A cara do nacionalismo de direita no Brasil

Como ufanismo e patriotismo já serviram ideologias diferentes no país até assumirem sua atual fisionomia

Nacionalismo é uma das palavras mais presentes no vocabulário das ideologias políticas e um dos conceitos mais polêmicos. No Brasil, tem sido associado principalmente a uma forte participação do Estado na economia, por isso sempre foi desenvolvimentista. Neste ponto aproxima direita e esquerda, embora a última tenha acrescentado uma perspectiva redistributivista. O nacionalismo político nunca se enraizou no Brasil, sempre foi um fenômeno das elites, especialmente entre militares, intelectuais e burocratas de Estado, com destaque para os diplomatas.

No Brasil do século 20, aplica-se a propostas intelectuais dos anos 1920 sobre qual seria o papel do Estado para a identidade nacional e às políticas industriais do primeiro governo de Vargas (1930-45). Está presente nas campanhas de rua e batalhas parlamentares na defesa dos recursos econômicos nacionais, entre os anos de 1950 e 1960 em plena democracia, e nas campanhas da ditadura militar (1964-1985) para doutrinar a sociedade em moldes anticomunistas. Durante o governo de Jair Bolsonaro (2019-22), reconhecidamente autoritário e com slogan “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”, o nacionalismo econômico se dilui no alinhamento acrítico aos Estados Unidos e nas pautas moralistas e religiosas.

Realisticamente tivemos entre nós propostas de nacionalismos autoritários na esquerda e na direita, pois, como projeto, resumiam-se ao discurso da nacionalização ou estatização dos recursos naturais do país — petróleo, por exemplo — e ao tratamento a ser dado ao capital financeiro. Neste campo, acusações mútuas cunharam em nossa história a dicotomia nacionalistas vs. entreguistas.

Mais recentemente, mundo afora, o nacionalismo de direita ganhou notoriedade por suas pautas supremacistas, anti-imigratórias, morais e religiosas.

Na nossa história há exemplos em que um nacionalismo de direita foi praticado ou apregoado, na prática e na teoria, normalmente via Estado. Isto se aplica inicialmente ao governo de Vargas de 1930 a 1945 e ao pensamento político que o antecedeu e orientou. Nesse período, o Estado era o principal parceiro na economia e a participação popular foi organizada em moldes das manifestações fascistas. De toda forma, o nacionalismo de Vargas assumiu um caráter popular, um sentido de nacionalidade. O modelo Vargas de desenvolvimento foi hegemônico no Brasil até os anos 1980 e ainda houve tentativa de reeditá-lo nos anos seguintes.

Embora não tenhamos exemplos puros de momentos nacionalistas de direita e de esquerda, vamos definir como nacionalismo de direita uma situação de limitada liberdade política e com forte tendência a valorizar o papel do Estado na economia, na cultura e no controle social. Este nacionalismo desqualifica a sociedade, entendendo-a como inoperante, incompetente, manipulável e que, por isso, necessita de um governo forte. Seus chefes se acham superiores. Com nuances diferentes, pois vividos em tempos distintos nos desafios internacionais, Getúlio Vargas do primeiro governo e a ditadura militar enquadram-se nesta moldura de um Estado acima da sociedade.

O inimigo número 1

Boris Fausto, em seu livro O pensamento nacionalista autoritário (2001), atesta que, ao contrário do que aconteceu em vários países da Europa, no início do século 20, no Brasil, a questão nacional foi apropriada pela direita e pela esquerda, com diferentes matizes que vão do ufanismo à luta de libertação contra o imperialismo. No campo dos autoritários, nomeia Alberto Torres entre outros, que escrevem a partir dos anos 1920, tais como: Oliveira Viana, Azevedo Amaral e Francisco Campos. Nas décadas de 1920-30, outros intelectuais continuaram discutindo o que seria a originalidade do povo e do Estado brasileiros de forma a mostrar suas especificidades, definindo assim o que seria ou deveria ser o nacionalismo no país. Ao mesmo tempo demonstravam a necessidade inevitável do autoritarismo que chegará de forma inquestionável com o Estado Novo (1937-45). A par disso, seguindo as tendências internacionais, o racismo, que segundo Lilia Schwarcz (1993) já havia obtido algum grau de sucesso entre as elites intelectuais do século 19, assume características científicas e políticas, desvalorizando a sociedade e a qualidade do povo, o que obrigava à existência de um Estado forte para elevar o padrão moral da população.

Com diferenças de ênfases e de estilos, esses intelectuais concordavam que a sociedade no Brasil não existia como corpo uniforme, como nacionalidade. Fraca e anômica, não tinha maturidade para entender a importância de se construir identidade e interesses nacionais. Esse papel deveria ser destinado a uma elite intelectual e política que tomaria para si o controle das rédeas do Estado e de suas políticas.

O movimento militar conhecido como tenentismo começa em 1922 detonando a crítica armada ao que chamava de atraso dos governos civis e lançou as bases do intervencionismo militar dos anos seguintes com conotações nacionalistas. Desse movimento saiu o líder do Partido Comunista Brasileiro, Luís Carlos Prestes, e diversos líderes autoritários de direita que foram atores centrais no golpe de 1964.

Apesar do peso da Igreja Católica com suas demandas conservadoras na educação e na cultura, poucas vezes o nacionalismo de direita ganhou expressão de movimento de rua no plano nacional. Isso aconteceu pela primeira vez nos anos 1930 com a Ação Integralista Brasileira, AIB (1932-38). Com o lema “Deus, Pátria e Família”, apresentava uma proposta centralizadora, de inspiração fascista, e conseguiu a adesão formal de cerca de 600 mil pessoas.

Do outro lado do espectro ideológico foi criada, em março de 1935, a Aliança Nacional Libertadora (ANL), frente de esquerda liderada pelo Partido Comunista Brasileiro. Tinha como presidente de honra Luís Carlos Prestes, ex-militar do movimento tenentista e pessoa da confiança do PC soviético no Brasil. A atração que o comunismo exercia sobre jovens oficiais era motivo de preocupação para as cúpulas militares. O próprio Prestes reconhecia ser mais fácil organizar o partido nos quartéis do que nas fábricas. Logo após o levante comunista de 1935, a ANL é fechada e seus principais líderes, presos.

Com esse levante, o comunismo fora elevado a principal inimigo da pátria, fortalecendo a dinâmica integralista e patriota. Ser nacionalista era, antes de mais nada, ser anticomunista.

Esta associação permaneceu na cultura política brasileira com incrível estabilidade. A ameaça do inimigo vermelho ganhou maior ou menor intensidade no decorrer dos anos e foi elevada a inimigo número um do país em 1964, para justificar o golpe militar.

A concentração de poder de decisão na área econômica é uma das marcas mais fortes e duradouras do Estado Novo e deitou profundas raízes no país, especialmente no que toca a um modelo econômico de desenvolvimento orientado pelo Estado. As discussões e polêmicas a partir dos anos 1990 sobre privatizações e a necessidade de manter ou não a estatização em algumas empresas tidas como estratégicas, tais como as de petróleo e minérios, são evidências do enraizamento desse modelo na sociedade brasileira.

No período de 1946 a 1964, a ideologia nacionalista foi apropriada pela esquerda e ganhou as ruas pelas mãos de partidos e organizações da sociedade civil. Durante o governo Juscelino Kubitschek (1956-60) o país enfrenta otimismo econômico, protege e alavanca organizações intelectuais de esquerda nacionalista, negocia com sindicatos e estudantes, administrando a avalanche de demandas que começam a emergir com a democracia, entre elas, reformas estruturais na economia e sociedade brasileiras.

É necessário entender que, assim como o nacionalismo se tornava uma ideia cativante para muitos, grande parte da sociedade entendia que o comunismo era uma possibilidade real. A Igreja foi fundamental em denunciar seu ateísmo, que destruiria a família brasileira, e o coletivismo, que acabaria com a propriedade privada. Por isso mesmo, as grandes manifestações de rua contra o governo de João Goulart, capitaneadas por lideranças femininas, tinham como lema a defesa de Deus, da família e da propriedade.

As incertezas quanto aos resultados da mobilização e da radicalização política unia empresários, classes médias e Forças Armadas, muito mais organizados e com mais financiamentos. Chegou-se ao golpe e à ditadura militar, um dos períodos em que o Estado mais atuou na economia, financiando empresários e inaugurando grandes obras. Foi um tempo de muitas estatizações em nome da defesa dos interesses nacionais e de um novo nacionalismo. Nacionalismo no qual civis abriram mão do exercício do voto direto para apoiar um Estado militar, policial e autoritário, em que empresários até ofereciam instalações de suas fábricas para que a repressão pudesse ter mais espaço de ação.

O caráter autoritário

A ditadura militar, em termos das restrições às liberdades públicas, tem semelhanças com o Estado Novo, com o adicional de que eram tempos de Guerra Fria, o que tornava a tensão política mais acirrada. Por isso mesmo, a repressão, a violência e a tortura ocorreram em um grau inédito na história do país. Foi tipicamente um regime nacionalista autoritário de direita: menosprezou a população, oprimiu os mais pobres e perseguiu os dissidentes. Assim mesmo, deixou seguidores que só mostraram sua voz durante a campanha presidencial de Jair Bolsonaro, que se tornou-se um factótum da repressão das Forças Armadas, enquanto Getúlio continuou sendo um líder popular.

O nacionalismo de direita que ganhou corpo no decorrer do governo Jair Bolsonaro (2019-22) não pode ser traduzido por fatores econômicos, nacionais ou mundiais, mas também não pode ser explicado sem eles.

Da mesma forma, não deve ser tomado como uma novidade na cultura política brasileira, embora o nacionalismo jamais tivesse assumido uma cara tão particularmente sectária e religiosa como durante esse governo. Valores nacionalistas, de diferentes matizes e ideologias de direita, fazem parte, pelo menos, do repertório político da República brasileira.

O governo Bolsonaro começou rendendo vassalagem ao governo norte-americano de Donald Trump (2017-21), eleito seu parceiro econômico prioritário e norte ideológico. Para usar um trocadilho, era um “nacionalismo dependente” De início, lembramos que três expressões marcaram essa chegada ao poder: globalismo, marxismo cultural e negacionismo.

O conceito de globalismo foi exaustivamente usado por Trump e seus seguidores, entre eles os bolsonaristas. Apontava para uma nova inserção ou isolamento nacional dos países “livres” frente ao avanço da globalização, entendida como estratégia ardilosa da esquerda que se valeu das regras do capitalismo financeiro dos anos 1970-90 para deformar o sistema capitalista dando preconício à China e a novos valores materialistas e sexistas. Nas palavras do ex-ministro das Relações Exteriores Ernesto Araújo: “Quero ajudar o Brasil e o mundo a se libertarem da ideologia globalista. Globalismo é a globalização econômica que passou a ser pilotada pelo marxismo cultural. Essencialmente é um sistema anti-humano e anticristão”. Nesse contexto, somente Trump “poderia salvar o ocidente” ameaçado pela China, país que, segundo ele, não prezava a liberdade, ao contrário do Brasil e dos Estados Unidos.

No caso do Brasil, Bolsonaro adicionava o tempero do persistente e profundo anticomunismo. Autoritário convicto, entendia que a ditadura militar (1964-1985) não fora bem-sucedida em eliminar o marxismo porque não fora violenta o suficiente. O comunismo sobreviveu e cresceu entre nós por meio de manobras ideológicas que faziam com que teses ditas comunistas passassem a ser incorporadas às novas práticas políticas numa artimanha chamada de marxismo cultural ou guerra ideológica.

Na trajetória do nacionalismo de direita, Bolsonaro é um herético na questão econômica. Teve um só ministro da Fazenda que sempre defendeu menos Estado e mais mercado na economia. Assim, a principal herança do nacionalismo de direita, quando esteve no poder em períodos anteriores, um compromisso do Estado com desenvolvimento econômico, como parceiro e investidor, se perdeu. Desde Vargas, para o bem ou para o mal, até os anos 1980 este era o modelo de desenvolvimento a ser seguido.

O nacionalismo autoritário de direita começa a despontar entre nós com forte desprezo pela sociedade e pela valorização do Estado e seus técnicos. O nacionalismo brasileiro, se constituiu, de fato, pelo viés econômico. Construir uma nação soberana não incluía a construção de um povo bem alimentado e educado. A partir dos anos 1930, o outro lado do nacionalismo foi o anticomunismo. O país e o mundo mudaram, a Terra redonda continuou girando e Bolsonaro expeliu da pauta o nacionalismo econômico, que tanto marcou o nacionalismo de direita.


*Maria Celina D’Araujo é doutora em Ciência Política e pesquisadora visitante da PUC-Rio. É autora de vários livros e artigos sobre militares no Brasil e América Latina e Era Vargas. Este artigo artigo foi organizado pela Plataforma Democrática (Fundação FHC e Centro Edelstein de Pesquisas Sociais), onde será publicado na íntegra no dia 27 de junho.

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