Edição de Sábado: Nísia na mira
Entre tantas emergências, o assunto era o mais crítico para a pasta na última quarta-feira: a epidemia de dengue. O país estava prestes a ultrapassar 2 milhões de casos prováveis da doença em 2024. Desde o início da série histórica, em 2000, a marca representa um recorde de contágios em apenas três meses, segundo o Painel de Monitoramento de Arboviroses do Ministério da Saúde. Com sua equipe de cientistas, a ministra Nísia Trindade desembarcou do elevador no primeiro andar do prédio do Ministério da Saúde para a entrevista com quase uma hora de atraso. “Estavam finalizando os dados”, justificou um dos assessores que a aguardavam. Ela se encaminhava para a mesa e conversava, sorridente, com a secretária de Vigilância em Saúde e Ambiente do Ministério da Saúde, Ethel Maciel, e com o pesquisador da Fiocruz Rivaldo Venâncio, autoridade em matéria de dengue.
Todos os auxiliares vestiam colete do SUS, o Sistema Único de Saúde. Quebrando um protocolo tradicional em Brasília, em que a figura de maior mando costuma falar por último, Nísia fez questão de abrir a coletiva. Enquanto falava, como que abençoava os subordinados, tocando nas mãos de quem era responsável por cada aspecto das ações de monitoramento e combate à epidemia. “Aqui nós temos especialistas”, enfatizou a ministra que foi a grife escolhida pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva contra o negacionismo do governo anterior. Lula lançou mão de Nísia para demonstrar que a ciência voltava para a Esplanada dos Ministérios na pasta que havia sido entregue à mistura de charlatanismo e militarismo.
Nísia exibia firmeza e serenidade na voz. “Hoje há 120 países com registro importante de dengue”, frisou. Buscou reforçar o entendimento de que a situação é complexa demais para ser resolvida com respostas simples. Havia sido aconselhada a fazê-lo por Rivaldo Venâncio, que a acompanhava, antes da conversa com jornalistas. A ideia foi reforçada pelo cientista, que lembrou do tempo em que foi coordenador da campanha de combate à doença no Rio de Janeiro. “Eu era vidraça, o povo jogava (pedra)”, disse o pesquisador durante a entrevista. “Eu sei como é isso. Se o problema fosse fácil, já teria sido resolvido. Esse é o alerta que a gente tem que ter.”
Nada ocorreu naquela coletiva que remetesse a uma necessidade de “falar grosso”, como ela mesma aventou a Lula na bronca generalizada do presidente na reunião ministerial que inaugurou a semana. Com a popularidade em queda, o presidente convocou seus ministros a melhorar suas respectivas gestões e a comunicação de seus feitos. Nísia foi a mais cobrada. Além da dengue, a ministra enfrenta uma intensa campanha da oposição bolsonarista quanto ao atendimento dos ianomâmis, tendo visto o número de mortes dos indígenas aumentar em 2023. Sua defesa é a e que o governo anterior subnotificava os óbitos. Nísia também lida com assédio incessante do Centrão e chegava à reunião acuada por uma reportagem do Fantástico sobre a péssima condição dos hospitais federais do Rio. Com tanto diante de si, deixou transparecer o que sentia. O tom do noticiário que se seguiu foi o de uma mulher fragilizada, vulnerável, que precisou ser “amparada”. Nas redes, a extrema direita usou o episódio para alardear que Lula “trata mulher mal” e “fez uma mulher chorar”.
Em entrevista a Bernardo Mello Franco, no Globo, Nísia admitiu ter se emocionado durante a reunião com Lula. Reafirmou seu desagrado em relação a cobranças, que não vieram do presidente, de que ela precisa “falar grosso” para demonstrar firmeza. “De fato, eu me emocionei. É uma pressão muito grande você fazer seu trabalho, ter uma história, e ser tachada de má gestora, de frágil”, disse Nísia. "Na reunião, eu falei: 'Presidente, não queria dizer isso, mas tenho que fazer um desabafo diante das minhas colegas ministras. Muitas vezes, as pessoas falam que eu devo falar grosso. Não vou falar grosso. Sou mulher, e uma mulher pode ser firme sem falar grosso. Quero respeito ao meu modo de ser'”. A ministra ainda sublinhou o fato de ser a primeira mulher ministra da Saúde no Brasil, mesmo com 75% da força de trabalho do SUS sendo feminina.
A pressão sobre Nísia também provocou uma reação da bancada feminina do PT, composta por 18 mulheres. Elas se reuniram na quarta-feira, antes da festa de aniversário do partido, e decidiram iniciar uma mobilização para um gesto de apoio público à ministra. De acordo com a deputada Erika Kokay (PT-DF), na próxima segunda-feira, dia 25, a bancada feminina da base aliada terá um encontro com Lula, no Palácio da Alvorada. Esse assunto será colocado para o presidente e para as deputadas e senadoras dos demais partidos que integram a base governista. “É importante que ela fique e seja fortalecida. E nós precisamos de um gesto público de apoio a ela, porque tem um componente de machismo nessa pressão que ela está sofrendo”, disse a deputada ao Meio.
O machismo é parte inegável do cerco a Nísia. Mas sua gestão e os resultados dela também estão sendo questionados. “Existe uma leitura um tanto equivocada sobre o que dá ou não para o ministro da Saúde fazer”, explica Ana Maria Malik, coordenadora do FGVsaúde da Fundação Getulio Vargas. “O papel da ministra da Saúde é de conversa, de concertação. É de desenhar políticas, viabilizar que essas políticas sejam implantadas e monitorar para ver se elas estão sendo tocadas nas cidades e estados.” E para isso é preciso traquejo político — algo que Nísia esteve decidida a exibir nos dias que se seguiram.
De mãos dadas
Na terça-feira, Lula chamou Nísia no Alvorada. Era para expressar seu apoio e reafirmar aos secretários da pasta o que ele havia dito na reunião da véspera: “Nísia é minha escolha pessoal”. Ela havia reclamado ao chefe sobre o excesso de autonomia de determinados subordinados, alguns tidos como “estrelas” por funcionários do órgão com quem o Meio conversou. Depois de uma pandemia e do negacionismo do governo anterior, a ministra povoou seu ministério de experts, todos querendo mostrar serviço, iniciativa. No Alvorada, o presidente pediu que colaborassem com a ministra na comunicação e reforçou que dessa escolha ele não abriria mão.
Tal protagonismo de auxiliares havia ficado claro no episódio de três semanas atrás: a edição de uma portaria sobre o acesso ao aborto legal, sem o conhecimento da ministra, causou problemas para o governo. A norma técnica foi divulgada no dia 28 de fevereiro pelas secretarias de Atenção Primária e de Atenção Especializada à Saúde. Nísia, porém, só ficou sabendo do documento no dia seguinte, quando participava de um evento do lançamento da Casa de Governo Yanomami, em Boa Vista (RR).
Àquela altura, os evangélicos da Câmara dos Deputados, segmento ao qual o governo tem feito gestos de aproximação, estavam em polvorosa. Nas redes, a questão do aborto estava inflamada. A norma anulava um documento da gestão de Bolsonaro que definia em 21 semanas e seis dias o limite do tempo de gestação para a realização de um aborto legal. Não há respaldo legal ou científico para esse número. Nísia mandou revogar a portaria. Não discutiu o mérito, só mandou cancelar o documento.
Nísia demitiu um dos secretários que assinaram a nota, Helvécio Magalhães, que respondia na Secretaria de Atenção Especializada à Saúde. Também mandou embora Alexandre Telles, que dirigia o departamento de Gestão Hospitalar, após a reportagem do Fantástico com denúncias de precarização na rede de hospitais federais do Rio de Janeiro. Telles havia elaborado um relatório com irregularidades que foi a base da decisão de Nísia de intervir nos seis hospitais federais no estado, o que causou revolta em setores do PT no Rio de Janeiro, que tinham influência sobre as contratações e reclamaram de terem sido surpreendidos. A revolta só foi sanada após a ministra nomear a petista Cida Diogo para chefiar os hospitais. Ao Globo, Nísia justificou a demissão de Telles por precisar de alguém com mais experiência e assegurou que Cida foi escolha sua. “Houve um estranhamento, mas agora está tudo pacificado e a Nísia tem nosso apoio”, disse ao Meio o carioca Alberto Cantalice, membro do diretório nacional do PT e diretor da Fundação Perseu Abramo.
Seguindo a cronologia dos endossos, na terça, Nísia já saiu do Alvorada com a intimação de comparecer, ao lado do presidente, ao jantar de comemoração dos 44 anos do PT no dia seguinte. Lula passou cerca de 3 horas na festa. Nísia chegou na mesma hora que ele e ficou mais uma hora após a saída do presidente. A ministra e o vice-presidente Geraldo Alckmin eram os únicos não petistas que ficaram na área reservada a Lula.
Era um lugar onde muitos petistas históricos queriam estar, mas não tiveram esse privilégio. José Dirceu, por exemplo, que tem voltado à política de forma pública nos últimos tempos, não estava nesse cercadinho. Estava com os demais participantes da festa, que chegaram a pagar R$ 350, R$ 5 mil e R$ 20 mil pela entrada. “Era como se Lula tivesse a levando pela mão”, disse um petista. Lula a conduziu ao palco quando foi fazer seu discurso e, depois, ela se sentou em uma das mesas reservadas próximas do presidente.
Depois que Lula saiu da festa, a ministra passou a ser uma atração. E uma aposta de que colar a imagem a ela poderia render votos. Petistas pediam para fazer selfies, principalmente os que pretendem disputar eleições municipais. E Nísia atendeu prontamente aos pedidos, sugerindo que, mesmo não filiada a partido político, sabe exercer politicamente a posição que ocupa. “Nísia não é só técnica”, insiste um auxiliar. “Alguém que presidiu uma instituição como a Fiocruz, no governo negacionista de Jair Bolsonaro, e conseguiu firmar uma parceria capaz de garantir uma vacina não é dotada de habilidade política?”, questionou. “Ela não é filiada, não exerce a política partidária, mas tem sim perfil político.”
A professora Ana Maria Malik concorda com essa avaliação. “Ter presidido a Fiocruz a coloca numa posição bastante privilegiada nesse sentido. A instituição tem escola, fábrica, museu. Certamente, ali, ela desenvolveu jogo de cintura. Agora, no governo passado, tivemos general, cardiologista, oncologista. Quem sabe qual o melhor perfil para o cargo? O melhor perfil é o de alguém interessado na saúde da população.” Malik exalta ainda o fato de que Nísia não é médica como algo positivo para o papel. A ministra é doutora em Sociologia e mestre em Ciência Política, pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj – atual Iesp). Sua graduação foi em Ciências Sociais pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), onde é professora.
Me dá um dinheiro aí
O endosso de Lula também passou recado a partidos do Centrão. O ministério é alvo da cobiça porque é um dos maiores orçamentos da Esplanada: R$232 bilhões previstos para 2024. Além disso, a pasta é o principal destino das emendas parlamentares em 2024. Dos R$47,6 bilhões reservados para indicações individuais, das bancadas estaduais e das comissões do Congresso, R$22,1 bilhões são na área da saúde.
Mas, se os gestos de Lula serviram para aplacar, pelo menos momentaneamente, as pressões internas do governo sobre Nísia, ou mesmo do PT, esses movimentos estão longe de apaziguar a relação com o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), furioso com o fato de não ter conseguido o domínio da pasta. Lira lidera o Centrão e assunto “Nísia” o fez explodir quando abordado pelo Meio. “Que situação chata! Vou ter que botar uma faixa aqui dizendo que nós não queremos o ministério da Saúde para vocês entenderem?”, questionou o alagoano. “Não queremos o ministério da Saúde. Não queremos espaço nenhum!”
Em uníssono com a sensibilidade dos bolsonaristas nas redes sociais, Lira seguiu. “Foi comigo que ela chorou? A doutora Nísia teve o problema lá do Lula, da dengue, das mortes dos ianomâmis, da execução orçamentária. Não fomos nós que cobramos. Foi o presidente da República.” Só que o deputado não resiste a devolver a indireta e mandar sua fatura. Na mesma conversa, Lira aproveitou para cobrar o cumprimento dos acordos de plenário em relação aos textos (votados na Câmara) e o “cumprimento do orçamento”.
No início de fevereiro, um dos primeiros atos do presidente da Câmara, após abrir o ano legislativo, foi a aprovação de um requerimento, endossado por outros líderes, de informações sobre critérios para a destinação de recursos da pasta para municípios. O requerimento foi respondido pelo ministério da Saúde no início de março, em um documento de seis páginas enviado à Câmara. As respostas não foram suficientes para Lira. Na reprimenda que fez ao Meio, acrescentou: “Vocês não têm nenhuma vontade de pesquisar o que está acontecendo no ministério da Saúde. Se tiver vontade, vai ver que o ministério está tratando municípios iguais de maneira diferente, nos instrumentos, nos investimentos”. O deputado diz que a pasta privilegia prefeitos e governadores aliados e do PT com verba extra. “Essas respostas não vieram e nós estamos cobrando.” No documento, o governo alega que alguns casos de veto no envio de emendas é que o valor pedido supera o que é permitido para as indicações de deputados e senadores.
Para fontes do governo, no entanto, Lira “reclama de barriga cheia”. Em julho do ano passado, em meio às discussões sobre a reforma tributária na Câmara, Alagoas foi o estado mais beneficiado pela liberação de emendas parlamentares na área da saúde. Outro ponto enfatizado pelo ministério é o alto índice de execução das emendas. Segundo a pasta, 98% das emendas parlamentares alocadas na Saúde foram pagas em 2023.
Especialista em gestão de saúde, Ana Maria Malik explica que, em se tratando de sistema de saúde, as emendas não poderiam ser resolvidas só entre o parlamentar e algum político local, como muitas vezes é feito. “Aquela ambulância, aquela ajuda à Santa Casa, é o que há de mais necessário para aquele município ou para aquela organização? Isso poderia ser mais bem negociado se houvesse uma instância regional, e isso envolve a governança. Agora, tem que ver com quem se quer conversar.”
Em entrevista à CNN, Nísia rechaçou a ideia de que está em conflito com os parlamentares. “Isso me incomoda, ‘Nísia versus Centrão’. Eu acho uma visão muito superficial. O Brasil, de 2017 para cá, teve uma mudança muito grande da questão dos papéis do Legislativo e do Executivo. É disso que se trata. Não é de pessoas, de partidos isolados. É essa reflexão que o Brasil precisa fazer, a meu ver. E fogo, para mim, nunca é amigo."
A recém-nascida Pindó Mirim
O Rodoanel Mário Covas é velho conhecido dos paulistanos. Pela via, passam diariamente cerca de 65 mil veículos com destino à urbanização desenfreada. A implementação do anel rodoviário e seu consequente impacto na circulação chamou a atenção de grandes empreendimentos. Não demorou para que prédios residenciais e comerciais o cercassem. Telhas de pequenas casas, bares e padarias tomaram conta da paisagem. Espremido entre as construções, no entanto, na altura do Pico do Jaraguá, há um atalho para a tradição. Desde a década de 1960, indígenas Guarani ocupam a região localizada no noroeste da Grande São Paulo. Foi quando surgiram as aldeias Tekoa Ytu, Tekoa Pyau e Tekoa Ytakupe – nesta última, Neusa Quadro vivia desde 2010.
Deixando sua aldeia natal no Paraná, rumou para São Paulo com o intuito de encontrar a mãe, que já morava em Ytakupe. Ali fincou suas raízes até março passado, quando o desejo gritou alto: deveria fundar sua própria aldeia. Assim nasceu Pindó Mirim. A terra fica no território ampliado da Terra Indígena Jaraguá. Embora originalmente a área demarcada seja de 1,7 hectare, os indígenas ocupam e lutam pela ampliação para 532 hectares. A demanda já foi analisada pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e aguarda a homologação pelo governo federal. Mas a disputa pela terra é apenas um dos desafios enfrentados pelo povo de Pindó Mirim. Ao Meio, Neusa lembrou o primeiro ano da recém-fundada comunidade.
O que significa Pindó Mirim?
Quando as famílias vão fundar aldeias, colocam nomes que têm sentido. E aqui a gente escolheu Pindó Mirim porque, caminhando pelas matas, vemos muitas palmeiras. E pindó, em tupi guarani, significa essas espécies que dão muitas coisas ao povo Guarani, como o palmito.
Por que você fundou a comunidade?
A ideia apareceu através dos sonhos. E não foi só eu, outras pessoas sonharam, como pajés que nem moram aqui e vêm mais ou menos a cada três meses visitar as aldeias do Jaraguá. É um pouco difícil contar esses conselhos porque vêm da língua, né? Às vezes não tem nem tradução. Mas eles avisaram que, se esse lugar não fosse uma aldeia, minha família não estaria mais aqui. Disseram que visualizaram a comunidade neste local antes mesmo de ter os moradores. Senti tudo misturado. Ansioso, medo, ‘será que eu tô fazendo certo?’. Mas a gente acredita muito nos sonhos e não vieram avisos de que este não era o caminho. Então, continuamos porque eu também queria ter um espaço para os meus filhos ficarem tranquilos, plantar, fazer reflorestamento, recuperar as nascentes e viver a nossa cultura.
E como foi o processo de instalar uma comunidade?
Começou só com meus familiares e hoje somos em 35 pessoas e 13 famílias. Meu pai é o mais velho, tem 66 anos. O mais novo é o meu netinho, que está com cinco meses e já nasceu na aldeia. Os adultos se dividem nas atividades, cada um vai para o que mais gosta. Se a mulher quer plantar, planta. Se o homem quer plantar, planta. Foi um ano de muitas e muitas lutas e tivemos resultados: conseguimos cultivar os alimentos tradicionais, saudáveis e tudo orgânico. Plantamos o nosso milho, do povo Guarani, que é colorido. Temos melancia, batata doce, mandioca, banana e cana. Está dando tudo. O meu pai até plantou um pouquinho de arroz e colheu oito quilos. A intenção é aumentar os plantios neste ano. Também conseguimos que a van escolar passasse pela aldeia. Estamos sempre na luta para garantir o espaço às crianças que estão chegando. Mas não é fácil.
Hoje quais são as principais dificuldades?
O acesso é um pouco difícil porque a estrada que traz até a aldeia é o único acesso que a gente tem. Só que ela não é asfaltada, então um carro não consegue passar nos dias de chuva. Se precisamos sair para ir ao hospital, por exemplo, não dá. A própria van que pega as crianças não passa na estrada. A única opção que a gente teve é que ela parasse na pista do Rodoanel para pegar os alunos e levar à escola, que fica em outra aldeia, há uns 20 minutos daqui. Além disso, não temos energia elétrica. A gente tá com placa solar, mas as duas baterias estragaram. E como estamos entrando em uma época de frio, para não ficarmos sem luz à noite com as crianças pequenas, vendemos camisetas e artesanatos, e pedimos o apoio das pessoas para juntar o dinheiro para comprar os aparelhos.
A terra ocupada ainda aguarda a homologação. A disputa política e jurídica envolvendo o Marco Temporal também segue de pé. Como vocês convivem com essa insegurança?
Não tem previsão para sair a homologação, mas a nossa história está em yby, na terra, sempre esteve. E continuamos porque é difícil, mas é bonito retomar o que ficou muito tempo para trás e agora a gente está vivendo de novo. Estamos aqui para proteger o território. Se não cuida, ele é invadido. E na aldeia lutamos a batalha dos indígenas de todo o Brasil. A gente tem fé. Na nossa casa de reza, pedimos para que coisas ruins não aconteçam. Mesmo assim, o Marco Temporal nos dá medo porque, se ele passar, vai ser um genocídio. Vamos morrendo pouco a pouco porque a gente não conseguiria viver igual a vocês, os não indígenas, na cidade ou sem a natureza, as nascentes e os pássaros. E aí não teria mais sentido ter vida. E eu, como liderança, sinto a violência na pele, porque ainda temos que lutar para que a sociedade nos reconheça como povo, para que respeite e parem de nos atacar. Até podemos falar línguas diferentes, mas a nossa carne e o nosso sangue são os mesmos.
Da casca ao talo
A Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) estima que um terço da produção global de alimentos seja desperdiçada todos os anos, sendo o Brasil um dos dez países que mais jogam comida fora. Em 2019, foram jogados quase um bilhão de toneladas de comida no lixo pelo planeta, enquanto 690 milhões de pessoas estavam subnutridas, segundo um relatório do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA). Só no Brasil, são 27 milhões de toneladas desperdiçadas anualmente, uma média de 60 quilos por consumidor, enquanto 33 milhões de pessoas passam fome e 70,3 milhões passam por insegurança alimentar. Entre os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da Agenda 2023, da ONU, a meta 12.3 é de reduzir pela metade o desperdício global de alimentos per capita até 2030.
Segundo a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), 50% do desperdício de alimentos no país ocorre no manuseio e transporte; 30% em comercialização e abastecimento; 10% ocorre na colheita; e outros 10% em restaurantes, supermercados e consumidores em casa. Cecília Lume, nutricionista especialista em comportamento alimentar e nutrição clínica, explica que cada alimento tem uma indicação de umidade e temperatura adequada para armazenamento e transporte. Ela ressalta a necessidade de uma fiscalização eficiente do transporte dos produtos a fim de reduzir o desperdício. “Se o alface, que precisa de uma condição específica, é transportado com outro alimento que precisa de outra condição, a gente pode ter uma perda do produto.”
Pode parecer apenas um problema alimentar. Mas poupar alimentos é salvar uma cadeia natural do meio ambiente. Reduzir o desperdício é conter as áreas de desmate para o plantio, que diminui o consumo de água na irrigação, o que também representa uma redução nas emissões de poluentes na atmosfera que causam o aquecimento global.
A necessidade do reaproveitamento integral dos alimentos faz com que iniciativas de diferentes partes do planeta surjam para evitar o desperdício. Nos Estados Unidos, quase 40% de todos os alimentos cultivados anualmente não são vendidos ou consumidos, deixando a mesma pegada de carbono que toda a indústria da aviação americana. Para reverter esse quadro, cresce o número de startups que oferecem produtos criados a partir de alimentos que seriam descartados pela indústria. Esse mercado foi avaliado em US$ 53,7 bilhões em 2021 e estima-se que chegue a US$ 97 bilhões em 2031, segundo a Allied Market Research. No Brasil, ONGs e startups sociais se unem para conectar alimentos saudáveis a pessoas que têm fome.
Tem quem queira
A ideia de criar a startup social Comida Invisível surgiu quando Daniela Leite e seu filho Pedro queriam fazer geleia e foram até o Ceagesp, em São Paulo, comprar frutas orgânicas. Eles se indignaram com as pilhas de mamão, abacaxi e tomate jogadas ao lado dos boxes. “Eram alimentos que a gente certamente poderia ter em casa, mas, por estarem em ponto de mesa, tinham perdido o valor comercial”, explica a CEO.
O Comida Invisível atua por meio de uma plataforma tecnológica, conectando por geolocalização empresas, indústria alimentícia, redes de hotéis, supermercados, restaurantes e hospitais com ONGs que atuam com pessoas em situação de vulnerabilidade social. A plataforma cadastra as doações recebidas nos locais coletados e conecta as ONGs próximas para combinar o horário e local de retirada dos alimentos doados. A startup ainda oferece auditoria sanitária às organizações para garantir a qualidade dos alimentos oferecidos e um relatório online em tempo real aos doadores com o impacto social e ambiental gerado pela destinação dos produtos.
Em Nerópolis (GO), a instituição está construindo as bases do primeiro município sem desperdício de alimentos do Brasil. “Nesse local, a gente faz um mapeamento em profundidade das pessoas em situação de vulnerabilidade social, entendendo os saberes dessa população, faz uma conexão com a Secretaria de Educação da cidade, para a gente levar aulas de combate ao desperdício para o currículo das escolas municipais, estaduais e particulares, além do mapeamento do campo para trazer os alimentos”, explica Leite.
“É uma cidade de 30 mil habitantes onde, anualmente, nós falamos praticamente com todos, desde supermercados, campo, indústria, toda a cidade engajada para virar essa referência mesmo”, comenta Rafa Myga, sócio do Comida Invisível e presidente do instituto fundado pela startup. Segundo a organização, em um ano de projeto, 30% das famílias em vulnerabilidade social no município passaram a receber alimentos com recorrência.
No Lollapalooza, que começou nesta sexta-feira e vai até amanhã, eles vão fazer o mesmo que fizeram no The Town, que é o encaminhamento correto do que sobra da operação do McDonald's. Daniela ressalta a segurança sanitária do procedimento ao lembrar das diversas visitas sanitárias durante o festival. “Sempre foi tudo tranquilo, porque realmente a gente cuida muito do processo para que o alimento chegue na ONG com total segurança e condições de uso.”
Segurança em primeiro lugar
Daniela Leite garante que não há nenhum risco algum no consumo dos alimentos oferecidos pela plataforma. “Até porque trabalhamos com grandes marcas. Eu não quero que tenha abalo [de imagem] nem para o Comida Invisível nem para uma Ambev, um McDonalds, uma Kraft Heinz, que usam a gente para fazer essas doações.” Rafa Myga ainda explica que a startup tem uma parceria com nutricionistas espalhados pelo país que fazem vistorias nas ONGs para garantir a segurança dos produtos, além de oferecer treinamento para as organizações.
A nutricionista Cecília Lume afirma que o consumo de alimentos por essas iniciativas são seguras, porque organizações como Banco de Alimentos, o programa Mesa Brasil Sesc e o próprio Comida Invisível fazem a manipulação dos alimentos para que cheguem seguros nas instituições previamente cadastradas. “A segurança vai ser feita com base nas boas práticas de higiene dentro dessas cozinhas [das organizações e startups] para poder chegar nessas instituições [ONGs] seguras para consumo”, explica. “Então precisa ter nutricionistas, técnicos, ou profissionais capacitados para poder avaliar esses produtos, ver se realmente eles podem ser consumidos e depois fazer esse processamento para que ele chegue seguro até as instituições.”
Lição de casa
Em que pese a parcela do desperdício nas cadeias de produção e distribuição, cada pessoa também pode contribuir com a redução do descarte de alimentos. Para Rafa Myga, “todos nós desperdiçamos dentro de casa ou no próprio supermercado, porque não queremos pegar a cenoura que está com a perna torta, queremos a bonita”.
Cecília Lume explica que as pessoas podem colaborar evitando o desperdício e se conscientizando das partes dos alimentos que podem ser utilizadas, não só por reduzir o lixo, mas pela absorção nutritiva. “Dependendo do alimento, essas partes que não temos o hábito de utilizar contêm teor nutricional muito bom, com minerais, fibras, vitaminas que estão presentes nas cascas ou nas folhas.” A folha da cenoura, por exemplo, é rica em ferro e cálcio. O mesmo ocorre com a casca da maçã, que é rica em pectina, uma fibra, que pode ajudar no controle glicêmico no momento da ingestão da fruta.
Ela sugere inserir essas novas partes em pratos que já estão consolidados na alimentação diária. “Picar essas folhas e colocar no meio do arroz e ir inserindo em preparações que já são comuns à família, para não criar uma alimentação totalmente diferente, é uma forma de conseguir reduzir o desperdício. A cozinha é uma grande aliada nesse processo.” A nutricionista lembra que muitas vezes os próprios supermercados já retiraram as folhas e cascas dos produtos. Uma alternativa pode ser procurar uma feira, que geralmente vende os alimentos inteiros.
Há muitas alternativas para aproveitar ao máximo os alimentos, da casca ao talo. O Mesa Brasil Sesc oferece ações educativas, ensinando receitas práticas e nutritivas para aproveitar os ingredientes mais básicos do dia a dia, sem desperdícios. Eles oferecem um livro de receitas que mostra como fazer de cocada com cascas de melão a croquete de batata-doce e nhoque de banana, que pode ser baixado aqui. Bom apetite!
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