O campeão da democracia

Rui Barbosa nunca duvidou da capacidade de seu povo e encarnou o espírito da Justiça numa luta sem tréguas. Capaz de semear para o futuro, ele segue sendo inspiração

Por força da concepção modernista de ruptura histórica que presidiu sua fundação, pouquíssimo há em Brasília que recorde o passado brasileiro anterior a 1960. Talvez o único elemento arquitetônico vindo da antiga sede do Senado no Rio de Janeiro aproveitado na decoração das partes nobres do Congresso tenha sido o busto de bronze de Rui Barbosa, localizado acima da mesa diretora da câmara alta do Legislativo. A obra não escapou à sanha dos terroristas durante a intentona reacionária de 8 de janeiro, quando foi vandalizado pela horda de bolsonaristas que depredou o edifício. Parte da cabeça do busto foi afundada. Reposto em seu lugar de honra, decidiu-se que ele assim permanecerá, para memória daquele dia da infâmia. São cheios de significação tanto o fato de ser praticamente o único elemento decorativo que sobreviveu do Rio nas dependências nobres do Congresso, quanto o ataque que sofreu dos representantes selvagens do autoritarismo reacionário de Bolsonaro.

Rui Barbosa foi talvez o senador que mais tempo exerceu o cargo na República. Representou a Bahia por mais de 30 anos. Mas não é por isso que só o seu busto se encontra no Senado. É pelo papel insubstituível por ele exercido no processo de construção da democracia. Na qualidade de campeão indisputável do nosso liberalismo, Rui ocupou proscênio da vida política brasileira durante mais de 50 anos. Com sua atuação intensa como jurista, político e jornalista, Rui deixou imenso legado para as gerações posteriores. Sua memória pública jamais se apagou, preservada e incensada pelos governos que lhe sucederam. O Estado brasileiro adquiriu-lhe a casa no Rio de Janeiro para torná-la um local de peregrinação cívica, tendo depois criado uma fundação com seu nome, dotada de um setor encarregado da administração de sua imagem póstuma. Além disso, escrevendo cerca de quatro horas por dia, Rui deixou uma obra extensíssima, composta de centenas de artigos, petições, pareceres e discursos, em que se posiciona sobre quase todos os eventos e assuntos daquele meio século.

Durante o reinado de dom Pedro II, Rui Barbosa lutou incansavelmente pelas eleições diretas, pela reforma do ensino, pela abolição da escravidão, pelo federalismo.

Na república, foi o principal modelador de sua primeira Constituição e, portanto, o responsável por instituições que existem até hoje: a separação entre Igreja e Estado, o sistema presidencialista de governo, a forma federal de Estado, a independência do poder judiciário — com um supremo tribunal com poderes de jurisdição constitucional —, um tribunal de contas e a garantia do habeas corpus contra a prática de atos arbitrários do Estado. Ao contrário de Deus, que descansou no sétimo dia, Rui não descansou nunca. Como ministro da Fazenda, tentou industrializar o país pela expansão do crédito. Quando a república desandou na ditadura militar do marechal Floriano, lutou pelos direitos civis dos presos junto aos tribunais e a combateu de forma tão encarniçada que foi obrigado a fugir do Brasil para não ser preso. Quando a república chafurdou no conservadorismo de Campos Sales, o combateu com acrimônia pela tribuna jornalística. Quando as potências estrangeiras resolveram criar um sistema internacional hierárquico, que discriminava os países mais fracos, Rui se bateu pela igualdade jurídica de todas as nações na conferência da Haia. Foi por esse tempo que declarou seu credo liberal democrático da tribuna do Senado, em uma paráfrase da oração católica:

“Creio na liberdade onipotente, criadora das nações robustas; creio na lei, emanação dela, o seu órgão capital, a primeira das suas necessidades; creio que, neste regímen, não há poderes soberanos, e soberano é só o direito, interpretado pelos tribunais; creio que a própria soberania popular necessita de limites, e que esses limites vêm a ser as suas Constituições, por ela mesma criadas, nas suas horas de inspiração jurídica, em garantia contra os seus impulsos de paixão desordenada; creio que a República decai, porque se deixou estragar confiando-se ao regímen da força; creio que a Federação perecerá, se continuar a não saber acatar e elevar a justiça; porque da justiça nasce a confiança, da confiança a tranquilidade, da tranquilidade o trabalho, do trabalho a produção, da produção o crédito, do crédito a opulência, da opulência a respeitabilidade, a duração, o vigor; creio no governo do povo pelo povo; creio, porém, que o governo do povo pelo povo tem a base da sua legitimidade na cultura da inteligência nacional pelo desenvolvimento nacional do ensino, para o qual as maiores liberalidades do tesouro constituíram sempre o mais reprodutivo emprego da riqueza pública; creio na tribuna sem fúrias e na imprensa sem restrições, porque creio no poder da razão e da verdade; creio na moderação e na tolerância, no progresso e na tradição, no respeito e na disciplina, na impotência fatal dos incompetentes e no valor insuprível das capacidades.”

Foi quando a república resolveu afundar novamente no consórcio do conservadorismo e do militarismo, em 1909, que Rui entrou no melhor de sua carreira. Ele sempre se queixara de que, devido à herança maldita da escravidão, a sociedade civil brasileira teria se habituado ao servilismo e ao autoritarismo, subvertendo o sistema de incentivos cívicos que estava na base do Estado de Direito democrático e esvaziando sua substância. A certeza de que o retorno do militarismo pela candidatura do marechal Hermes da Fonseca em 1909 representaria um retrocesso aos poucos avanços republicanos dos anos imediatamente anteriores o impeliu à oposição. Com ela, veio a decisão de despertar a opinião pública para a democracia, pela apresentação de uma candidatura alternativa, com recurso direto ao eleitorado, como não se via desde a campanha abolicionista vinte anos antes. E ele o fazia sabendo que seria derrotado, tendo em vista que sua candidatura teria o apoio apenas de São Paulo e da Bahia, quando somente na capital, o Rio de Janeiro, a apuração eleitoral era menos viciada pela fraude eleitoral. Essa certeza não o desanimou. Ao contrário. Quando sondado para candidato, tentaram convencê-lo recordando-lhe que seu velho padrinho político, o senador Dantas, o qualificava na mocidade como o homem dos sacrifícios. Rui o admitiu emocionado: “Você tem razão. Eu sou dos sacrifícios. Se fosse para a vitória, não me convidariam, nem eu aceitaria, mas, como é para a derrota, aceito. A ideia não morrerá pelo meu egoísmo. Perderemos, mas o princípio se salvará”. Daí que “não se luta só para vencer, luta-se também para perder. E às vezes é mais nobre perder do que vencer”.

A despeito de todas as idas e vindas do nosso processo de democratização, a semente plantada por Rui frutificou. A formação do mito Rui Barbosa está vinculada à imagem pública que ele ajudou a criar: a de um indivíduo justiceiro, humanista, destemido, solitário, encarregado de encarnar o espírito da Justiça numa luta sem tréguas, travada com a Constituição debaixo do braço pela imprensa, pelos tribunais e da tribuna parlamentar, contra o arbítrio do Estado, conduzido por politiqueiros, egoístas, poderosos, ditadores. Essa imagem conduziu à produção de uma visão idealista da política, segundo a qual ela deveria ser orientada conforme os ditames éticos contidos no texto da Constituição, guardado por magistrados cultos e honrados. Essa visão da política marcaria o imaginário político brasileiro por intermédio dos bacharéis que entrariam na política, depois da morte de Rui. Encontramos ecos mais ou menos fortes do discurso de Rui na OAB de Levi Carneiro, Sobral Pinto e Raimundo Faoro; na UDN de Otávio Mangabeira, Afonso Arinos e Bilac Pinto; no PSB de João Mangabeira, Hermes Lima e Evandro Lins e Silva, mas também no PTB de Alberto Pasqualini e Santiago Dantas e no MDB de Ulysses Guimarães. Neste sentido, o legado de Rui me parece duplamente precioso.

Ao mesmo tempo em que a realidade democrática comprova a aposta correta por ele efetuada, sua obra política ainda nos oferece um modelo de república que, por seus valores de moralidade e de respeito ao bem comum, inspira o aperfeiçoamento do regime atual.

Porque nunca duvidou da capacidade de seu povo e, perseverando, soube semear para o futuro, o exemplo de Rui Barbosa nos interpela ainda hoje. De tão contemporâneo e acurado, parece ter sido a respeito de Jair Bolsonaro e seus acólitos que Rui escreveu este que foi um de seus mais contundentes reptos democráticos, que fica aqui como inspiração para todo democrata no dia do centenário de sua morte:

“Rejeito as doutrinas de arbítrio; abomino as ditaduras de todo o gênero, militares ou científicas, coroadas ou populares; detesto os estados de sítio, as suspensões de garantias, as razões de Estado, as leis de salvação pública; odeio as combinações hipócritas do absolutismo dissimulado sob as formas democráticas e republicanas; oponho-me aos governos de seita, aos governos de facção, aos governos de ignorância; e, quando esta se traduz pela abolição geral das grandes instituições docentes, isto é, pela hostilidade radical à inteligência do País nos focos mais altos da sua cultura, a estúpida selvageria dessa fórmula administrativa impressiona-me como o bramir de um oceano de barbaria ameaçando as fronteiras de nossa nacionalidade.”

Encontrou algum problema no site? Entre em contato.

Se você já é assinante faça o login aqui.

Fake news são um problema.

O Meio é a solução.


Assine agora por R$15

Cancele a qualquer momento.

Edições exclusivas para assinantes

Todo sábado você recebe uma newsletter com artigos apurados cuidadosamente durante a semana. Política, tecnologia, cultura, comportamento, entre outros temas importantes do momento.


R$15

Mensal

R$150

Anual
(economize 2 meses)
Edição de Sábado: Que direita é essa?
Edição de Sábado: Apostando a própria vida
Edição de Sábado: Órfãos do feminicídio
Edição de Sábado: Fogo e cortinas de fumaça
Edição de Sábado: Cinco dias na Ucrânia

Sala secreta do #MesaDoMeio

Participe via chat dos nossos debates ao vivo.


R$15

Mensal

R$150

Anual
(economize 2 meses)

Outras vantagens!

  • Entrega prioritária – sua newsletter chega nos primeiros minutos da manhã.
  • Descontos nos cursos e na Loja do Meio

R$15

Mensal

R$150

Anual
(economize 2 meses)