Edição de Sábado: Tempo de inovação

Quando se fala de inovação, pode-se fantasiar sobre criações tecnológicas futuristas e intangíveis. Mas inovação é, antes de tudo, uma ideia. Uma estratégia de solução de problemas. E se há algo de que o Brasil precisa nesse novo ciclo, depois de quatro anos de, mais que paralisia, retrocesso, é inovação. Para reaprender a dialogar. Para buscar e encontrar pontos em comum entre pessoas aparentemente cindidas irremediavelmente. E para voltar a produzir e distribuir riqueza.

O país tem, ao contrário do que possa sugerir a autoestima de vira-latas, uma longa tradição de inovações em políticas públicas, em estratégias de mudança. Fomos capazes de combater a poliomelite, em plena ditadura militar, capitaneados por médicos muito à esquerda do regime. De criar a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), o Sistema Único de Saúde (SUS). Só que vai precisar fazer mais do que mirar o retrovisor para sair desse cenário desastroso. Quem nos ajuda a fazer essa ponte entre passado, presente e futuro, tanto no campo político quanto no tecnológico, é o cientista Silvio Meira.

Uma das autoridades do Brasil quando se trata de inovação, Meira fundou e preside o conselho do Portodigital.org, maior parque tecnológico do Brasil; é fundador e professor extraordinário da Cesar.School e fundador e cientista-chefe da TDS.company. Nesta entrevista, ele desenha os desafios de reconstruir uma nação num mundo “figital” e de criar um ecossistema digital que faça o Brasil produzir não para si, mas para o mundo. Confira os principais trechos da conversa.

O slogan do novo governo é União e Reconstrução. Em que medida a inovação entra numa estratégia de reconstrução de país?
A história, vez por outra, anda para trás. Há coisas que deixamos de fazer e temos de reaprender. É uma inovação no Brasil de hoje o conjunto de ideias básicas que está associado à civilidade. À comunidade, à democracia. Essas são todas ideias antigas — datam, no mínimo, da Roma antiga, no modo clássico, ou da Grécia antiga, ou talvez tenham existido na Mesopotâmia, no Egito. Então, existe, sim, um conjunto de inovações que devem ser tratadas de maneira estrutural, e até revolucionária, quando se fala de união e reconstrução. Vamos ter que construir ou reconstruir um país mais civil. Mais comunitário, humano, equitativo. Isso num mundo que, para usar um chavão difícil de substituir, é pós-moderno. Num ambiente onde uma das narrativas mantém, por exemplo, pessoas acampadas na frente de quartéis. Como ficou tão distópico que chegou a esse ponto? Como é que não conseguimos unificar a nossa narrativa minimamente? As nossas narrativas não precisam ser uma só. Mas elas precisam ser coerentes com dados que representam a realidade. No fim da década de 1970, o [filósofo francês Jean-Fraçois] Lyotard fez aquele estudo para a província de Quebec, no Canadá, sobre o que é o pós-moderno e como ele influi na sociedade. Ele diz claramente que estávamos começando a correr o risco de viver num mundo onde não se consegue mais unificar suficientemente narrativas pra ter um conjunto pequeno de propósitos de uma sociedade. E isso foi há mais de quarenta anos.

Isso quer dizer que uma das inovações necessárias é de relacionamento e discurso?
Isso cria uma demanda para um governo que vai falar agora em união e reconstrução. União quer dizer um foco a partir de um entendimento num conjunto pequeno de narrativas que são comuns a todos. Não existe união com quinhentas narrativas. Como é que você vai, numa sociedade em rede, estruturalmente fragmentada pelo digital, pelo social, pela explosão das microcomunidades, com perspectivas completamente diferentes, com conjuntos de dados sobre a realidade inventados, com grupos de seres humanos resistentes a fatos e dados... Como é que você vai unir? Esse é um mega problema de inovação. E ninguém sabe resolvê-lo hoje nesse universo que eu chamo de "figital". É um mundo que tem as dimensões física, digital e social e onde a dimensão social — das conexões, relacionamentos e interações que formam as comunidades — vem servindo muito mais pra habilitar a desunião, a desagregação.

E a reconstrução?
Reconstrução é uma coisa que acontece no futuro. Não no passado. Você pode querer construir coisas que já existiram no passado, mas você não vai chegar agora e dizer, por exemplo, “nós precisamos de uma política de ciência e tecnologia como a que nós tínhamos em 2003”. Vinte anos se passaram. Mudou o mundo, mudaram os instrumentos, as plataformas, as ferramentas, as demandas, os competidores. Em 2003, não havia smartphones. Não tinha nuvem. A gente não tinha software como serviço. A internet era discada. Hoje falamos de indústria 4.0, de produtos sendo transformados em serviços. Temos que construir trazendo o futuro para o presente. Algumas premissas podem ser as mesmas. Pode se querer ter de novo, por exemplo, uma política industrial. Uma política de inovação, de educação de qualidade. Mas se tentar ir para o passado, ele não existe mais.

O que é esse mundo figital que você descreve?
Veja, a dimensão física da realidade não desapareceu. Mesmo pra quem é intensamente digital, está o tempo todo cercada de artefatos tecnológicos digitais, tem presença em todas as redes, pode estar numa dessas instâncias primárias do metaverso, ela não consegue prescindir totalmente da sua dimensão física. Ela come, toma água, toma banho, dorme. Só que essa dimensão física foi aumentada pelo digital. O digital aumenta, habilita, estende as capacidades físicas. Para passar férias no hotel onde estou, eu não falei com ninguém. Pesquisei a cidade online, fiz as reservas online, botei o endereço do hotel no mapa, peguei meu carro no Recife e esse mapa digital me trouxe até aqui sem nenhum erro no caminho. Em 2003, eu tinha de ter um mapa da Quatro Rodas, lembra? Ao mesmo tempo em que esse processo cria um plano físico digital das performances, onde eu faço coisas, como acabei de descrever, sozinho, há outra dimensão dessa realidade que é a social. É onde existem as conexões, o estabelecimento de relacionamentos, as interações entre agentes sociais, que podem ser instituições, organizações ou coisas, como o ar-condicionado conectado à rede. Vão surgindo significados em comum, que criam comunidades. E aí você tem um uma dimensão social da realidade que opera sobre aquele plano físico digital. Com esses dois eixos, cria-se um plano e isso faz com que esse plano seja articulado, orquestrado e manipulado de várias formas. A gente não pode dizer que tudo é digital. Nem tudo é social. Mas dá para dizer que tudo é figital.

Exemplos recentes mostram que o Brasil é capaz de elaborar estratégias estruturantes eficazes, como o Plano Real e o Bolsa Família. Há indícios de que estratégias inovadoras podem voltar a surgir?
Eu adicionaria outras grandes estratégias brasileiras. Uma, da década de 1970, foi o combate à poliomelite. Foi uma guerra a um vírus, decretada por sanitaristas na ditadura militar. E a maioria desses médicos não só era de esquerda, mas boa parte das lideranças era do então Partido Comunista. Se teve um momento de união, foi aí. Também na década de 1970, teve a Embrapa. Ela é outro mega exemplo de uma ação de política pública estratégica e estruturante, porque naquela época o problema era insuficiência alimentar. Tem o Pró-Álcool, que também começou na década de 1970 e era uma grande estratégia nacional de combustíveis renováveis. E então temos o SUS, uma grande estratégia nacional consagrada na Constituição de 1988. O SUS é uma coisa de ordem de magnitude acima do Bolsa Família. Nos últimos 60 anos, se distribuídas homogeneamente no tempo, temos uma grande estratégia nacional de classe global a cada dez anos. Não tem país que consiga fazer isso. Imagine Covid no Brasil sem SUS ou sem vacinas. A China não tem uma estratégia de vacinas como o Brasil. E é mostra de como ela não pode ser substituída pela força do Estado, isolando as pessoas dentro de casa. Agora, tem dias com 32 milhões de casos positivos na China. Então, muito ao contrário do que se pensa, o Brasil é sim um país de grandes estratégias. A questão é: como é que agora, com o país cindido em dois, vamos unificar minimamente para resolver um conjunto de grandes desafios nacionais que demandam grandes estratégias e operações profundas na base brasileira de resolver problemas, de criar oportunidades, de simplificar a burocracia, de aumentar a produtividade?

Existe resposta para essa pergunta?
Precisamos criar um Brasil globalmente competitivo e que remunera decentemente seus cidadãos. Mais de 60% da população trabalhadora brasileira ou não trabalha, ou não trabalha na intensidade que poderia, ou não trabalha no trabalho que quer. Isso é uma coisa absurda, não é? Em estados como Pernambuco, 50% das pessoas são pobres ou muito pobres; 20% da população de Pernambuco está em extrema pobreza hoje. Vivendo com R$ 6 por dia. Isso não dá pra pessoa se alimentar minimamente. Ela passa a depender de outros esquemas, é capturada pela milícia ou está numa fila da sopa. Está o dia todo lutando por comida, não tem jeito. Quem tem fome tem pressa. E não tem tempo pra esperar por soluções de problemas que vão levar dez, quinze, vinte anos. Nem cinco. Precisamos pensar em estratégias que atacam grandes problemas brasileiros no curto, médio e longo prazo. Mas você não pode pensar só em estratégia de compensação. É preciso aumentar a produtividade.

A nova ministra da Ciência, Tecnologia e Inovação, Luciana Santos, tomou posse falando que quer agir com o MDIC e a Educação. Fala também em retomar e atualizar os pagamentos de bolsas a cientistas.
Ciências são pessoas. Não são prédios, laboratórios. Você pode trazer os laboratórios com os equipamentos mais top do mundo. Se não tiver gente para pensar como usar, o que fazer e o que agregar do ponto de vista de conhecimento profundo, que muda o status do entendimento que a humanidade tem do mundo, não adianta. Por um lado, isso é ciência básica e, por outro, é a ciência com potencial de inovação no curto prazo, que muda a competitividade do Brasil. A primeira coisa é ter um ecossistema nacional de ciência e tecnologia onde as pessoas que querem ser cientistas são propriamente acolhidas, financiadas, têm ao seu dispor o material tanto do ponto de vista bibliográfico quanto do ponto de vista de insumos, de incentivos. Ciência, ao contrário do que muita gente obtusa pensa, não é o departamento das certezas da humanidade. Ciência é o departamento da dúvida da humanidade. A principal característica de um cientista é saber fazer perguntas e ter métodos estruturados para duvidar da realidade como ela se impõe. Tem um método pra fazer isso, chama método científico. Ele vem sendo construído, sistematizado, melhorado há mais de 150 anos. A ciência trabalha com teorias, que são feitas por humanos e sempre são melhoradas.

Qual o caminho para a valorização das pessoas, dos cientistas?
Esse processo de evolução depende de pessoas muito bem formadas. Eu entendo porque Luciana está dizendo que vai ter de falar com Camilo [Santana, ministro da Educação]. Se lá no ensino fundamental as pessoas não começam a aprender matemática direito, não se apaixonam por pêndulos, por reações químicas. Daí, não vão fazer bem uma universidade, se dedicando e não simplesmente passeando pelo curso universitário como se fosse um parque. Não é um parque, é um processo de questionamento, de entendimento de fundações, das bases para raciocinar sobre um universo cada vez mais complexo. A partir daí, elas podem fazer mestrado, doutorado e saber conduzir outros nessa jornada de percepção. Durante o mandato do antecessor de Joe Biden, cujo nome me recuso a pronunciar, os Estados Unidos começaram a limitar, numa posição extremamente xenófoba, o número de vistos de pesquisadores. Os EUA são o que são basicamente porque nas universidades e nas empresas de crescimento empreendedor de sucesso o que mais tem é o melhor da nata científica mundial, formada em todo canto do mundo, que foi levada para lá por um processo de atração, por uma carreira que tem reconhecimento público e uma remuneração coerente com esse reconhecimento. A gente não tem isso no Brasil. Cientista é visto como um bicho meio fora da sociedade e é extremamente mal remunerado. Essa não é a única, mas é uma das razões pelas quais estamos onde estamos. O problema, mais do que de pouco recurso, é o modo vagalume como a ciência brasileira é financiada. Uma hora tem recursos, outra não. Os recursos, independente de quem é o mandato, sempre estão sujeitos a contingenciamento. O Brasil precisa colocar a ciência na ordem do dia, colocar a tecnologia e a inovação para a criação de novos negócios, para aceleração e melhoria das performances dos negócios já existentes. Sem isso, não vai mudar a produtividade, não vai gerar os trabalhos e os empregos para um Brasil mais produtivo, com as pessoas mais bem remuneradas.

Qual é a cara desse Brasil mais produtivo em 2023?
Estamos na sociedade do conhecimento. A sociedade da força física acabou. As pessoas estão sendo paulatinamente substituídas nos seus trabalhos de manipulação de objetos, seja lá onde for — no laboratório de análises clínicas, nos processos de construção de prédio, nos processos de montagem de automóveis, de aviões ou de placas de televisão —, por informática, automação e robotização. Não é porque você quer tirar as pessoas de lá. É simplesmente porque, para os níveis de qualidade regulados por lei que a sociedade passou a a exigir de certos processos de fabricação, você não pode ter mais pessoas no ambiente. Por exemplo, para exportar biscoito para certos países do mundo, o ambiente onde os biscoitos são fabricados tem de ser praticamente estéril. Só tem robô. Então, você tem que tirar a pessoa que fabricava o biscoito manualmente para um nível em que ela vai programar o robô que fabrica o biscoito. Isso é educação de altíssima qualidade, com componentes para esses robôs, que são oriundos de pesquisa e desenvolvimento para os quais são necessárias uma intensidade, uma sofisticação e diversidade de ciência, tecnologia e inovação que nós simplesmente não temos no Brasil.

O presidente Lula falou de microprocessadores no discurso de posse. A ministra também, do Ceitec. É por aí?
Essa ideia da inovação toda depositada num microchip talvez seja um dos maiores erros da política industrial brasileira. Erro que vem sendo cometido, no mínimo, desde a ditadura Vargas, quando se consolidou uma certa interpretação de que o mercado brasileiro é grande e uma das coisas que podia sustentar a indústria no Brasil era a substituição de importações. Esse tipo de visão de mundo, que basicamente tem 100 anos, é uma das coisas mais improdutivas do ponto de vista conceitual, filosófico, estrutural de política industrial que você possa imaginar. Por exemplo, no Brasil nós inventamos uma ideia de uma política de equipamentos de defesa que substituiria importações. E não sobrou quase ninguém a menos da Embraer, que é um complexo aeronáutico que pode subsidiar o que faz em defesa com o que faz para a aviação civil, executiva. Se a Embraer não fosse globalmente competitiva em aviação de transporte civil, provavelmente não teria as competências para fazer o KC-390. É óbvio assim. Você pode pensar: “ah, componentes digitais de alta densidade passaram a ser estratégicos e o Brasil tem de fabricar os seus, não podemos ter a certeza de que poderemos comprar de alguém quando precisarmos numa situação crítica de crise, de guerra”. Esse é um pensamento razoável. Mas você dizer “nós vamos fabricar para o Brasil”, aí é onde está o grande engano. Porque você fabricar “para o Brasil” não sustenta o mercado de quase nada.

Qual é a diferença?
Vou dar um exemplo. Houve uma outra grande estratégia nacional, com Juscelino Kubitschek, de fabricar automóveis no Brasil. E, principalmente, de atrair fabricação de caminhões pro Brasil. Em paralelo, teve uma grande estratégia de destruição nacional, que foi a das ferrovias brasileiras. Setenta anos depois, a gente não tem um fabricante nacional de automóveis, um fabricante com tecnologia e capital nacional ou pelo menos com parte da tecnologia e com parte do capital nacionais. Por quê? Porque nós nunca pensamos isso para o mundo. O Brasil tem dificuldades estruturais de produção de coisas pro mundo, por razões que variam da burocracia da nossa aduana da Receita Federal até os custos de produzir coisas aqui e exportar pro mundo. E aí, o que a gente quer fazer? Essas gambiarras de política industrial, em que internalizamos o processo para dentro do Brasil e passamos a suportar os custos deles aqui? Isso faz com que esses componentes, e até sistemas inteiros como automóveis e caminhões, não sejam competitivos no global e atrapalhem a competição de outras coisas que são feitas no Brasil que dependem deles. Visitei, logo antes do Natal, uma fábrica de sistemas da internet das coisas, no Recife. Eles tinham passado três semanas em férias coletivas por causa de uma greve da Receita Federal. Todos os componentes que eles usam vêm de fora. Como resolver esse problema? É com a fábrica de chips no Brasil? Não. Não tem nada a ver uma coisa com a outra.

E como se resolve?
Mexendo na arquitetura de criação de valor do Brasil. Porque é uma rede extremamente conectada. O Ceitec faz uma parte desse processo. Todas as outras partes, inclusive provavelmente parte do design, todo o processo que está associado às máquinas que o Ceitec usa, todos os componentes e partes que o Ceitec não faz, isso vem de fora do Brasil. O problema não é se a gente tem ou não que ter um Ceitec. O problema é: como é que a gente faz coisas no Brasil que são feitas a partir do Brasil pro mundo? Nós temos que fazer uma revisão filosófica da política de substituição de exportações. Temos de ter horizontes para essas políticas. Elas até podem ser de substituição num certo período, mas elas não podem ser “eternamente assim”. Isso trabalha contra os interesses de todos os outros setores da economia. E também contra os interesses daquele setor propriamente dito. Depois de um tempo, em qualquer acidente que haja com a política que sustenta aquele setor, em qualquer mudança estrutural que haja com a política de subsídios que sustenta aquele setor, ele entra em colapso. Isso já aconteceu muitas vezes. Veja, a gente tem uma política de subsídios pra um setor primário da economia brasileira que é o agro. Tem subsídios de todos os tipos, financiamento de safra com juros especiais, não vou nem descrever tudo aqui. Mas o que acontece com o agro é que há uma produção com subsídios que é boa o suficiente para o mercado global. Esse é o ponto. Se estivéssemos dando subsídios para o agro produzir só pro Brasil, não seria sustentável. O setor precisou importar equipamentos, adubo, defensivos, tecnologia. Então, não podemos nos isolar e temos que fazer para o mundo.

Morrer para renascer: as marcas da transição em Brasília

Na semana seguinte à posse presidencial, conforme Brasília vai sendo desnudada no processo de transição e agora de ocupação do recém-eleito governo, os sinais de esgotamento físico da capital federal vão aparecendo. Sobre o lado de dentro dos palácios, há relatos dos novos inquilinos da degradação promovida pela gestão anterior. Do lado de fora, está visível o desgaste que manifestações golpistas e posses festivas podem provocar.

A começar pelos gramados. O canteiro central da Esplanada dos Ministérios, local de onde as 300 mil pessoas, na estimativa dos organizadores (não há estimativa oficial), acompanharam o presidente Lula (PT) desfilar em carro aberto e, posteriormente, subir a rampa do Palácio do Planalto, tem buracos, falhas e verdadeiros lamaçais em meio ao verde do gramado. Não muito longe dali, na Praça dos Cristais, o cenário é ainda mais desolador. Com a grama praticamente morta, amarelada, mesmo em meio à época de chuva na capital, o espaço onde foi montado o acampamento de bolsonaristas aparenta abandono.

Festa de arromba

O canteiro da Esplanada é parte do conjunto arquitetônico tombado pela Unesco como Patrimônio da Humanidade. Segundo autoridades, é preciso que a estrutura da festa da posse seja retirada para que a Companhia Urbanizadora da Nova Capital (Novacap) seja acionada e ponha em prática o tratamento da grama. A Administração Regional do Plano Piloto, responsável pela cessão do espaço, garantiu à reportagem que, “após a realização desse trabalho, os órgãos competentes do governo [distrital] serão notificados para a realização do trabalho de vistoria e recuperação do espaço”.

Diretor do Departamento de Parques e Jardins da Novacap, Raimundo Silva conta ao Meio que ainda não recebeu qualquer chamamento a atuar no local, ou mesmo vistoriar a vegetação na Esplanada. Ainda assim, ele indica que o processo não é dos mais complexos. Isso porque, pelo clima e pela altitude de Brasília, cerca de 90% dos 186 quilômetros quadrados de grama plantada são do tipo Batatais – ou “grama Matogrosso”. “É uma grama de fácil recuperação, muito resistente”, conta Silva.

Ainda assim, a paisagem na Esplanada não está bonita. À parte o período entre maio e outubro, quando a seca castiga a cidade e um tom amarelo-morto domina o canteiro, a via, em geral, é emoldurada por um verde chamativo, vibrante. Na primeira semana de 2023, o vermelho escuro da lama é visto em grandes clarões no gramado. Além das áreas castigadas pelas torres de telão e iluminação e pelos palcos, é possível ver rastros de terra batida (e molhada) que cortam a grama de lado a lado, abertas pela passagem de caminhões e outros veículos que, antes, montaram a estrutura e, agora, retiram-na.

O estado do gramado, hoje, também atrapalha o planejamento usual da companhia. Em Brasília, no período das chuvas, o corte da vegetação rasteira às margens de rodovias ou locais mais movimentados é realizado a cada 30 dias; em áreas “nobres”, como a própria Esplanada, a poda é quinzenal. E, a depender do que for encontrado por lá, os trabalhos podem ser mais drásticos. “Se o dano for muito pesado, tem de plantar novamente, recapear, tudo do zero. Se for um dano rápido, não tem necessidade de um plano maior de recuperação. Ainda não tivemos acesso para ver”, explica Silva.

Pediram ajuda e só deram trabalho

Na Praça dos Cristais, em frente ao Forte Caxias, quartel-general do Exército brasileiro, bolsonaristas acampados conclamavam uma ação dos militares para derrubar o regime constitucional. Foram ao menos dois meses de ocupação irregular numa das áreas criadas pelo paisagista Burle Marx na capital-jardim construída na década de 1960.

Agora, a coloração da praça segue o tom da decepção. No dia 1º e também na segunda-feira (2), alguns manifestantes golpistas ainda eram vistos chorando, ajoelhados, desacreditados. O gramado da praça, que nada tinha a ver com as desventuras antidemocráticas do acampamento, foi quem mais sofreu. E sequer há respostas sobre seu tratamento.

A atribuição pelos cuidados com o local é da Prefeitura Militar de Brasília (PMB), por ele estar no Setor Militar Urbano (SMU) — como o nome indica, uma área militar. Procurada pela reportagem, a PMB não retornou os contatos sobre os planos de recuperação da praça. Parte do tratamento do espaço, um dos mais belos da capital, é feito pela administração do Forte Caxias, por meio de soldados verde-oliva. O departamento de comunicação da Força também não retornou as tentativas de contato até o fechamento deste texto.

Patrimônio da Humanidade

A Unesco, braço cultural das Nações Unidas (ONU), é a responsável por avaliar e, em certa medida, fiscalizar os bens patrimoniais materiais ou imateriais de relevância histórica. É assim com as pirâmides de Gizé, no Egito, ou com a cidade de Machu Pichu, no Peru. As organizações infranacionais, como o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), devem fazer a manutenção desses locais, seguindo instruções da entidade internacional para manter o status de bem histórico global.

Essas responsabilidades se descentralizam em diversos órgãos, como prefeituras e secretarias de Cultura. No caso de Brasília, o governo do Distrito Federal e suas ramificações, como a Novacap e a Administração Regional do Plano Piloto, devem zelar, na ponta, pela preservação dessas áreas. Em 2012, uma missão da Unesco visitou a capital brasileira e redigiu 38 recomendações de preservação. Duas delas, a 32ª e a 33ª, desencorajam a realização de eventos na principal via da República. No texto, os integrantes do grupo internacional pedem que sejam evitadas instalações “de estruturas de curto prazo em espaços abertos ao longo da Esplanada”. Mas há uma exceção importante: a de manifestações políticas, como é o caso da posse.

Coordenadora do grupo Guardiões de Brasília Patrimônio da Humanidade e autora de Vizinhos do Poder: História e Memória da Vila Planalto (2021), a ativista Leiliane Rebouças aponta para uma cautela na utilização do gramado da Esplanada. “A posse é um evento especial e se dá a cada quatro anos. Mas durante muito tempo houve shows e eventos ali, inclusive eventos oficiais, o que a Unesco não recomenda”, conta. Ainda segundo ela, a competência para fiscalização tem sido esvaziada ao longo dos anos.

“Aquela região, por se tratar de uma parte central do conjunto tombado, deveria ter atenção especial do Iphan. O órgão foi sucateado durante o último governo. Foram indicações exclusivamente políticas para atender a interesses particulares. É preciso ter sensibilidade com o patrimônio brasileiro, com a História do país”, revolta-se Rebouças.

O Iphan tem hoje três cotados para seu comando. O primeiro é o do ex-deputado distrital e candidato a governador do DF nas eleições do ano passado, Leandro Grass. Seu nome seria uma forma de agraciar o apoio do PV à eleição de Lula e tem apoio do PT. Dentro do órgão, abaixo-assinados circulam, indicando os professores Andrey Schlee, da UnB, que já atuou no Iphan, e Leonardo Castriota, da UFMG. Servidores alegam que Grass não tem experiência na área.

Rebouças ainda indica que o órgão, assim como o gramado da Esplanada e, bem, como o próprio país, precisa de uma reconstrução que permita a atuação mais incisiva sobre o patrimônio brasileiro tombado, nacional ou internacionalmente. “Valorizar o patrimônio é valorizar o servidor do Iphan, que tem um dos salários mais baixos da administração federal. Não vamos reconstruir o Iphan de uma hora para a outra, mas é possível que a gente volte a dar a importância que ele merece, inclusive para evitar danos como os que já aconteceram”, acrescenta.

Mau inquilino

A necessidade de reparação em Brasília não se limita às áreas a céu aberto. Como mostrou a colunista Natuza Nery, da GloboNews, o Palácio da Alvorada sofreu com o descaso do ex-presidente. Também tombado como patrimônio histórico, o prédio tem rachaduras, falhas nos pisos de madeira, infiltrações em paredes e janelas e diversas avarias na mobília e em artefatos de decoração.

Além das obras de restauro, que devem começar no final de janeiro, a primeira-dama, Rosângela da Silva, ou apenas Janja, planeja tornar parte do patrimônio histórico nacional os objetos que estão dentro do palácio, “para que não aconteça mais de um governante chegar e retirar coisas que são patrimônio do Estado brasileiro.”

Até Bruce Springsteen já foi novato

“A coisa mais interessante que já aconteceu em Asbury Park [cidade costeira de Nova Jersey] desde que o navio Morro Castle pegou fogo e encalhou na praia, em 1934.” Foi assim que o crítico musical Philip Elwood saudou, no San Francisco Examiner, uma apresentação em 1969 da banda Steel Mill, liderada por um guitarrista e cantor de 20 anos chamado Bruce Springsteen. Elwood não estava exagerando na comparação nem ao chamar o rapaz de “compositor impressionante”, mas talvez não fosse capaz de prever que testemunhava a gênese de uma das maiores lendas do rock, um artista completo cuja estreia em disco acaba de comemorar 50 anos.

Sempre lembrado nas listas de melhores debuts, Greetings From Asbury Park, N.J. (Spotify) chegou às lojas em 5 de janeiro de 1973 e arrebatou a crítica, mas não comoveu de primeira o público. E basicamente pelo mesmo motivo: a diversidade, decorrente tanto da persona de Bruce quanto de um conflito entre ele e, do outro lado, seu empresário Mike Appel e o produtor John Hammond. The Boss, como já era conhecido pelos músicos que o acompanhavam, era muitos, mas Appel e Hammond queriam só um.

Para entender isso, é preciso conhecer um pouco a história do artista, nascido em setembro de 1949 em Long Branch, Nova Jersey, aquele estado famoso por não ser Nova York. Seus ancestrais incluíam holandeses que chegaram à América no século 17, irlandeses e italianos, e sua família estava na classe média baixa. O pai era motorista de ônibus e a mãe, quem de fato sustentava a casa, secretária. Não era um aluno brilhante, preferindo tocar violão sozinho, e viu seu mundo mudar com a lendária apresentação dos Beatles no Ed Sullivan Show (YouTube), em fevereiro de 1964. Já era fã de Elvis, e o rock o conquistou de vez. Comprou sua primeira guitarra elétrica no dia seguinte — embora seja reverenciado como cantor e compositor, é um solista de alta qualidade (YouTube).

Ao mesmo tempo, ele pertencia a uma família católica tradicional e trabalhadora, e a vida de um adolescente roqueiro nos anos 1960 não combinava com aqueles valores. Numa apresentação em 1985, antes de cantar The River, ele contou à plateia a difícil convivência com o pai (Spotify) – alerta de spoiler, a conclusão é comovente. Era a época do Vietnã, da luta pelos direitos civis e de um crescente desencanto com o American Way of Life, já cantado por artistas “mais velhos” como Bob Dylan e Paul Simon, duas grandes influências. Mas, ao contrário destes, judeus de classe média mesmo, Bruce era blue collar em primeira pessoa, e suas letras engajadas eram embaladas em rock sem pudores. Justiça seja feita, Dylan, que trocara o rock pelo folk na faculdade, já havia se reconciliado com as guitarras.

Era esse o cadinho onde se formou o som que encantou Elwood em São Francisco e levou aos problemas na gravação do disco de estreia. Appel e Hammond queriam Bruce como um artista solo mais folk, um Dylan rouco em vez de fanho e com o mínimo de acompanhamento instrumental. As canções The Angel e Mary Queen of Arkansas são os melhores exemplos dessa visão. Já o próprio Bruce se encarava como o líder de uma banda de rock, ainda que o disco fosse seu, e queria valorizar esse lado, que brilha em Growin’ Up, It’s Hard To Be A Saint In The City e, principalmente, Lost In The Flood, o mais completo exemplo neste disco de seu estilo. Estava tudo ali, o pianinho suave emoldurando a voz no início, a entrada da banda com suas muitas texturas (o órgão ao fundo é lindo) e a letra um tiquinho verborrágica, mas intensa, sobre os desajustados da sociedade: “E me pergunto no que eles se meteram, ou estavam todos apenas perdidos na enchente?”

Apresentado aos executivos da Columbia, o disco acabou rejeitado. Clive Davis, dono da gravadora, achou que faltava alguma música que estourasse em rádios. Bruce viu ali uma oportunidade. Escreveu às pressas duas novas canções e correu para o estúdio com o baterista Vini Lopez para gravá-las, tocando ele mesmo guitarra, violão, baixo e piano. E, de quebra, chamou o saxofonista Clarence Clemons, um gigante no tamanho e no talento, que o acompanharia até morrer, em 2011. Blinded By The Light e Spirit In The Night agradaram a Davis, que gostou também da presteza de Bruce, e salvaram o disco.

Mas, apesar do aplauso praticamente unânime da crítica, o público não entendeu de primeira. Foram necessários mais dois anos para que Born To Run tornasse Bruce um nome de peso no mercado musical americano e outros nove para que Born In The USA (erroneamente interpretado como patriotada) fizesse dele um ídolo mundial.

Os anos e a experiência na estrada e nos estúdios aprimoraram a música de Bruce Springsteen, tornando-a ora mais refinada, ora mais rude. Mas os elementos que fariam dele um gênio único no rock já estavam lá, 50 anos atrás, mandando saudações da bela, mas monótona praia de Asbury Park, Nova Jersey.

Discos essenciais

Caso o leitor não seja familiarizado com a obra de Bruce Springsteen, fica aqui uma lista concisa de álbuns para explicar por que ele é um gênio:

Born To Run (1975)

The River (1980)

Born In The USA (1984)

Live/1975-85 (1985)

Darkness On The Edge of Town (1978)

Tecnologia e política. Essa lista dos mais clicados da semana é a cara dos nossos leitores mesmo:

1. Wired: As festas no metaverso não funcionam muito bem.

2. New York Times: A tecnologia que vai invadir nossa vida em 2023.

3. G1: Janja mostra para Natuza Nery os estragos no Alvorada.

4. YouTube: Ponto de Partida — Anistia, não para Bolsonaro.

5. UOL: Marina Silva é defendida depois de ser hostilizada em restaurante.

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