O mundo novo e os rescaldos do velho

Disputa no Congresso é, ao mesmo tempo, um teste à capacidade do novo governo de se relacionar com o Legislativo e um esforço de sobrevivência política do bolsonarismo

Ontem chegou ao fim o mais longo mês de janeiro da história política do Brasil. A posse de Lula para seu terceiro mandato logo no seu primeiro dia já parece remoto, tal a quantidade de acontecimentos relevantes desde então. O novo incumbente tratou então de assinalar o mundo novo que trazia consigo por diversos gestos de alta carga simbólica. A presença do vice Geraldo Alckmin no Rolls Royce presidencial, numa ampla frente republicana sobre rodas, contrastava com a imagem de Bolsonaro há quatro anos acompanhado somente pelo filho no banco de trás, símbolo do triunfo exclusivo da própria família. Na composição do ministério, Lula entregou o que prometeu: políticos de centro, como Alckmin, Marina e Simone Tebet, representando a frente ampla; gente como Silvio Almeida, Margareth Menezes e Sônia Guajajara, afirmando a diversidade de gênero e raça; o equilíbrio entre política econômica socialdemocrata e responsabilidade fiscal, com Fernando Haddad na Fazenda e Tebet no Planejamento. A centro-direita do Centrão também foi contemplada para ajudar a angariar uma maioria governista no Congresso. Convém lembrar em todo caso que, sendo os piores ministros do governo Lula, os centrônicos eram os melhores do governo Bolsonaro, tal era o nível indizivelmente péssimo dos demais. Lula também se dedicou a uma extensa agenda voltada para a reinserção do país no circuito internacional, tendo recebido em quatro semanas um número de dignatários estrangeiros quase equivalente aos de Bolsonaro em anos.

Nem tudo são flores, porém. Menos prudente na língua do que poderia se imaginar, Lula não perdeu a oportunidade de seguidamente hostilizar o mercado financeiro e requentar a polêmica impeachment versus golpe relativa ao processo de deposição de Dilma Rousseff. O desagrado do centro que apoiou o impeachment e a prisão de Lula, mas engoliu depois o antipetismo para se livrar de Bolsonaro, veio expresso na má vontade imediata dos editorialistas de O Globo, Folha e Estadão. Não se trata de discutir a verdade de seus juízos, mas a inoportunidade de exprimi-los e alienar o apoio de setores poderosos ao seu governo, quando o fantasma do bolsonarismo continua rondando a República.

As novidades do governo Lula têm pautado menos as manchetes do que as descobertas das atrocidades praticadas pelo governo anterior e as tentativas do grupo político com ele identificado de permanecer no poder ao arrepio de qualquer escrúpulo legal.

Que o grupo de arrivistas civis e militares surgido na esteira do lavajatismo e do impeachment nunca teve apreço pelas regras democráticas e republicanas todo mundo sabe. Se sua ambição desmesurada e a expectativa da impunidade pela eternização no mando os levou a cometer crimes continuados contra a República, a percepção posterior à derrota de que seriam punidos assim que privados dos recursos de poder os tornou mais golpistas do que nunca. Depois de tentarem comprar a eleição durante a campanha e de empregar a polícia para impedir eleitores de votarem na oposição, nada mais lógico do que, após a derrota, tentar anular os resultados eleitorais.

É nesse contexto que deve ser compreendida a intentona reacionária de 8 de janeiro, quando três mil pessoas invadiram e vandalizaram os edifícios-sede dos poderes da República com a complacência ou cumplicidade das forças de segurança da polícia e do Exército. O objetivo era provocar um caos que justificasse a intervenção das Forças Armadas, já açuladas depois de meses de assédio dos derrotados nas portas dos quartéis clamando por um golpe militar. Mas o tiro saiu mais uma vez pela culatra. A tentativa de golpe legitimou a reação oposta, aglutinando todos os principais atores de todos os poderes constituídos em torno do repúdio à intentona reacionária e de apoio a uma pronta repressão à subversão. Ela legitimou uma intervenção federal do governo Lula na polícia de Brasília, o afastamento do governador e a prisão do seu secretário de segurança, ex-ministro da Justiça de Bolsonaro, em cuja casa foi encontrada um projeto de decretação de estado de defesa inconstitucional voltado para a anulação dos resultados eleitorais. Por fim, a intentona não só justificou o inquérito destinado a averiguar a prática de atos democráticos, conduzido pelo ministro Alexandre de Moraes, como sanou formalmente qualquer vício de origem que houvesse na sua instalação, já que se verificou literalmente a hipótese legal prevista para a sua instauração: o cometimento de crime nas dependências do Supremo Tribunal. A intentona reacionária ainda serviu para que Lula, cauteloso com as Forças Armadas, substituísse logo o arrogante comandante do Exército, nomeado por Bolsonaro por um outro, publicamente comprometido com a legalidade e a despartidarização da caserna.

A despeito do seu contínuo terrorismo informacional, a situação não está nada favorável ao bolsonarismo.

A poderosa coalizão de direita que apoiou Bolsonaro no Congresso se desfez na noite mesma da vitória de Lula, quando os moderados ou oportunistas identificados com Arthur Lira pularam instantaneamente do barco. A atuação enérgica de Alexandre de Moraes, matando no nascedouro todos os projetos golpistas de Bolsonaro e punindo duramente os aventureiros, deles afastou profissionais como Valdemar Costa Neto, que parece já ter tirado do bolsonarismo raiz todo o proveito que dele esperava. Na ausência de Bolsonaro, calado e foragido na Disneylândia, o grupo se enfraquece, já tendo surgido pelo menos três candidatos a substituí-lo na liderança da direita: os governadores de São Paulo e Minas Gerais e o ex-vice-presidente, agora senador Hamilton Mourão.

A revelação e divulgação quase diária dos segredos escabrosos da gestão Bolsonaro — o mais chocante dos quais foi a prática da tentativa de genocídio do povo ianomâmi — também tem o potencial de enfraquecer continuamente os ex-governistas. As investigações, que estão apenas começando, terão fundas repercussões na esfera criminal. Fracassado o golpismo como meio de salvação, que precisa do ambiente de mentira e libertinagem informacional que lhe serve de estufa para fugir da Justiça, foi preciso recorrer ao núcleo duro do bolsonarismo um último expediente: tentar controlar a presidência do Senado. Este é o sentido da candidatura do bolsonarista Rogério Marinho: garantir a sobrevida do bolsonarismo, colocando-o em posição de chantagear o Tribunal com pedidos de CPI ou de impeachment de juízes, a fim de assegurar a sua impunidade conforme seus crimes vêm à tona. Em síntese: enquanto a eleição dos presidentes da Câmara e do Senado constituirá o teste definitivo para o novo governo, porque conformará de forma terminante a correlação de forças no Congresso pelos próximos anos, ela também pode ser o último lance significativo do bolsonarismo raiz na busca de sua sobrevivência política em um cenário cada vez mais desfavorável.

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