrível, e a Eloísa Machado e seus alunos entraram com um processo contra o Pornhub e o Xvídeos para tirar esse tipo de coisa do ar.

O PL 1904 teve o efeito benéfico de colocar tudo isso em debate?
Confesso que me deu uma enorme desespero quando vi essa aprovação do regime de urgência. Nós temos brigado pela educação sexual nas escolas, porque acreditamos em prevenção à violência e em gerar denúncias a partir do ambiente escolar. A escola é um espaço de muita proteção para crianças e adolescentes e é por isso que lutamos tanto para impedir que o homeschooling avance no Congresso. Agora, a educação sexual é essencial para ajudar essa criança a compreender se é vítima. As pessoas tendem a pensar só no extremo, na criança estuprada e morta. E claro que esses casos horrendos acontecem. Só que a maioria da violência acontece de forma “sedutora” e a criança nem sabe o que está acontecendo, não sente aquilo como um ato violento num primeiro momento. É muito delicado dizer isso e corro o risco de ser mal interpretada, mas a criança tem uma sexualidade natural, sem malícia, e quando quem aciona isso é alguém de quem ela gosta, uma pessoa em tese de confiança, ela não tem desconforto inicialmente. E os abusadores sabem disso, eles se aproximam quando percebem uma vulnerabilidade emocional da criança, uma conexão. Pois o PL 1904 atinge justamente essa criança. Mas esse PL não é o único em trâmite no Congresso Nacional. Há outros até mais radicais do que esse, como o Estatuto do Nascituro. Me preocupa também que a saída seja eles conseguirem aprovar esse PL com aumento de pena do estuprador, o que também é uma insanidade, não é a pena que vai resolver o problema da violência sexual.

É possível ampliar esse diálogo para além da bolha progressista?
Tem lugares onde o consenso é possível. Aprendi com o Liberta que a comunicação é uma coisa muito poderosa. “Educação sexual” é um termo que busco evitar nas minhas falas. Prefiro usar “proteção de crianças contra violência sexual” e “sexualidade saudável e responsável” com jovens. Há maneiras de comunicar o assunto para crianças muito pequenas até o ensino médio, adaptando a linguagem para cada fase. Mas a escola tem de chamar os pais e explicar esse material. Quando você faz essa conversa, seja sobre aborto ou educação sexual, as pessoas têm muito medo do que elas não conhecem e têm ideias pré-concebidas.

O que você achou da inação do governo federal para tentar influenciar esse debate no Legislativo?
O governo está pautado nas questões econômicas e fragilizado na luta pelas pautas de costumes. Quando o governo era o do Bolsonaro, você tinha uma oposição muito forte, atenta para tudo aquilo que era tentativa de retrocesso. Só que agora estamos num governo Lula, que precisa aprovar sua agenda econômica no Congresso, disposto a negociar coisas que são “menos importantes". Só que elas não são menos importantes, né? A gente sabe que onde o governo põe as fichas para valer ele tem chance de ganhar. O governo não é super poderoso, não tem varinha mágica, mas tem prioridades — e essa pauta claramente não era uma. Mas para quem elegeu Lula para que esses retrocessos não avançassem muito é frustrante.

Como foi demolido o projeto de lei antiaborto

Parecia dia de ressaca. Mesmo assim, a linha de frente do PL 1409, que compara o aborto feito após 22 semanas de gravidez ao crime de homicídio, arvorou-se na última quarta-feira, no Salão Verde da Câmara dos Deputados, diante de jornalistas, câmeras e microfones. O deputado Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), autor da proposta, investiu nos artifícios e encenações. Sacudiu fetos de plástico no ar, criticou o ministro do Supremo Tribunal Federal Alexandre de Moraes, deu a palavra a Silas Malafaia para que o líder da Assembleia de Deus Vitória em Cristo atacasse o presidente Luiz Inácio Lula da Silva e Janja, a primeira-dama.

O ato, com claque e tudo, ameaçava o plano do presidente da Casa, Arthur Lira (PP-AL), de esfriar o assunto. Lira estava inconformado por ter virado vilão nacional após se comprometer com a bancada evangélica. Queria se livrar da pecha de ter sido responsável por escamotear, em 23 segundos, a aprovação da urgência da proposta – rejeitada, na enquete online da própria Câmara, por 87% das pessoas.

A batalha tinha claramente sido perdida, não só em Brasília, mas em todo o país. No fim de semana passado, manifestações levaram as pessoas de diferentes espectros políticos às ruas para condenar o que já era chamado de PL do Estuprador. O campo progressista, que tem levado surras homéricas nas redes sociais, conseguiu construir um argumento que ecoou para além de suas bolhas.

Para entender como o jogo começou a mudar, é preciso voltar ao dia 17 de maio, pouco menos de um mês antes da aprovação da urgência do projeto de lei. O campo progressista estava acanhado por derrotas recentes no Congresso, mas uma luz brilhou no fundo do poço naquele dia quando o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, concedeu uma liminar suspendendo uma resolução de abril (número 2.378) do Conselho Federal de Medicina (CFM). A norma suspensa inviabilizava abortos previstos por lei desde 1940 – nos casos de estupro, risco à saúde da gestante e, mais recentemente, anencefalia – ao proibir que médicos brasileiros fizessem assistolia fetal, procedimento indolor recomendado pela Organização Mundial da Saúde para garantir que o feto não saia do útero com vida. Atendendo uma ação do PSOL, Moraes alegou “abuso de poder regulamentar” do CFM.

A reação da bancada evangélica foi passional: no mesmo dia, o deputado federal Sóstenes Cavalcante (PL-RJ) apresentou o PL 1904. E os deputados começaram a se articular nos bastidores pela aprovação do regime de urgência. “Eles estavam confiantes e muito certos de que sairiam vitoriosos. Estavam há semanas impondo derrotas importantes ao governo, muito encorajados nas comissões, muito violentos, promovendo verdadeiras baixarias, como as agressões contra Luiza Erundina”, lembra a deputada Sâmia Bomfim (PSOL-SP), líder do seu partido na Câmara. Dias depois, em 4 de junho, o presidente da casa, Arthur Lira, saiu da reunião de líderes com a urgência pautada.

A virada

Às 20h daquele dia 4, o portal G1 publicou a reportagem “Deputados querem acelerar projeto que equipara aborto a homicídio e restringe prática em casos de estupro”. O sinal de alerta estava aceso. Uma hora e um minuto depois, o perfil Central da Política, na rede social X, com 335 mil seguidores, postou a matéria, que àquela altura provocava, a julgar pelos comentários, mais confusão que entendimento. No dia seguinte, o influenciador Luciano Carvalho, de 33 anos, acordou disposto a falar sobre o tema para seus 607,8 mil seguidores no Instagram e no X. Primeiro postou na rede social da Meta; depois, no dia 6, escreveu no X em letras garrafais um argumento demolidor: “Pena para estuprador: de 8 a 15 anos. Pena para a mulher que abortar (mesmo em caso de estupro): de 6 a 20 anos. A mulher tem uma pena maior do que o estuprador. É isso que a Câmara dos Deputados está querendo aprovar”.

O post viralizou imediatamente, com 1,5 milhão de visualizações e 66 mil curtidas. Luciano sabia o que estava fazendo, com a experiência de quem começou a bombar nas redes com o perfil de paródia Haddad Debochado, que ele encerrou após perder 130 mil seguidores só no Instagram por criticar o governo Lula. “A narrativa é sempre o ponto central para uma discussão. A melhor narrativa sempre vence”, disse ao Meio. “Imagine se ao invés de colocarmos em pauta a questão da revitimização da mulher, a gente focasse em defender a legalização do aborto. A gente tomaria uma surra da opinião pública, com chances reais de o PL ser aprovado.”

Perfis com menos seguidores também postaram este mesmo argumento nos dias 5 e 6 de junho – como o da assistente de marketing Marcela Santos, de 22 anos. Após ler o post da Central da Política, buscou informações sobre as penas em fontes como o Código Penal Brasileiro. “Pesquisei também sobre quando mulheres descobrem uma gravidez fruto de estupro. Quando são crianças, é raro ser antes de 22 semanas. Logo depois de eu postar sobre isso, a discussão explodiu mais ainda, e fiquei feliz por ver que as pessoas enxergavam o mesmo que eu”, comentou Marcela.

Enquanto o assunto ganhava as redes, Sâmia Bomfim e sua equipe se debruçaram sobre o tema ao qual ela se dedica desde que chegou à Câmara, em 2019, com apoio de 250 mil eleitores paulistas. Ela e seus assessores se empenharam em levantar dados, pensar em argumentos, definir estratégias de comunicação nas redes, definir cards e carrosséis para o Instagram, conversar com mulheres do movimento feminista e com especialistas como a antropóloga Debora Diniz, renomada professora da Universidade de Brasília e pesquisadora na Brown University, nos Estados Unidos. “Pouquíssimas pessoas estavam reagindo na Câmara, e o governo se abstendo de mais uma pauta conservadora. Eu sabia que precisava me pronunciar logo, porque a urgência seria aprovada a qualquer momento”, disse.

Sâmia subiu à tribuna no dia 11 de junho, véspera da urgência ser aprovada, sabendo o que diria – e com sua equipe de comunicação pronta para trabalhar assim que o discurso terminasse. “Quero dizer que quem vai comemorar a aprovação dessa urgência são os pedófilos brasileiros”, começou a deputada. “Porque ao invés de a Câmara estar voltada para coibir a atuação deles contra nossas crianças e adolescentes, ao invés de a Câmara estar debruçada sobre de que forma pode responsabilizá-los mais por essa violência tão brutal (...), a Câmara está votando para retirar essa menina do papel de vítima e colocá-la no banco dos réus. Não basta ela ter sido estuprada, vocês ainda querem que ela vá para a prisão por 20 anos”, protestou.

Com três minutos de duração, o vídeo furou a bolha da deputada, atingindo 3,4 milhões de contas – 91% delas de pessoas que não a seguiam – e sendo reproduzido 5,2 milhões de vezes até agora. Naquele dia, Sâmia cunhou uma expressão que tem repetido até hoje: “Criança não é mãe”. Nos dias posteriores, passou a chamar o projeto de “PL do Estupro”, em vez de “PL do aborto” ou “do antiaborto”, como a iniciativa vinha sendo definida. “É uma comunicação baseada em fatos. As crianças são as principais vítimas de estupro, mais de 60% têm menos de 14 anos. São crianças”, diz Sâmia, que confessa: “A gente precisou entrar um pouco no que eles [parlamentares conservadores] fazem, que é criar um pânico moral para as pessoas se sentirem abaladas e acordarem. A gente deslocou o debate para o tema do estupro.”

Para o professor Fábio Malini, do Laboratório de estudos sobre Imagem e Cibercultura (Labic) da Universidade Federal do Espírito Santo, “é interessante observar essa virada porque, no início, há todo um movimento em torno de expressões como 'PL-1904 sim’ ou ‘PL-1904 não’, em uma lógica de polarização. Depois, a palavra estuprador vai crescendo ao longo do período. Esse fenômeno só ocorreu após o argumento de comparação das penas”, diz. Segundo o antropólogo e etnógrafo Juliano Spyer, autor do livro Povo de Deus, que analisa o crescimento do movimento evangélico, o fato de o PL prever pena de prisão para mulheres estupradas maior que a pena máxima para o crime de estupro foi um argumento recebido com comoção. “As pessoas com quem conversei se sentiram tocadas”, relata Spyer, que acredita também que o silêncio dos fiéis em relação ao tema desestimulou grande parte da bancada evangélica.

O episódio abriu um precedente de como o campo progressista pode vencer debates sobre pautas conservadoras? Luciano Carvalho, um dos primeiros a comparar nas redes a eventual pena de mulheres que abortarem à pena de estupradores, acredita que isso só vai acontecer de fato quando a esquerda “parar de colocar todos que discordam dela na caixinha da extrema-direita”. Para Sâmia Bomfim, “não podemos ser ingênuos, eles se consolidaram no país com uso de narrativas falsas. Mas destrinchar os projetos, com capacidade de comunicação, e não ter medo de enfrentá-los é um primeiro passo”.

Conselho Federal de Medicina mantém trincheira bolsonarista

Na terça-feira, o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, anunciou a formação de uma “comissão representativa” visando debater o PL 1904 no segundo semestre. Não especificou exatamente como será a composição dessa comissão, mas invocou que “todas as forças políticas e sociais participariam do debate, sem pressa e sem qualquer tipo de açodamento”. No Salão Verde da Câmara, em meio a todos os matizes partidários, Lira levantava o freio de mão de um projeto que fora colocado em tramitação após 23 segundos de análise em plenário e que equipara o aborto legal após 22 semanas de gestação ao crime de homicídio simples. Nada mais, nada menos, nada simples.

Mais que a tomada de consciência de que tal equiparação, no mínimo, transgride o Código Penal, que não estabelece tempo gestacional para o aborto em caso de mulheres que engravidam de um estupro, provavelmente caiu-lhe a ficha de que, se a discussão era um aceno à bancada evangélica de olho na sua sucessão, melhor seria embuçar a proposta naquele momento. Por meio de uma virada de chave nas mensagens de grupos feministas, que focaram menos na questão de saúde pública e mais na proteção das meninas violentadas, o PL do Aborto havia se transfigurado em PL do Estupro. Se o primeiro é um clássico vespeiro em que tradicionalmente não se mexe em época de eleição, alguma gradação há para que o segundo seja uma pecha indelével que ninguém quer carregar, seja em que tempo for.

No dia seguinte, no entanto, o Conselho Federal de Medicina (CFM), depois de se encontrar com o ministro Alexandre de Moraes, voltou a condenar a assistolia fetal, técnica que usa medicações para interromper os batimentos cardíacos do feto antes de sua retirada do útero. Retomou, portanto, a resolução 2378, de 2024, que chegou meio casada com o PL 1904 ao vedar ao médico utilizar essa técnica em aborto previsto em lei quando houver, nas palavras do Conselho, “probabilidade de sobrevida do feto em idade gestacional acima de 22 semanas”. Moraes suspendeu essa resolução por meio de liminar, depois que o Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp) já havia inclusive suspendido por seis meses, em votação unânime, duas médicas que atuavam no Hospital Maternidade Vila Nova Cachoeirinha, na zona Norte de São Paulo, em casos de aborto legal.

Há que se pensar em que cenário navega o CFM e conselhos regionais da categoria para ir nessa maré que envolve punir até mesmo seus pares quando eles se mostram ímpares. Uma das hipóteses aponta a proximidade das eleições, mas as eleições internas. Nos dias 6 e 7 de agosto, os médicos votam nos conselheiros federais que vão compor o plenário do CFM para os próximos cinco anos. Cada Estado e o DF elegerão um titular e um suplente, totalizando 54 conselheiros.

“Esta é a gestão que está seguindo os preceitos da pauta bolsonarista em que a maior parte da categoria votou”, recorda o advogado Henderson Fürst, que preside a Comissão Especial de Bioética e Biodireito da OAB de São Paulo. No ano passado, nas eleições para os Conselhos Regionais de Medicina, havia um site com um esquerdômetro, que vasculhava filiações, detalhes de currículo, apoio ao Mais Médicos e apertos de mão de determinados candidatos a determinados políticos para apontar ideologias “sabidamente negativas para médicos”. Não há informações de quem criou ou deu suporte financeiro ao site, mas apenas a chapa 1 saiu ilesa porque nenhum de seus membros foi “denunciado” como de esquerda.
“Condenar a assistolia não é uma questão técnica, é uma estratégia, parte de um projeto político”, diz. Nessa linha de intencionalidade, figura com desenvoltura o conselheiro federal pelo Estado do Rio de Janeiro Raphael Câmara Medeiros Parente, relator da resolução 2378, médico formado em ginecologia e obstetrícia que foi secretário Nacional de Atenção Primária do Ministério da Saúde no governo Bolsonaro.

Parente é enfático em afirmar que um feto de 22 semanas é viável, que será cuidado pelo Estado e que será colocado em sequência para adoção, numa presunção de que existe, por exemplo, estrutura médico-hospitalar em nível nacional para tornar essa viabilidade possível. Se esse critério beira a utopia, nas palavras de Fürst, a posição do CFM contra o aborto legal após as 22 semanas caminha contra a lógica quando, em vez de estimular que se interrompa a gravidez o mais precocemente possível em casos de estupro, promove objeções para barrar o procedimento.

“Esse é um falso debate”, afirma Debora Diniz, professora da Universidade de Brasília (UnB) e fundadora da Anis – Instituto de Bioética. “Nunca vi, no Congresso Nacional, um debate sobre técnica médica. O debate deveria ser sobre como cuidar dessas meninas e mulheres que sofreram estupro e correm risco de vida”, diz. Se é para ter debate técnico, afirma ela, que fosse em audiência pública.

Para aqueles que preconizam o código de deontologia médica de absoluto respeito pela vida humana, ambos, Fürst e Diniz, lembram de procedimentos estéticos muitas vezes periclitantes, na linha dos peelings de fenol, cujas regulações não se mostram centrais nas discussões do Conselho, mais centrado em pautas inflamantes de costumes, como de resto toda a conjuntura política brasileira.

A ação do CFM quanto ao aborto legal, novamente para os dois especialistas e também para demais críticos da atual gestão do Conselho, extrapola suas competências. A assistolia, por exemplo, é recomendada pela Organização Mundial de Saúde e tida pelos protocolos nacionais e internacionais como a melhor prática assistencial à mulher em casos de aborto legal acima de 20 semanas. Mas a OMS tem sido jocosamente descartada em tempos trumpistas e pós-trumpistas pelos seguidores do ex-presidente americano, especialmente após a pandemia de Covid-19.

“Se alguém define protocolos no campo da ginecologia e obstetrícia é a Febrasgo”, diz Diniz, referindo-se à Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia. As políticas de saúde no Brasil ficariam a cargo do Ministério da Saúde. “Neste momento, o CFM está mais próximo de um sindicato do que de um órgão que tem as melhores práticas científicas”, conclui.


*Mônica Manir é jornalista e doutora em bioética. Foi editora das revistas 'Nova Escola', 'Crescer' e 'Claudia' e editora do caderno Aliás, do 'Estadão', onde também foi repórter especial. É autora de 'Por um ponto final', coletânea de reportagens que escreveu para o 'Estadão' e para a revista 'piauí', e de 'Diário de uma Fadiga', sobre sequelas da covid longa.

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