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A democracia na era da hipermodernidade

O cientista político Marco Aurélio Nogueira explica como a vida acelerada, desordenada e fragmentada desses tempos demanda uma atualização dos sistemas democráticos para que eles sobrevivam

Imagine um vulcão em erupção. A lava, os gases, os detritos, a destruição emergindo em diferentes estados, com violência, ainda que lentamente. É essa metáfora que o cientista político Marco Aurélio Nogueira escolhe para abrir seu novo livro, A Democracia Desafiada. A de múltiplas frentes de ataque a um sistema democrático que já não atende mais os anseios das pessoas, sobrecarregadas e assustadas com a velocidade e a intensidade das mudanças nas interações sociais, nas relações de trabalho, entre países, entre grupos. Nogueira reúne essas transformações todas num único conceito: o de hipermodernidade. “É como se a humanidade tivesse recebido uma dose mais forte de modernidade na veia”, ele explica. A consequência é uma vida acelerada e fragmentada, em que consensos e pactos sociais ficam virtualmente impossíveis de se alcançar. E quem sofre é a democracia.

Professor aposentado da Unesp e articulista do Estadão, Nogueira admite que não se interrompe uma erupção vulcânica já iniciada. Mas lembra que é possível monitorar o clima, evacuar seu entorno. Transpondo a analogia para a democracia, é urgente “recompor a política”, ele defende. Torná-la civilizada e capaz de civilizar. A tarefa não cabe a um indivíduo. Seria de partidos políticos, por exemplo — que vêm falhando miseravelmente. Os identitarismos também não ajudam, somam-se à fragmentação que nos torna impenetráveis a conversas e acordos. “Mas a salvação da democracia certamente passa por essa recomposição. E pela educação.” Confira os principais trechos da entrevista a seguir.

O senhor pontua em seu novo livro que a transição que protagonizamos atualmente tem três eixos: a globalização, o capitalismo informacional e a hipermodernidade. Vamos começar explorando um pouco esses conceitos?
Deles, o que pode construir melhor o cenário atual é o que eu chamo de hipermodernidade. O ponto de partida do livro é uma pergunta: nós podemos continuar tendo democracia mantendo o modo de vida que estamos vivendo? A resposta preliminar era de que poderíamos, desde que algumas reformas e mudanças fossem feitas na própria democracia. Não tanto na ideia de democracia como valor. Nesse sentido, ela está bem posta no mundo. O problema é a democracia no plano prático, como sistema. Ou seja, a democracia representativa, que se consolidou como modelo de funcionamento do Estado moderno. A premissa é: ou essa democracia sistêmica se atualiza diante do modo de vida atual ou ela vai estar ameaçada o tempo todo e, quem sabe, correndo risco de não conseguir se reproduzir, de abrir espaços pouco adequados a correntes políticas antidemocráticas, que são a maioria das correntes de extrema direita.

Como cada um desses eixos contribui para essas ameaças?
O problema da globalização é que, desde que se instalou nos anos 1970, 1980, ela foi se tornando cada vez mais impetuosa. A característica que ela traz embutida em si, muito provocada por essa impetuosidade, é uma profunda mercantilização de tudo. Do jornalismo à educação, da cultura à política. Por outro lado, a globalização produz um enfraquecimento, até certo ponto progressivo, dos Estados nacionais. Eles continuam existindo, evidentemente, mas com uma capacidade reduzida gradativamente de controlar seu território, sua economia e sua população. Isso provoca um desgaste dos Estados nacionais nos dias de hoje. E, junto com a globalização e impulsionada por ela, vem a revolução tecnológica, sobretudo aquela entendida como revolução informacional, de onde vem a expressão capitalismo informacional. As interações — seja entre pessoas, instituições, governos, empresas, regiões — ganharam uma dinâmica completamente fora de controle, muito difícil de ser monitorada. Além disso, o capitalismo informacional representa a dissolução das formas tradicionais de trabalho. As mudanças, numa linha de evolução, dão saltos gigantescos em pouco tempo.

Essa espécie de pacote que é globalização, capitalismo informacional, um consumo desenfreado, interações dinâmicas, falta de controle sobre a vida… Tudo isso eu junto no conceito de hipermodernidade.

Esse é um conceito seu?
Não, ele inclusive tem designações variadas, mas que convergem para o mesmo ponto. Também pode ser chamado de modernidade líquida, como fazia o [sociólogo e filósofo polonês] Zygmunt Bauman; pode ser chamado de segunda modernidade, como dizia o [sociólogo alemão] Ulrich Beck; ou de modernidade reflexiva, no termo do [sociólogo britânico] Anthony Giddens. E pode ser confundido com a ideia de pós-modernidade, de que eu não gosto, porque ela apareceu muito vinculada à estética e porque nós não superamos absolutamente tudo da época de nossos pais ou avós. O que existia foi sendo reproduzido, modificado, adquirindo novas abordagens. A hipermodernidade significa uma espécie de dilatação radicalizada da modernidade. É como se nós tivéssemos tomado uma dose mais forte de modernidade na veia da humanidade.

Quais os efeitos disso?
Um é a velocidade da vida. A modernidade sempre foi estudada pelos filósofos, sociólogos, etc. como uma ruptura com a lentidão da vida medieval, da vida pré-moderna do final do século 17. A Revolução Industrial foi um marco na aceleração da vida; depois, os meios de comunicação, de reprodução das palavras. Esse aumento de velocidade foi exponenciado e radicalizado nos últimos 30 anos, com a revolução tecnológica informacional. A mudança nas relações de trabalho vêm nessa esteira e é importante porque o trabalho configurava as classes sociais. Você definia os grupos da sociedade pelo trabalho. Dependendo de onde o cara trabalhava, ele era operário, classe média, colarinho branco. Definia as ideologias também. No mundo físico do trabalho, as pessoas conspiravam, se aproximavam, trocavam ideias. Bem, agora, se produz um excesso de informação sem a devida marcação social. As pessoas trocam informações sem a demarcação de classe, todos consomem tudo, mesmo que em graus evidentemente diferentes. Isso levou a hipermodernidade ao campo da fragmentação.

Como assim?
As sociedades hipermodernas ficaram subdivididas em grupos que não conseguem se reunir com facilidade. A ideia de povo-nação, por exemplo, que é uma ideia clássica da vida moderna, fica posta sob suspeita. Quem é o povo-nação? O soberano da filosofia política, aquele que determina as direções que vão ser tomadas pelos governos? Esse povo-nação hoje é um conjunto de pedaços, de fragmentos que não se comunicam bem e não são vinculados comunitariamente. Eles têm muitos atritos entre si e não há sujeitos, personagens ou instituições que congreguem esses pedaços. Seria o papel dos partidos políticos, em primeiro grau.

Ao nos fragmentar enquanto sociedade a gente fica incapaz de se mobilizar um pelo outro? Ou só se mobiliza pelo nosso pequeno grupo?
É mais essa segunda frase. As mobilizações atuais, tirando algumas exceções episódicas, são, como eu gosto de chamar, tribais. É a minha galera, a sua galera, cada um se mobiliza de seu lado. Antes também talvez já tenha sido assim, a própria divisão classes é uma fragmentação. Na era medieval, havia fragmentação entre senhores, servos e um pouquinho de padres. Depois, os servos se tornaram os operários. Os religiosos também se dividiram, teve a Reforma Protestante. Só que não era como ficou nos últimos anos. Na fragmentação atual, cada grupo tem o seu cacique, sacerdote e curandeiro. Claro que existe uma comunicação, porque você continua tendo cortes de natureza política e ideológica. Então, as tribos que estão à esquerda do corte central se comunicam com mais facilidade, mas não se comunicam com as tribos que estão à direita. Em vez de se comunicar, travam uma guerra uns com os outros de uma maneira caótica. Não é como numa guerra civil, que tem o lado A e o lado B. Você tem um monte de lado trocando tiros, ofensas, cancelamentos. E aí entram as redes sociais.

De que maneira?
É uma guerra sem intermediários, sem instituições com capacidade de pacificar, de organizar. No início do século 20 até os anos 1970, os partidos de massa faziam isso, a começar pela social-democracia, que foi o grande partido do século 20, na minha visão. A social-democracia juntou o mundo do trabalho com o mundo da sociedade, tirou o mundo do trabalho do isolamento e promoveu uma interação em torno de uma ideia de pacto social, que foi o Estado de bem-estar. Foi esse o pacto que vigorou, se não em todos os países, pelo menos na maior parte dos países desenvolvidos. Vigorou também no Brasil, embora de maneira imperfeita. Getúlio Vargas foi uma espécie de patrono do nosso Estado de bem-estar imperfeito. Criou a CLT, permitiu os sindicatos. Até a ditadura militar contribuiu para edificação do Estado de bem-estar com algumas medidas, como o Estatuto da Terra. Mas essa nossa capacidade de ser parte de um pacto social está diminuída.

De que outras formas a fragmentação desafia a democracia?
A democracia é um sistema que depende de alguns recursos para funcionar bem. Um deles é uma forma de unidade da população. Para se transferir do povo para os governantes uma diretriz há de se ter uma unidade mínima que não pode ser forjada em termos estritamente eleitorais. Não dá para você confiar ou esperar que as eleições unifiquem de fato as opiniões. Até porque não tem quem promova isso: os partidos não promovem, eles estão em guerra uns com os outros, interessados em chegar ao poder. Havia partidos, que não existem mais, com uma preocupação de agir socialmente, fora dos períodos eleitorais, havia comitês, eventos, reuniões regulares. Isso sumiu. E a democracia passa a sofrer. Os governos não podem mais se apresentar, com facilidade, como o governo de todos. Olha o Brasil. Pode-se dizer que o governo Lula é o governo de todos? Não se pode, embora ele possa querer se apresentar assim. A Constituição diz que ele é. Mas não é isso que acontece. Veja a Argentina, os Estados Unidos. Donald Trump tem uma possibilidade muito grande de se reeleger. E não é por causa da fragilidade de Joe Biden. É porque Trump consegue falar com uma parte da sociedade americana que está nessa loucura da fragmentação, da hipermodernidade, da busca por alguma salvação.

Essa fragmentação, em contraposição, nos levou individualmente a uma busca por identidades e turbinou o identitarismo?
Não é uma relação de causalidade. O identitarismo se soma à fragmentação, por conta da voracidade dos identitários, que querem ganhar espaço, visibilidade e nessa operação vão atropelando muitas outras pessoas. Ninguém pode se expor nas redes sociais. Elas roubaram o poder de escolha das pessoas. A rigor, nós não escolhemos mais quem somos, mas de algum modo nos teleguiamos por aquela dinâmica louca de Instagram, Facebook, etc. Antes ainda tinha um textão e as pessoas discutindo. Agora, as redes são só um tiroteio generalizado. O fato é que as redes, pela força que têm, tiram muito do nosso poder de escolha, de determinação de opinião. E ainda temos a inteligência artificial. Que garantias temos de que os textos jornalísticos não foram feitos pelo ChatGPT, ou uma tese de doutoramento? Isso provoca um pouco de emburrecimento, uma preguiça de pensar. O Google já faz isso.

E como os partidos e os políticos têm reagido a tudo isso?
Mal, muito mal. Pessimamente. Eles são espectadores hoje. E exploram tudo isso eleitoralmente. Claro que os políticos sempre se elegeram por nichos específicos, uma cidade, um bairro, um estado. Mas agora isso ficou radicalizado. Eles atuam pescando votos nesses diversos fragmentos. Nisso, os identitários ficam fora do jogo. Eles não se põem, digamos assim, na política prática. Não temos um partido identitário dos negros, ou um partido feminista. Talvez, se entendermos a ecologia como identidade, possamos falar do Rede Sustentabilidade como partido identitário — mas talvez eles não gostem disso.

Isso pela esquerda. Mas pela direita o identitarismo está mais enfronhado na política prática, não? Há partidos informalmente ligados a igrejas evangélicas, por exemplo.
Se você transformar o movimento evangélico em identitário, como você fez, eu diria que sim. Mas há dois tipos fortes de identitarismo de direita. Um deles é o religioso, e no caso brasileiro ele é evangélico, como nos Estados Unidos. Aliás, uma parte do movimento evangélico brasileiro foi importada dos Estados Unidos, assim como uma parte do identitarismo progressista, de negros, mulheres e LGBTQIA+. O outro é o identitarismo nacionalista. Principalmente na Europa Ocidental, em países como Alemanha, Portugal, França, Itália. Esse nacionalismo é quase invariavelmente populista e de direita. Ele se baseia numa ideia genérica de pátria, de proteção, que ganhou força especialmente com os deslocamentos populacionais de imigrantes vindo do leste europeu, da África e do Oriente Médio.

E qual é a democracia que podemos almejar na hipermodernidade?
O diagnóstico é que a democracia prática, os sistemas democráticos representativos estão mal das pernas. Não estão conseguindo atender às expectativas das pessoas. Há 30 ou 40 anos, havia pactos, contratos que nos tornavam mais tolerantes com governos, com a política. Para mim, a salvação da democracia passa, inicialmente, pela recomposição da política. Temos que fazer com que a política tenha uma dimensão civil pedagógica. A comunicação dos políticos com a população é uma miséria completa. A nossa classe política, com as devidas exceções, é de péssima qualidade. A comunicação política e governamental não entrou nas escolas. Entrou, aliás, na ditadura e depois sumiu. Hoje, se você falar que quer uma educação moral e cívica, é tido como direitista, bolsonarista. Mas os bons professores educam moral e civicamente seus alunos, tentam fazer isso. É preciso recompor a política para que ela seja civilizada e para que ela civilize, no sentido de difundir formas civilizadas de convivência, de interação. Também para neutralizar a antipolítica. Outra questão é a do contrato social.

Alguma instituição, um partido, uma força, alguém tem de trabalhar para criar condições de aparecimento de uma ideia de pacto, de contrato social. Não é uma coisa absurda pensar nesses termos, diante dos desafios que estão postos da mesa.

Qual seria um pacto possível nessa era?
Pactos na questão ambiental. Como é que se vai entender democracia se começar a faltar água em nível extremo? As pessoas vão parar, pensar, dialogar ou vão lutar pela vida? A sustentabilidade é vital para salvar a democracia. E a educação é a pedra de toque da democracia. Nós precisamos resolver esse problema, que é dificílimo e é pelo menos de médio prazo.

O senhor usa a imagem de um vulcão em erupção para falar da múltipla frente de ataques à democracia. Como se detém uma erupção?
Você tem razão, não se pode impedir. Mas você pode aprender a monitorar o vulcão, o clima, evacuar o entorno. Sei que não é fácil, porque esse movimento depende essencialmente da recomposição da política e da democracia. Isso é o que vai evitar que o vulcão nos devore, na metáfora do livro.

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