Edição de Sábado: Cálculo do futuro

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Aos 16 anos, Gabriela Lewenfus sonhava ser bailarina. Pouco depois, pensou em Biologia. Na época do Enem, cogitou Engenharia Química, mas acabou optando por Biomedicina. Excelente aluna em matemática desde a escola, depois de dois anos de graduação na Universidade Federal do Rio de Janeiro, notou que ia muito bem nas aulas de cálculo. Sem paciência para horas de laboratório, decidiu mudar de curso. E escolheu o que até então jamais havia passado por sua cabeça: Matemática Aplicada. Apesar de o caminho até lá ter sido meio que por acaso, encontrou-se em uma área que oferece muito mais do que poderia imaginar. “Menina nunca pensa em matemática. E eu sempre fui muito boa nessa matéria, mas nunca pensei em fazer nada com isso. Se eu tivesse de escolher o curso agora, teria optado pela matemática desde o início.”

Muitos ainda pensam que fazer graduação em Matemática é sinônimo de lecionar para crianças e adolescentes agitados no Ensino Fundamental ou Médio. A licenciatura segue existindo e é necessária para a sociedade. Mas a realidade da profissão é muito mais ampla. A matemática está em tudo, e o campo é enorme. De petróleo e gás a softwares, conhecimentos matemáticos são necessários nas mais diferentes áreas.

Segundo o Occupational Outlook Handbook, do Escritório de Estatísticas de Trabalho dos Estados Unidos, o emprego global em profissões ligadas à matemática deve crescer mais rapidamente do que a média para todas as profissões de 2022 a 2032. Cerca de 33.500 vagas são projetadas a cada ano devido ao crescimento dos postos de trabalho e à necessidade de substituir trabalhadores que abandonarão suas profissões permanentemente. Nos EUA, o salário médio anual desse grupo que usa aritmética e aplica técnicas avançadas para fazer cálculos, analisar dados e resolver problemas era de US$ 101.460 em maio de 2023, mais que o dobro do salário anual médio para todas as ocupações, de US$ 48.060.

Gabriela, de 29 anos, tornou-se bacharel em Matemática Aplicada em 2018. Depois, fez mestrado em processamento de sinais, uma área da engenharia dominada por machine learning. “A área de ciência de dados geralmente é dominada por pessoas formadas em engenheira, ciência da computação, matemática ou estatística. Mas é perceptível que quem fez matemática ou estatística tem um desenvolvimento diferente. É mais fácil um matemático correr atrás da ciência da computação do que o contrário”, afirma a carioca, que vive em Portugal desde 2021 e trabalha como cientista de dados em uma companhia britânica de solução de software para pequenas e médias empresas, num time que conta com mais dois matemáticos e dois estatísticos. “Com a matemática é fácil porque toda a base de machine learning é o que a gente mais vê. Por isso, escolhi essa área.”

Danielli Sousa também sempre foi muito boa em matemática e adorava a disciplina. Mas não gostava de física nem química, necessárias na engenharia. Até que um professor apresentou a ela a graduação em Matemática. Ela cursou Estatística na Universidade de São Paulo. “Não é só ser professor, tem todo um outro mundo. Entrei sem ter a noção do que eu sairia, não existia o termo cientista de dados que tem hoje. Inteligência artificial era um ciborgue e não um algoritmo.”

Aos 34 anos, Danielli começou a carreira como estagiária em uma empresa de tecnologia com modelagem preditiva. Há três anos, trabalha na gigante americana de softwares Salesforce, que foca na solução de gerenciamento de relacionamento para aproximar empresas e pessoas. “Trabalho com uma plataforma de CRM (Customer Relationship Management ou Gestão de Relacionamento com o Cliente, em português) integrada que oferece uma visão única e compartilhada de cada cliente. Num universo multivariado de banco de dados, analiso e saio com as respostas para engajamento do cliente: com quem falar, quando e por onde. Tudo isso com base em probabilidade. Estudos falam que a percepção humana de regras de negócio atinge cinco características. Com inteligência artificial (IA), isso se expande para um mundo multivariado, com características mínimas, e saio com uma probabilidade. Também trabalho com IA generativa, que gera conteúdo em texto e imagem, e precisa de matemática por causa do algoritmo, que tem de ser treinado com as fontes de dados, com as especificidades do cliente”, explica.

Perspectivas de futuro

Entre 2012 e 2023, as áreas ligadas à matemática correspondiam a 4,6% do PIB do Brasil, envolvendo 7,4% dos trabalhadores do país, segundo a pesquisa Contribuição da Matemática para a Economia Brasileira, realizada pelo Itaú Social, com apoio do Instituto de Matemática Pura e Aplicada (Impa). Mas há espaço para crescer. E muito. Na França, levantamento semelhante, do Centro Nacional de Pesquisa Científica, mostra que, em 2022, os profissionais ligados à matemática somavam 10% dos trabalhadores e representavam 18% do PIB do país. Por aqui, os trabalhos relacionados à matemática estão mais concentrados nas áreas de serviços administrativos e de tecnologia da informação, enquanto no exterior estão voltados à inovação e ao desenvolvimento tecnológico.

E é nesse espaço para crescimento de atividades ligadas à matemática que as graduações estão atentas e preparadas para as novas demandas. Não à toa, o Impa abriu neste ano sua primeira turma de graduação, o Impa Tech. Com quatro anos de duração, o novo bacharelado tem o objetivo de formar profissionais capacitados para se inserirem no mercado de tecnologia e inovação.

“Se olharmos para os dados da pesquisa e virmos que o Brasil pode chegar a 16% do PIB com áreas ligadas à matemática, isso representa cerca de R$ 1 trilhão a mais por ano. É muito recurso para jogar fora. A formação em matemática é um problema econômico”, explica Marcelo Viana, diretor-geral do Impa, que em 2021 deu início ao projeto da graduação.

Inaugurado em abril passado, o Impa Tech ocupa um espaço moderno de 10 mil m², no Porto Maravalley, hub de tecnologia na região portuária do Rio de Janeiro. O projeto prevê que, até 2026, 30 startups e empresas do setor de tecnologia também estejam hospedadas ali, reunindo em um só lugar a academia e o mercado de trabalho. Vinte empresas já estão em processo de negociação.

Das 100 vagas oferecidas neste ano, 79 foram preenchidas por 68 alunos vindos de escolas públicas e 11, de privadas. Houve duas formas de ingresso. A maior parte das vagas (80) foi oferecida a alunos medalhistas nas olimpíadas de matemática (Obmep), física, química e informática. As outras 20 foram disponibilizadas com base na nota de matemática no Enem. Além disso, todos passaram por entrevista online.

Tomaz de Lucena Cavalcante, de 18 anos, conheceu o Impa Tech por indicação de uma professora de matemática da escola. Foi medalhista de ouro e prata na olimpíada de astronomia, não considerada na seleção, mas nunca chegou à segunda fase da Obmep. Por isso, achava totalmente improvável conseguir uma vaga. Mas os 958,6 pontos em matemática e suas tecnologias no Enem — a nota máxima na disciplina — garantiu que ele fizesse as malas e trocasse o Recife pelo Rio de Janeiro, deixando para trás a opção de Ciência da Computação na Universidade Federal de Pernambuco. “Para mim, era improvável, mas me inscrevi e aconteceu.”

Utilizar os resultados olímpicos como forma de seleção teve o objetivo de oferecer um acesso mais democrático ao Impa Tech, privilegiando o mérito de alunos majoritariamente da rede pública, como Tomaz. Mas estudar na Cidade Maravilhosa só foi possível porque o curso é gratuito e oferece a todos os alunos moradia e auxílio-alimentação e financeiro, custos que, no total, somam cerca de R$ 5.300 por mês, arcados pela Prefeitura do Rio de Janeiro e pelo governo federal. Hoje, os alunos estão hospedados em um hotel que fica em frente à faculdade. No ano que vem, vão se mudar para apartamentos da prefeitura.

“Desde 2005, a Obmep nos dá acesso aos jovens mais talentosos do país. E usamos isso como forma de seleção. Olimpíada é raciocínio, independe do estrato social, da escola”, diz Viana, reconhecendo que, apesar do talento matemático, os alunos chegaram com lacunas importantes de formação, como falta de aulas durante o Ensino Médio, de acesso a computador e de base sólida em inglês.

Tainá Drumond, de 19 anos, também é aluna do Impa Tech. Participou da primeira Obmep aos 12 anos, no 6° ano do Ensino Fundamental, que cursava na rede municipal de Belo Horizonte. Conquistou durante o período escolar três ouros e três pratas e uma bolsa de iniciação científica. Filha de uma motorista de ambulância e de um comerciante, precisava trabalhar durante a faculdade. Por isso, optou pelo curso noturno de Sistemas da Informação na Universidade Federal de Minas Gerais. Mas seguiu de olho no edital de criação do Impa Tech. Incomodada com o viés de administração e computação da graduação que cursava, ela queria mais matemática. E não hesitou em deixar para trás dois semestres já completados para se inscrever no novo curso. “Fazer a seleção pelas medalhas foi algo muito legal, tem gente do país todo aqui.”

Esporte olímpico

A primeira prova da 19ª edição da Obmep acontece nesta terça-feira. E o concurso deste ano bateu dois recordes: maior número de escolas, com 56.513 instituições, em 5.564 cidades, o que representa uma cobertura de 99,9% dos municípios brasileiros. Ao todo, 18,5 milhões de estudantes do 6º ano ao 3º do Ensino Médio vão participar da maior competição científica do país. A segunda fase será em 19 de outubro e a divulgação dos vencedores, em 20 de dezembro. Serão distribuídas 8.450 medalhas nacionais, sendo 650 de ouro, 1.950 de prata e 5.850 de bronze, além de 51 mil certificados de menção honrosa. Quem conquista medalha nacional de ouro, prata ou bronze garante ingresso no Programa de Iniciação Científica Jr., que oferece aulas avançadas em matemática e uma bolsa de R$ 300 para estudantes de escolas públicas.

O objetivo do Impa Tech, explica Viana, é oferecer uma formação ampla, voltada à tecnologia e à inovação. “O mercado de trabalho está percebendo que, com formação em matemática, o profissional faz qualquer coisa. Matemática não é uma profissão, é uma vocação, é um talento. E o Brasil é carente de pessoas à vontade com a matemática. Há um espaço enorme para matemática em qualquer área: agricultura, IA, farmácia, aeronáutica”, afirma, destacando que a saúde é a grande fronteira da matemática. “Exames podem dizer muito mais do que os médicos são capazes de ler. Para ler os dados com IA.”

Necessidades de mercado

A UFRJ já está atenta a essas necessidades de mercado há mais de 20 anos. Felipe Acker, professor titular do Departamento de Matemática Aplicada da UFRJ, escreveu os projetos que levaram à criação dos cursos de Matemática Aplicada, em 2003, e de Engenharia Matemática, em 2020. Para ele, há um deslocamento da economia e das atividades de engenharia, que valoriza o conhecimento matemático.

“Há um mundo que se abriu para a matemática. A grande mudança é o computador, que permite tatear com velocidade incrível e não simplesmente calculando previamente para onde você vai. Certamente, há um deslocamento da economia e das atividades de engenharia mesmo. A engenharia do imaterial está muito viva hoje. Mesmo as tradicionais, como mecânica e civil, fazem software, criam modelos matemáticos para engenharia. Modelo matemático, simulação, testar hipóteses. Há um avanço enorme e está só começando”, diz Acker.

Hoje os alunos já têm os cursos de Matemática Aplicada e Engenharia da Matemática como primeira opção, segundo o professor da UFRJ. “Temos evasão e invasão. Não era usual engenharia mudar para matemática. E agora acontece.” Mas ainda existe uma cultura entre os engenheiros, que se consideram uma categoria acima. “Não chega a ser uma casta. Mas já vi ex-aluno de Matemática Aplicada na área de energia elétrica ter de brigar por remuneração igual. Essa visão tem mudado”, afirma.

Mas não é apenas com matemáticos em sala de aula que se vai gerar a riqueza potencial do país. É preciso que outras áreas se sintam à vontade com a matemática. “É necessário romper essa barreira. E a melhor maneira é pelo exemplo, mostrando que vale a pena conversar com matemáticos desde cedo”, defende Viana.

O Pisa, que avalia o desempenho de estudantes de 15 e 16 anos, é realizado a cada três anos pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) em 81 países. A avaliação mais recente, de 2022, mostra que o Brasil registrou uma média de 379 pontos em matemática, 93 pontos abaixo da média da OCDE. Outro problema é alta taxa de evasão de jovens no Ensino Médio. Antes da pandemia de Covid-19, um a cada 10 jovens deixava a escola a cada ano no Ensino Médio. Cada jovem que não conclui o Ensino Médio deixa de receber em média R$ 154 mil, ao longo da vida, em razão de menores remunerações e de maior tempo em que passa desocupado. Quando contabilizados os efeitos indiretos da pior qualificação, o custo total de cada jovem evadido chega a R$ 395 mil. No total, são R$ 220 bilhões perdidos a cada ano ou 3,3% do PIB brasileiro. E muitos dos que ingressam no Ensino Médio têm de conviver com os prejuízos da sua formação anterior. No Brasil, apenas 41,4% dos estudantes que concluem o Ensino Fundamental o fazem com aprendizagem adequada em português e 24,4% em matemática.

Mudar na escola

Por isso, mudar a dinâmica na escola é essencial. O desafio do professor é apresentar em sala de aula para que serve aquele conteúdo que com o tempo vai ficando mais abstrato e manter a atenção. Para lidar com esse problema, a rede de escolas Firjan Sesi iniciou em 2012 em programa específico para matemática com o objetivo de tirar a cara de má e difícil da disciplina. A meta é fazer com que escolas, professores e alunos entendam a matemática de forma mais interativa e divertida. Para isso, materiais concretos, sólidos geométricos e digitais foram parar na sala de aula. A tecnologia também é uma aliada fortíssima, com plataforma de games para conceitos matemáticos e exercícios, tudo para ser mais dinâmico. A formação de professores é um outro desafio. Já que as licenciaturas em geral focam apenas na resolução de exercícios.

“E tem de ir muito além, é preciso reflexão, resolver problemas em vez de só repetir fórmulas para se chegar a resultados mais interessantes e ajudar os alunos a gostar mais da aula”, explica Vinícius Mano, gerente de Educação Básica da rede Firjan Sesi, que tem 17 escolas, com 12 mil alunos, sendo 6.300 no Ensino Médio.

De modo geral, a formação é considerada inadequada. “Há professores inseguros que repetem o que está no livro. Por isso, o livro didático é imprescindível no Brasil. A ideia de que a matemática é para fazer algo ou chegar a algo é mais ausente aqui do que nas principais instituições lá fora. É preciso ensinar em profundidade o que é necessário”, afirma Viana.

Outra ação adotada a partir de 2019 pelas escolas Firjan Sesi é o programa Math en Jeans em parceria com a França. Trata-se de uma estrutura de iniciação científica no Ensino Médio que permite que um grupo da escola tenha contato com professor da universidade, que mostra como é fazer pesquisa. “Tornando a matemática interessante, a gente consegue contribuir para que as universidades tenham bons alunos que vão para as engenharias, para a matemática, para as exatas. Não precisa ser um gênio, mas se empenhar”, diz Mano.

Matemática à mineira

Nem sempre dois e dois são quatro e, na história, entremeada pelas ideologias, essa soma nunca é exata. Tudo bem, são ciências humanas que bebem das vivências não medidas da existência. E “tudo certo como dois e dois são cinco”, em 1971, quando tudo ia mal no Brasil da ditadura militar, como escreveu Caetano Veloso para o blues lançado por Roberto Carlos. Mas, se a subversão da lógica exata acometeu a poesia do baiano de Santo Amaro e do capixaba de Cachoeiro de Itapemirim, entre mineiros ela permeia explicitamente a política.

O presidente Juscelino Kubitschek, por exemplo, embarcou no lema “50 anos em 5” para o seu Plano de Metas. Queria demonstrar pressa em tirar o Brasil do modelo agropastoril e começar a produzir automóveis no romper da década de 1960. O político de Diamantina é inspiração para o mineiro Rodrigo Pacheco (PSD-MG), presidente do Senado e do Congresso. Quando Pacheco trocou de partido, deixando o DEM para chegar ao PSD, escolheu o Memorial JK, em Brasília, como local da festança. Ele tinha a intenção de ser, em 2022, candidato à Presidência da República, como foi seu ídolo. Tinha na época a unção do presidente do partido, Gilberto Kassab (SP). Depois, diante de um cenário polarizado entre Jair Bolsonaro e Lula, mudou de ideia, preferindo se garantir no Senado. Recentemente, uma recepção o colocou no lugar do ex-presidente mineiro. Um coral entoou a canção Peixe Vivo, que embalava a imagem de JK, assim que Pacheco chegava à mansão e descia as escadas. Solenemente ele parou diante dos cantores e, com as mãos para trás, ficou a escutar, recebendo de bom grado a referência.

Agora, a pirueta matemática é reeditada por Pacheco. E, com ela, a imprecisão histórica. O mineiro enfiou 200 anos em 198. Com isso, antecipou para os limites do seu mandato, que acaba em fevereiro de 2025, as comemorações dos dois séculos de funcionamento da Casa Alta, que só serão completados mesmo em 2026. Curiosamente, o próprio site do Senado indica a data de instalação da Casa: 6 de maio de 1826. Mas Pacheco e a Mesa Diretora da Casa preferiram considerar a data de outorga da primeira Constituição brasileira, em 25 de março de 1824, quando se colocou na lei a criação do Poder Legislativo no Brasil. Ainda era Império. Os artigos 13 e 14 desta Carta falam na criação da Assembleia Nacional, que era formada pela Câmara dos Deputados e pelo Senado, também denominado Câmara dos Senadores. Só que, efetivamente, o Senado e a Câmara só foram instalados dois anos mais tarde.

Observando a história das comemorações do Senado, a data de referência no Senado sempre foi 1826, dia em que Dom Pedro I abriu a 1ª Legislatura e fez um discurso tão descolado da realidade que chegou a lamentar o fim da Assembleia Nacional Constituinte que ele havia dissolvido três anos antes. No acervo do Senado, uma publicação rara é mantida com todo cuidado. Trata-se do livro que registrou o Centenário do Senado do Império e indica a conferência do Instituto Histórico Brasileiro em 6 de maio de 1926. Em 2011, sob a presidência de José Sarney, a festança no Senado se deu para comemorar os 185 anos da Casa. Em 2016, sob o comando de Garibaldi Alves Filho (MDB-RN), se comemorou o aniversário de 190 anos. É só fazer a conta.

“Eu diria que é mais uma questão de marketing político da atual Mesa Diretora do Senado, que está querendo fazer esta comemoração. Por que eles estão comemorando essa data antecipada se, efetivamente, a Assembleia, no caso Câmara e Senado, à época, começam a funcionar só em 1826? Em 2026, eles vão comemorar de novo?”, questionou o historiador Ricardo Oriá, mestre em Direito Público pela Universidade Federal do Ceará, doutor em História da Educação pela Universidade de São Paulo (USP) e pós-doutor em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Oriá é, atualmente, membro do Conselho Nacional do Patrimônio Cultural, do Iphan e, até 2022, foi consultor legislativo da área de educação, cultura e desporto da Câmara. Por isso, conhece bem os meandros da política. “No passado, se comemorou o bicentenário da primeira assembleia constituinte da história. Ela foi destituída pelo imperador, mas funcionou de 3 de maio até dia 12 de novembro de 1823. O imperador dissolveu e, no ano seguinte, outorgou a Constituição, que tem muitas das características que estavam sendo discutidas no âmbito da assembleia constituinte. É por isso que a data de 3 de maio de 1823 é considerada oficialmente o Dia do Parlamento. Existe uma lei de 1975 que criou esse dia”, comparou.

Apesar de ter sido instalada no mesmo dia, a Câmara não vai fazer nenhuma comemoração neste ano, e as comemorações do bicentenário devem ocorrer somente em 2026. “A referência que eu tenho são essas duas datas: a do Dia do Parlamento e a de 1826, quando se instalaram as duas Casas.”

Sim, efemérides são construções político-ideológicas que lançam luz a fatos históricos e, consequentemente, sombra sobre outros. Um exemplo é a própria data da Independência. “Foi a 1ª Legislatura, em 1826, que votou uma lei para comemorar a data máxima da nacionalidade em 7 de setembro”, disse o professor. Antes, se comemorava a Independência do Brasil em 12 de outubro, data natalícia do imperador Dom Pedro I. Adotando como base a autorização constitucional como início do Senado, a sombra recai sobre os dois anos de luta republicana das províncias do Nordeste, que contestaram o poder imperial na Confederação do Equador. Esse é o motivo da demora na instalação do Legislativo, que havia sido prevista na carta de 1824. A rebelião só foi dizimada em 1825, as eleições ocorreram e, no ano seguinte, a instalação das casas legislativas foi possível.

Sem rumo

Mas o que Pacheco ganha com a antecipação dos festejos? Na opinião de Christian Lynch, historiador e cientista político, editor da revista Insight Inteligência e colunista do Meio, o mineiro está em busca de uma identidade política. “O que ele quer é associar o nome dele a uma festividade que só acontece a cada 100 anos.” Para Lynch, Pacheco está em uma situação política difícil na medida em que ele deixará a Presidência da Casa sem ter conseguido condições de alçar voos próprios para disputar cargos como o governo de Minas Gerais ou mesmo se reeleger para o Senado. “Ele foi um presidente do Senado razoável, mas a impressão que todos têm é de que ele é uma criatura do seu antecessor, Davi Alcolumbre (UB-AP)."

Pacheco já manifestou querer ser governador, e também já disse que vai sair da política. Em Minas, ele precisaria do apoio do Lula para vencer o bolsonarismo. Ao mesmo tempo, ele precisa fazer o jogo do bolsonarismo no Senado. No meio disso, segundo Lynch, há a tentativa de se associar à imagem de estadista, atribuída ao ex-presidente Juscelino em contraposição à ditadura. Uma imagem construída por políticos, para políticos mineiros. “JK era um conservador, demofóbico. Mas em Minas ele foi escolhido no fim do regime militar pelos políticos conservadores moderados como se fosse um símbolo de uma democracia conservadora possível.”

Celebração de coalizão

Para as comemorações deste ano, o Senado formou uma comissão curadora que foi coordenada pelo senador Rogério Carvalho (PT-SE), primeiro-secretário da Casa. E não houve economia na programação. Um concerto grandioso para convidados e com a presença do maestro João Carlos Martins foi realizado no Auditório Master do Centro de Convenções Ulysses Guimarães, maior espaço cultural da cidade, localizado na região central da capital. Só para a produção desse musical, o Senado repassou para a empresa Takla Produções Artísticas R$2 milhões, de acordo com o contrato disposto na página de dados abertos do Senado. O dono da empresa é Jorge Philippe Takla, um dos maiores produtores de musicais e de ópera do país. As passagens dele também foram pagas pelo Senado.

A sessão solene realizada no Senado contou com ministros do governo, ex-presidentes da República, ex-senadores e ministros do Supremo Tribunal Federal. Gilmar Mendes discursou e Dias Toffoli acompanhou da tribuna de honra. O procurador-geral da República, Paulo Gonet, também foi. Uma frente amplíssima e com os Três Poderes em anuência com o bicentenário antecipado de Pacheco. Houve ainda comemorações que privilegiaram símbolos do período imperial e saíram de Brasília, como o lançamento de um site exclusivo sobre o bicentenário, que ocorreu em Petrópolis.

O Meio pediu ao Senado, a Rodrigo Pacheco e ao senador Rogério Carvalho detalhes sobre as comemorações e o valor total dos gastos. Por meio de sua assessoria, Carvalho informou que considera o custo “insignificante diante da importância de uma instituição que atravessou o primeiro e o segundo impérios, todas as repúblicas, todos os regimes, inclusive os autoritários, as ditaduras, e continuou funcionando e formatando este Brasil que a gente conhece hoje”. “Portanto, o custo é muito pequeno e 100% auditado por um grupo de controle externo, formado por membros do Tribunal de Contas da União, que acompanha todas as despesas que estão sendo realizadas na comemoração.”

Mas a programação ainda não terminou. Ainda neste ano, o Senado fará o lançamento de um documentário com sete episódios a ser veiculado em canais de distribuição por streaming e em canais abertos. “Nós estamos produzindo este documentário com sete episódios contando a história do Senado, que ainda inclui o momento em que o Senado entrou em funcionamento no Congresso Nacional”, informou o senador Rogério Carvalho. Dados do Senado indicam que mais de R$ 1 milhão foram destinados à empresa Modo Operante Produções para a produção desse filme. As assessorias do Senado e de Pacheco não responderam os questionamentos da reportagem.

Náufragos do Sarandi

“Aline, 

Que estes seus 18 anos estejam repletos de alegrias e muita felicidade. Que a cada dia nossa amizade se fortaleça e se torne como um bando de andorinhas, que após cada inverno voltam para seus ninhos cada vez mais fortes, deixando para trás a tristeza da perda de companheiros, porém trazendo inúmeras alegrias! Feliz aniversário.”

A mensagem é escrita à mão e assinada por Aline Garmatz e destinada à outra Aline, de Castro, que chegava à maioridade em 08 de janeiro de 2001. No cartão, ainda um pequeno incenso e um marcador de livro. Estavam em um envelope branco fechado com um adesivo de estrela. Aline de Castro, hoje com 41 anos, guardava cartas, telegramas, cartões de feliz aniversário e boas festas datados de 1997. Da mãe, dos avós, de amigas. Parabéns pelos 15 aninhos, escreveu em 1998 a amiga Milene.

Na terça-feira, 28 de maio de 2024, os escritos estavam em meio à rua Rodrigues da Costa, no bairro Sarandi, Zona Norte de Porto Alegre. O território foi um dos mais atingidos pelas enchentes e, quase 30 dias depois dos primeiros registros de chuva na capital gaúcha, ainda conta com áreas que não podem ser acessadas por conta da água.

As cartas de Aline, úmidas por conta da água, se juntam a centenas de outros itens que passaram de pertences pessoais e memórias a lixo, que estão prestes a ser recolhidos por uma retroescavadeira. Enquanto limpam as casas, tomadas por lama, moradores da rua Rodrigues da Costa, uma das que não têm mais água, veem os garis da Cootravipa levando os resquícios da vida, desde as cartas trocadas com amigas da adolescência, ao guarda roupa e colchões pesados de tanta água absorvida.

A uma quadra dali, na rua paralela Vidal Barbosa, Bia Becker está no pátio de casa e limpa com uma mangueira uma pequena bacia rosa, que até pouco estava marrom por conta da lama. É o suporte da gaiola em que ficava o passarinho. Não sabe se o animal fugiu ou não resistiu. Na sexta-feira, 4 de maio, saiu para trabalhar e recebeu a ligação do filho, dizendo que o bairro estava sendo invadido pela água. Retornou, porém já não conseguiu entrar em casa. O filho, cadeirante, foi resgatado pelos vizinhos. A água que adentrou em todo o terreno de Bia ainda não baixou. Do portão para fora, ainda está inundado. “Só as paredes aqui. Não tenho mais nada. É muito triste”, diz em meio ao que há pouco mais de um mês eram os móveis, eletrodomésticos e utensílios de sua casa. Com a voz embargada, lamenta constantemente a perda do que tinha na pequena casa de dois cômodos. Deixa a água da mangueira correr enquanto conversa e explica que, a partir de agora, quer reconstruir a vida apenas com uma cama, geladeira, fogão, uma mesa para comer e uma televisão para assistir ao noticiário. É o medo de conquistar e perder tudo outra vez. “Um prato para eu comer. Dois pratos, né, se vem alguém. E uma mesinha daquelas pequenininhas. E só. Não quero mais nada dentro da minha casa”, diz.

Bia é uma senhora de 67 anos, com olhos claros, tem cabelos grisalhos compridos, presos com uma piranha. Fala com pesar das roupas e cobertas recém compradas que agora se amontoam ao lado de fora da casa, completamente úmidas e inutilizáveis. “Não tenho mais o que chorar”. Repete inúmeras vezes sobre o violão que havia comprado de presente para a neta. “Vou batalhar e vou comprar um novo. Eu disse para ela ‘não chora, porque a vó vai te dar um violão’, e eu vou mesmo”, afirma, com uma voz que demonstra segurança mesmo diante do caos. 

Coleções de DVDS, vinis, fita cassete. Malas com documentos. Álbuns de fotografia. Lembrança de um aniversário de 15 anos. Pacote de queijo ralado fechado com um prendedor de roupa. Pacote de café fechado. Quadros. Tudo isso se mistura pelas ruas do Sarandi. Fragmentos do dia a dia com os simbolismos materiais que cada pessoa guarda como recordação. Por onde recomeçar uma vida? Novas mobílias e eletrodomésticos, mas também novas coleções, novas fotos, novas memórias.

Cecílio está há 26 dias fora de casa. “Moro lá naquela parada de ônibus”, mostra ele. A placa do ônibus está colada em um poste de energia elétrica, que ainda está cerca de um quarto debaixo d’água. Com a mão enfaixada por conta de uma mordida do cachorro Scooby, Cecílio encontra conforto em ter encontrado o vira-lata caramelo, no qual foi obrigado a abandonar por conta da própria sobrevivência. Empolgado, mostra os vídeos do cão restabelecendo a amizade com o dono. Por outro lado, lastima a provável perda dos 200 vinis, da vitrola e outros equipamentos musicais. Acredita que não será possível permanecer na casa, que é de madeira e foi construída há 90 anos.

Moradores do Sarandi têm protestado por conta da demora em baixar a água no bairro.  A principal reivindicação é o conserto do dique que rompeu durante a enchente e a drenagem das regiões que permanecem alagadas. Soldados do Exército Brasileiro fazem a travessia de áreas secas até pontos alagados com residentes  que ainda não conseguiram voltar para suas casas. Relatos de saques e assaltos amedrontam os moradores que ainda não puderam voltar.

Na esquina da Avenida Faria Lobato com a Avenida Tolêdo Piza, Luiz Carlos Silva Bicudo do Amarante, dorme embaixo da marquise do Mercado Alberti. Aos 70 anos, estava há três noites dormindo na rua e enfrentou os dias mais frios até agora em Porto Alegre para estar mais perto de casa. Sentado em uma cadeira, vestindo um poncho, uma calça de abrigo laranja, estava rodeado de doações de cobertores e um fardo de água mineral. Resiliente, com poucos dentes na boca, apenas os laterais embaixo, afirma que “o negócio é ficar vivo”. Com a água ainda alta, não sabe os prejuízos que teve, mas a voz calma traz a tranquilidade de que o cartão do banco que escondeu com a senha, ainda permanece no mesmo lugar.

Mesmo ainda não tendo conseguido voltar para casa, os náufragos do bairro Sarandi transitam entre o desespero de perder tudo e o alívio em estar vivo. São dias de limpeza, recomeço, mas também protestos e reivindicações na Zona Norte porto alegrense.

"Aline,
Existem momentos na vida da gente incomparáveis. Momentos inexplicáveis e pessoas especiais como você, que conseguem fazer de pequenos momentos grandes instantes. Te desejo todo sucesso e um amor para virar a sua cabeça.
Queria te dizer muitas coisas, mas o sono e o ônibus não deixam.
Feliz aniversário."

As notícias internacionais foram as mais clicadas da semana, mas o Ponto de Partida e os textos do Journal of Democracy equilibraram o jogo:

1. G1: A vista do monte Fuji, no Japão é encoberta por cortina,

2. Indy100: Os melhores memes de Trump condenado.

3. Deadline: A morte do ator Johnny Wactor, da série General Hospital, aos 37.

4. Meio: O Ponto de Partida sobre o paradoxo da tolerância.

5. Journal of Democracy em Português: PDF com a íntegra dos artigos do novo parceiro do Meio.

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