Edição de Sábado: Pena perpétua

Por Mônica Manir*

Era por volta das 5 da manhã. O aroma de brigadeiro trufado já se insinuava pela casa quando Desirée abriu o aplicativo do banco para ver a quantas andava sua conta. A gastrônoma de 45 anos queria checar se tinham entrado os pixes da clientela cativa e eventual de seus bolos e doces, seu ganha-pão. Naquele dia de julho, porém, um ovalado e surpreendente número zero desandou seu orçamento. “Gente, como assim, zero de saldo?”

A conta havia sido bloqueada pelo Banco Central em razão da dívida de Desirée Mendes com o Estado, uma dívida decorrente da pena de multa ainda não liquidada depois de 10 anos fora do cárcere. “Estava tudo desenhado naquele mês, esse tanto de dinheiro paga o aluguel, esse tanto paga a água, esse paga a luz, isso aqui me segura para eu não entrar no cheque especial”, elenca ela. “Aquele bloqueio de 18 dias me tirou do eixo, me desestruturou, dá vontade de chorar porque eles estão me massacrando.”

O massacre a que se refere são os R$ 8.500 pendentes com o senhor do crédito, o Fundo Penitenciário. Desirée entrou em contato com a Defensoria Pública e conseguiu parcelar a multa em 24 vezes. Nem pensou em estender para cem parcelas, por exemplo, porque lhe parece eternizar a tortura. Quer passar o quanto antes a régua nessa história. “A maior injustiça da Justiça é esse trabalho que fazem para destruir a pessoa psicologicamente, porque a prisão é uma marca eterna, entendeu?” Ela chora e tosse ao mesmo tempo, uma tosse rouca. “É uma marca eterna, um peso difícil de carregar”, diz, passando a mão na barriga gestante de 7 meses.

Quando Desirée foi presa em janeiro de 2012 na Cracolândia, sob acusação de tráfico de drogas, carregava uma outra barriga, de 3 meses. Era também um menino, que botou no mundo ainda no cárcere, sob a vigilância de quatro policiais militares. Em julho daquele ano, ela saiu da prisão por meio de um habeas corpus com esse quarto filho no colo e a proposta interna de renascer para a sociedade. Não tinha ideia da existência da pena de multa e muito menos de suas consequências. Nisso se iguala a uma legião de egressos do sistema penal. “Muitos começam a ter dificuldade para tirar os documentos sem saber que é da pena de multa que vem o problema”, afirma Marina Dias, diretora executiva do Instituto de Defesa dos Direitos de Defesa (IDDD).

Entre toda a batelada de documentos que identificam e rastreiam um cidadão, o central é o título de eleitor, impossível de tirar para o inadimplente da pena de multa porque a Constituição prevê suspensão automática e genérica dos direitos políticos para todo aquele condenado na esfera criminal, seja qual for a pena ou o crime. Sem o título, segue-se uma cadeia de entraves que inviabiliza não apenas o emprego formal, mas também o acesso a crédito, a concursos públicos e a negócios jurídicos que dependem de garantias, como o contrato de aluguel ou de compra e venda.

Considerando que a grande massa de ingressantes no sistema prisional vem das camadas mais vulneráveis — pretos, pobres, periféricos —, a condição de devedor de uma pena monetária mantém essa população num labirinto perverso. “É a criminalização da pobreza”, define Rebecca Groterhorst, advogada e coordenadora de projetos do Instituto Pro Bono. “Não tem o dinheiro para pagar? Continue cumprindo pena. Não tem crédito? Fique sem saída.”

Punitivismo em ação

A multa penal consta no artigo 5º da Constituição, no parágrafo que trata da individualização da pena por lei. Está exatamente no meio de uma fila indiana de cinco itens, que começa pela mais restritiva, a privação da liberdade. Depois vêm a perda de bens, a própria multa, a prestação social alternativa (serviço comunitário) e, enfim, a suspensão ou interdição de direitos.

O Código Penal, por sua vez, regula a dosimetria da pena por meio de dias-multa. Consiste, no mínimo, de dez e, no máximo, de 360 dias-multa. O valor do dia-multa varia entre 1/30 e cinco vezes o salário mínimo vigente na época em que foi cometido o crime. Multiplicando um pelo outro, chega-se ao valor final imputado à pessoa.

Tomando como exemplo os crimes que mais encarceram no Brasil — furto, roubo e tráfico de drogas —, pode-se fazer a seguinte conta. Em 2022, a pena de multa de um furto ou roubo parte de R$ 404 e pode chegar a R$ 2.181.600, considerando o valor do salário mínimo deste ano.

O crime de tráfico de drogas iria em toada semelhante, não fosse uma peculiaridade. A Lei de Drogas de 2006 determinou que o valor mínimo para esse crime é de 500 dias-multa, donde a pena de multa zarparia de R$ 20.200 para bater no teto de R$ 9.090.000. Essa previsão de pena mínima para o tráfico foi considerada constitucional pelo Supremo Tribunal Federal em novembro de 2021. É uma lei com aval da Lei, portanto.

Até 1996, uma multa não paga poderia ser convertida em mais dias de cárcere, como ocorre na Guatemala, por exemplo. A partir daquele ano, isso foi proibido no Brasil. O Superior Tribunal de Justiça, em paralelo, fixou que a execução da pena de multa era de natureza fiscal, e não criminal. Ficaria sob o guarda-chuva da Fazenda Pública. O egresso inadimplente tinha o nome inscrito em dívida ativa e eventualmente ficava com o nome “sujo” porque o CPF poderia ser protestado.

Mas, na maior parte das vezes, a Fazenda não executava o que era informado pelos juízes criminais, pois os valores ficavam abaixo do mínimo previsto em leis estaduais para a sua execução. Literalmente, não valia a pena, considerando os gastos com todo o processo. A extinção da punibilidade também não dependia do pagamento da multa, e sim do cumprimento de privação de liberdade. Findo o tempo de prisão, a pessoa voltava a ser cidadã.

A coisa passou a mudar de figura em 2019, quando o STF entendeu que o Código Penal não retira a atribuição do Ministério Público de executar a multa. Aplicam-se as regras de dívida de valor da Fazenda Pública, é uma dívida com o Estado, porém o Supremo aponta que a pena de multa deveria se submeter ao escrutínio de um juiz de execução.

No mesmo ano, o Pacote Anticrime, assinado por Sergio Moro, então ministro da Justiça, recrudesceu a execução da pena de multa ao atribuir expressamente essa função ao Ministério Público. “E o MP veio com tudo”, reforça Groterhorst. Passou a cobrar todos os valores, criando inclusive um aplicativo para controlar o momento de execução dessa multa.

Para além disso, o Superior Tribunal de Justiça, olhando para a decisão do STF e para o Pacote Anticrime, revisou um tema, o 931, e passou a julgar que quem não saldou a pena de multa continua em débito com a Justiça.

“Os egressos passaram a ficar desesperados”, diz Groterhorst, especialmente porque o MP não recuou mesmo em tempos de pandemia e da restrição econômica. “Não bastasse o estigma de quem sai do cárcere para se recolocar na sociedade, a pessoa, de um lado, continua cumprindo a pena e, de outro, é má pagadora, porque pode ser processada em cartório, o que significa uma série de restrições de crédito, de financiamento, de empréstimo.”

Em novembro de 2021, o STJ ressalvou que a extinção da pena de multa seria possível para o condenado ou condenada que comprovasse a impossibilidade de pagamento. Para Groterhorst, melhorou entre aspas a situação porque o juiz de execução e o juiz de primeira instância muitas vezes criam inúmeros requisitos para a pessoa comprovar sua condição econômica. E, ainda assim, depois do “Ok, bora isentar”, o MP normalmente recorre da decisão.

Esse punitivismo arraigado na sociedade brasileira se escancarou nos últimos quatro anos, alimentado pelo bordão do “bandido bom é bandido morto” e pelo dever de castigar e marginalizar, seja pela restrição de liberdade ou pelo arrombamento do bolso.

“A tendência natural diante de um conflito é responder pela perspectiva da punição, e o crime nada mais é do que um conflito”, lembra Marina Dias. A questão é que não se enxerga esse conflito como oportunidade de aprimoramento. “A Justiça e a sociedade têm respondido ao conflito criminal de fora retributiva: àquilo que gera sofrimento, responde infringindo sofrimento, e não responsabilização e re-humanização”, diz ela.

“Ao ser enclausurada num sistema prisional falido e violento, a pessoa vai tentar se defender desse poder opressivo estatal com os recursos que tem, mesmo com histórico de violações e de um Estado ausente, que só se faz presente para prender e punir”, afirma Marina. “Enquanto isso, a vítima que sofreu a violência é alijada do processo, ninguém cuida dela. No máximo, vira uma testemunha e vai para uma audiência em que muitas vezes é revitimizada.”

Para o advogado e presidente do Conselho Estadual de Defesa dos Direitos Humanos do Maranhão, Luis Antonio Pedrosa, a pena de multa é mais um sinal de um país que é produtor histórico de injustiças e reprodutor de estigmas contra os pobres. “Um pobre chamado a depor numa delegacia, quando ele volta para o bairro, já tem uma condenação em relação a ele, antes mesmo que possa vir a responder a um processo penal”, afirma. “Imagine aqueles que cumprem pena e são inclusive obrigados a se tatuarem para que sejam identificados como egressos quando saírem do presídio.”

A execução de uma pena de multa, continua Pedrosa, só vai deixar essas pessoas mais vulneráveis. “Vai ser muito difícil se libertar da rede que o sistema prisional cria em torno delas, e que tem aval de uma sociedade que foi doutrinada ideologicamente a condenar os mais pobres.”

Uma massa de não-cidadãos

Especialistas reconhecem que a pena de multa ainda é um não-tema. Muitas são as organizações olhando para a porta de entrada do sistema prisional, ou seja, para as audiências de custódia e para o encarceramento em massa. Mas há um esvaziamento desse olhar para o durante e mais ainda para o pós-execução criminal, no qual se insere a pena de multa. “Esse tema ainda tem uma trajetória a ser percorrida”, reconhece Marina Dias. Alguns dados, no entanto, acendem a luz de alerta para as consequências práticas de sua execução entre os mais vulneráveis.

De acordo com o último censo promovido pela Prefeitura de São Paulo sobre a população em situação de rua, verificou-se que o percentual médio declarado de egressos do sistema prisional chegou a alarmantes 34%. Dentro desse universo, essas pessoas são ainda mais impactadas devido à falta de documentos, às precárias condições de saúde em função do uso de álcool e drogas, à falta de acesso à Justiça, afora a violência. “A pena de multa aparece como entrave, inclusive muitas vezes a pessoa vai para situação de rua em decorrência da própria pena de multa”, afirma Dias.
Já segundo o Tribunal de Justiça de São Paulo, apenas 0,67% das pessoas condenadas no Estado saldaram a pena de multa em 2021, o que parece condizer com a vulnerabilidade dos executados no sistema prisional paulista, no qual apenas 12,96% têm trabalho. E, destes, somente 67,39% dispõem de remuneração informada, em geral abaixo de um salário mínimo. A determinação de executar a todo custo a pena também tem levado à penhora de auxílio-emergencial, de pensão alimentícia, de valores módicos de poupança e até do auxílio-reclusão, benefício previdenciário pago pelo INSS aos dependentes do seguro preso, o que afeta não apenas o próprio como sua família.

Um outro aspecto é o alijamento do projeto político pela impossibilidade de votar. “Quanta pessoas podem estar fora do jogo democrático por causa da pena de multa?”, questiona Dias. Levantamento da Conectas Direitos Humanos mostrou que o número de pessoas que não votou em 2020 por possuir contra si condenação criminal transitada em julgado foi de 1,4 milhão de pessoas, cerca de 1% do total de 148 milhões do eleitorado. Se juntarmos a isso os presos provisórios, que não puderam votar, chega-se a 1,7 milhão. “A pena de multa é um dos possíveis grandes problemas que pode ter gerado essa impossibilidade, mas não temos como descobrir ainda se isso aconteceu ou não”, diz Luigi Ferrarini, consultor da Conectas e diretor do Instituto Brasileiro de Criminologia Cultural.

Quanto ao montante arrecadado pelo Estado, dados levantados por Gabriel Brollo Fortes, integrante do Instituto de Ciências Criminais, via Lei de Acesso à Informação, mostraram que foram cobrados R$ 2.249.859.428,57 em multas penais no ano de 2021. “Ninguém sabe claramente o destino dessa multa”, diz Groterhorst. “O objetivo seria revertê-la em políticas públicas voltadas para a pessoa presa, mas sabemos que o orçamento público é um funil cuja boca gigantesca aponta para a segurança pública, enquanto um valor mínimo, lá no final, segue para aquele que saiu do cárcere.”

Para Desirée Mendes, o que lhe coube nesse processo foi um tanto de revolta e, ao mesmo tempo, a determinação de vencer o sistema. Mãe de cinco filhos, à espera do sexto, com um corpo que neste momento não consegue responder à demanda alucinante do dia a dia, ela vive o dilema de mostrar ao mundo seu empreendedorismo e, ao mesmo tempo, manter um padrão de invisibilidade que lhe permita circular para driblar os efeitos da mácula da prisão. Às vezes, uma conta bancária lhe aparece zerada, às vezes lhe querem tomar os bens que não tem. Mas ela não se entrega: “Me recuso a virar vítima deles, entende? Me recuso! Luto todo dia porque eu não aceito o que fizeram comigo. E eles não vão fazer de novo.”

*Mônica Manir foi editora das revistas Nova Escola, Crescer e Claudia e editora do caderno Aliás, do Estadão, jornal onde também trabalhou como repórter especial. É autora de “Por um ponto final”, coletânea de reportagens que escreveu para o Estadão e para a revista piauí

Civilidade (ou não) em transição

Uma mesa, três tomadas. Nada de computadores ou telefones. Foi esse o cenário que um integrante da equipe técnica da transição encontrou em seu primeiro dia de trabalho. “Com cinco membros na equipe, cada um com seu laptop, a gente ainda teve que revezar tomada”, ele contou ao Meio, sob reserva. O clima nos grupos que operam a passagem de bastão entre a gestão Bolsonaro para o governo Lula é de intensa desconfiança (s.f. disposição para suspeitar de outrem; temor de ser enganado; descrença, dúvida, suspeição). Pudera.

Os sinais de que o ambiente não seria dos melhores começaram a aparecer tão logo a transição foi instalada. O Gabinete de Segurança Institucional (GSI), comandado pelo general Augusto Heleno, aquele que anda bradando por golpe até hoje, fez desembarcar no Centro Cultural Banco do Brasil, QG da transição, cerca de 40 funcionários, entre seguranças e técnicos, para trabalhar de forma conjunta com a equipe de Lula. A ajuda foi dispensada. (Você aceitaria?)

Dentro do prédio, o GSI já havia montado rede de wi-fi, mesas com computadores e telefones. Foi só montar e desmontar. No dia seguinte, uma varredura foi encomendada à Polícia Federal. Isso fez com que o coordenador da transição, o vice eleito, Geraldo Alckmin (PSB-SP), adiasse seu desembarque no CCBB. No primeiro dia, ao lado de Gleisi Hoffmann (PT-PR) e Aloizio Mercadante (PT-SP), Alckmin visitou a Câmara, o Senado, o Planalto, o Tribunal de Contas da União (TCU), recebeu pessoas no hotel na região central de Brasília. Mas deixou para colocar os pés no CCBB somente no dia seguinte, após a vistoria do esquadrão... antibomba. Sim, fizeram buscas por bombas. A transição passou a usar também uma rede própria de internet.

Diante da inconsistência no fornecimento de informações, alegada constantemente por integrantes da transição, a equipe de Lula lançou mão de servidores de carreira dispostos a contribuir com a passagem, mesmo que fora dos canais oficiais. Alguns foram buscados, outro chegaram a se oferecer para ajudar. Além disso, dados levantados por entidades que acompanham a execução orçamentária têm sido usados para identificar gargalos. “Essas contribuições não vêm só dos dados do governo”, disse a deputada Benedita da Silva (PT-RJ), que faz parte do Grupo de Trabalho (GT) da Cultura.

Um exemplo escandaloso de que essa sabotagem pode mesmo estar acontecendo: a notícia divulgada pelo portal Metrópoles de que computadores do Planalto "tiveram que ser formatados" após um ataque de vírus. O Ministério Público Federal no Distrito Federal (MPF-DF) chegou a pedir uma investigação sobre o caso e cobrou do governo a abertura de um procedimento administrativo. Ainda não há conclusão dessa investigação.

O Meio entrou em contato com a Secretaria de Comunicação (Secom) do Planalto questionando os repasses de informações e se há alguma conclusão sobre o “apagão” que atingiu os computadores. Não houve resposta. O espaço segue aberto para manifestações.

Panos quentes

Representantes do grupo político da transição até se esmeram em declarações públicas de que “o outro lado” tem sido prestativo, atencioso e colaborativo e que o fluxo de informações tem ocorrido da melhor forma possível. As falas não se sustentam diante de misteriosos apagões em computadores do Planalto, negativas de repasse de dados considerados sigilosos pelo atual governo e irritação do Planalto com a divulgação de informações repassadas.

Entre os episódios que mais irritaram os palacianos estão divulgações feitas pelo deputado André Janones (Avante-MG), apoiador do presidente eleito. Desde que os trabalhos começaram, o deputado mineiro, fenômeno nas redes sociais, travou uma guerra com Carlos Bolsonaro, filho do presidente que coordenou a comunicação da campanha derrotada.

Dias atrás, Janones chegou a se valer de dados repassados pelo governo para cutucar ainda mais o clã Bolsonaro. Janones expôs repasses para blogs e emissoras que professaram o bolsonarismo e seus ataques à democracia, e a destinação de R$ 13 milhões da Secom para o Instituto Paraná Pesquisas. O episódio rendeu bate-boca nas redes e reclamações da Secom sobre a “falta de cordialidade” do deputado.

Uma reclamação feita em caráter reservado por membros da transição refere-se aos estoques de medicamentos e vacinas do Ministério da Saúde. A pasta alega ter repassado todo tipo de informação requerida, sem especificar esse ponto específico. Membros da transição dizem que esse ponto tem sido tratado como sigiloso. A desconfiança é de que o governo tenta esconder um prejuízo com vacinas vencidas que pode chegar a R$ 2 bilhões.

“Bronca interna”

Os vazamentos tiveram consequências internas. Da parte do governo, responsáveis pelo envio de dados usaram os episódios para justificar a sonegação de informações. Já a coordenação da transição precisou dar uma bronca geral nos coordenadores dos grupos de trabalho: qualquer vazamento, se descoberto, será encarado como crime contra a administração pública e o responsável será penalizado.

Medidas práticas tiveram que ser baixadas. Os técnicos que trabalham nos GTs não podem mais deixar nada exposto em suas mesas e, ao fim do expediente, têm de levar toda ferramenta de trabalho para casa. “Nem um papel com rabisco pode ficar sobre as mesas”, disse um integrante da equipe. “Vai que esse papelzinho vire outro nas mãos de algum jornalista”. Os colaboradores também estão proibidos de fazer serão, mesmo com parte dos relatórios ainda atrasada. Todos precisam deixar o CCBB às 21 horas, liberando, assim, os funcionários da entidade para seguirem para suas casas.

A desistência na divulgação dos relatórios preliminares, no último dia 30, segue a mesma lógica. A primeira informação era de que o diagnóstico feito no último mês de trabalho seria exposto aos jornalistas — uma coletiva já havia sido marcada para a divulgação dos documentos. Só que ela esbarrou em uma portaria editada por Alckmin no dia 23 de novembro, com o compromisso de “não utilização de informações privilegiadas no âmbito do Gabinete de Transição, a ser obrigatoriamente subscrito por todos os colaboradores permanentes ou eventuais dos grupos técnicos”.

Outro entrave: no início dos trabalhos, bastava que a solicitação por dados fosse assinada pelo coordenador de cada grupo. Depois, instituiu-se que era preciso contar também com a assinatura de Alckmin. Segundo fontes da comissão, há uma fila de ofícios esperando por esse aval e ainda não entregues ao atual governo.

“Boa vizinhança”

A intenção de Alckmin, com a portaria, era fazer a política da boa vizinhança a tentar garantir o fluxo das informações, mesmo que seja o mínimo. “O governo está reticente em entregar o que chama de informações sigilosas. Mas quase tudo que a gente precisa, para eles, está nessa categoria”, disse um parlamentar que integra a equipe.

“O que não é sigiloso, a gente tem acesso, basta entrar no Siafi”, disse o parlamentar, referindo-se ao Sistema Integrado de Administração Financeira, plataforma que contém todos os dados das políticas implementadas pela administração pública e que é acessado somente por servidores autorizados.

A desconfiança e a insuficiência de dados têm atrasado outro trabalho que a transição pretende entregar: o “revogaço” de decretos, atos normativos e medidas provisórias de Bolsonaro. Isso porque há regras que não podem ser simplesmente extintas sem que se coloque outra em vigor, sob pena de prejudicar o fornecimento de serviços essenciais por parte do Estado. Com isso, alguns grupos já trabalham com duas listas de normas a serem revogadas: uma para as primeiras 24 horas de Lula e outra para os primeiros 100 dias.

Civilidade política

Governos derrotados precisam ter a capacidade de tratar a coisa pública como tal e, dessa forma, promover o repasse de dados para a prestação de serviços à população ocorra de forma satisfatória por parte do Estado.

Chefe da Secom do ex-presidente Michel Temer (MDB), o jornalista Márcio Freitas lembrou episódios que remetem a esse compromisso que se espera dos gestores públicos. Na passagem para Bolsonaro, ele se recorda de ter produzido e entregue um relatório completo das atividades, contratos, pessoal da pasta que coordenava. Chegamos a entregar esse documento duas vezes, visto que, primeiramente, seria o general Floriano Peixoto o chefe da Secom. Depois, a secretaria foi para o general Santos Cruz”, lembrou.

Lembrando a transição de Temer para Bolsonaro, Márcio Freitas destaca cenas que hoje estariam totalmente fora da receptividade de Bolsonaro. “A Marcela (Temer) fez questão de apresentar para a Michelle Bolsonaro o Palácio da Alvorada, da mesma forma que Mourão foi apresentado ao Palácio do Jaburu, onde Temer morava”, ressaltou.

Mas a marca da civilidade na política mais emblemática, segundo o jornalista, ocorreu em pleno impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff (PT). “Tivermos um processo de impeachment, ou seja, foi um processo de ruptura e, portanto, também não houve transição. Mas, mesmo assim, eu recebi, na época, do ministro Edinho Silva (PT-SP), todo relatório robusto sobre a situação a Secom com informações sobre pessoal, despesas, contratos feitos, em andamento. Foi um relatório completo, mesmo diante do impeachment”, disse o jornalista, em conversa com o Meio.

Na cabine de transmissão

Por Marcelo Martinez*

— E o juiz agora para o jogo porque o camisa 10 ficou caído no meio de campo!
— Joelho.
— Será? Daqui de cima não deu pra ver exatamente e…
— Torção de joelho. É uma dor terrível.
— Exato. Vamos aguardar e torcer para que nada de grave tenha...
— Mas pode ter sido tornozelo também.
— Sim, pode ter sido uma pancada no tornozelo e…
— Coxa. O músculo estira, aí é complicado.
— Certamente, mas vamos aguardar o...
— Ou câimbra. Câimbra também é brabo.
— É, de fato ele correu muit...
— Covid também dá isso.
— Oi?
— Vai que ele não tomou as doses todas. Gripe também. Ou Dengue. Zika. Chikungunya, talvez.
— Chikung...
— Reumatismo. Artrose. Gota, gota dói muito o joelho.
— Mas…
— Ou então vai chover.
— Hein?
— Minha vó sente dor no joelho quando vai chover.
— Olha…
— Pessoas com membros amputados também podem sentir dores no local.
— Não, peraí...
— Chama de dor fantasma. Já li sobre isso.
— Opa, o jogador já se levantou! Parece que tá tudo bem com ele agora!
— É assim mesmo. A dor passa, mas depois volta com tudo. Não pode bobear…
— Não, não, parece que tá tudo bem mesmo. Ele vai voltar pro jogo, amigo de casa!
— Eu não teria tanta certeza.
— O juiz dá bola ao chão e segue a partida!
— Porque o cara acha que dá pra voltar, mas não dá, não. Um perigo.
— Olha lá, o rapaz já tá até dando pique. Tudo bem com o craque do time!
— Às vezes o sujeito pode ter um mal súbito e cai duro. Já vi muito.
— Lançamento do meio de campo! Corta a zaga! A bola volta para a intermediária…
— Raio. Também cai raio às vezes. Assim, lugar aberto, né?
— E não há tempo para mais nada! O juiz encerra o jogo e o placar não muda mais! Obrigado por sua audiência e até a próxima, amigo de casa!
— Ou meteoro. Vírus biológico. Anthrax…

*Marcelo Martinez é chargista do Meio, roteirista de TV, ilustrador e designer gráfico, autor do livro infantojuvenil "O Guia Secreto do SabeTudo das Copas", que esteve nas listas de mais vendidos em 2014 e 2018

Retrospectiva 2022: streaming

A equipe do Meio selecionou o que viu de melhor no streaming ao longo de 2022, de lançamentos a relíquias, e sugere aqui para você. Aproveite!

Teerã (2020-2022) — AppleTV
Série israelense passada na capital iraniana é tanto uma instigante história de espionagem como uma aula sobre a vida na ditadura dos aiatolás.
(Pedro Doria, editor-chefe)

Big Mouth (2017-2022) — Netflix
A sexta temporada não perdeu a pegada e continua constrangendo todos os personagens com os dilemas e tabus da adolescência. Os únicos a se divertir são os monstros, que roubam a cena e ganharam um spin off, Recurso Humanos.
(Tony de Marco, diretor de Arte)

Manhãs de Setembro (2021-2022) — Prime Video
É uma série brasileira sensível, poética, que mostra as alegrias, tristezas conflitos de quem ousa ser diferente
(Luciana Lima, repórter especial em Brasília)

The Morning Show (2019-2022) — AppleTV
É muito interessante ver como funcionam os bastidores de um programa diário de TV e como eles lidam com a parte humana do trabalho, com os conflitos internos e de relações dentro do ambiente profissional.
(Nathasha Ferreira, editora assistente de conteúdo em vídeo)

The Sopranos (1999-2007) — HBO Max
Tida por muitos como a série fundadora e um dos melhores roteiros da história da TV americana, vale cada minuto da (re)visita.
(Flávia Tavares, editora executiva)

The Good Fight (2017-2022) — Prime Video/Paramount+
O drama jurídico sucessor de The Good Wife é só um pretexto para alegorias sobre a era Trump, QAnon, movimento negro, #metoo, criptomoedas, bigtechs onipotentes, realidades paralelas e os efeitos da microdosagem de LSD. A temporada final acabou de ir ao ar e vai deixar saudades.
(Heinar Maracy, coordenador de marketing digital)

Ruptura (2022) — AppleTV
Acompanha a vida de cinco funcionários da Lumon, empresa que está desenvolvendo um procedimento experimental em que as memórias pessoais e as do trabalho são permanentemente separadas. O ar de mistério e de que alguma coisa não está certa paira a todo momento.
(Tay Oliveira, criadora de conteúdo)

The Boys (2019-2022) — Prime Video
A terceira temporada cria cada vez mais laços entre a trama e a história da ascensão do nazifascismo, além de proporcionar ótimas paródias com líderes de extrema-direta atuais.
(Olavo David, produtor e repórter multimídia)

Como mudar a sua mente (2022) — Netflix
Tão eficiente que fez um dos meus amigos mais coxinha começar a cultivar cogumelos em casa. Aprecie com moderação.
(Wagner Martins, diretor de marketing)

Upload (2020-2022) — Prime Video
Em 2033, antes de morrer, as pessoas podem fazer o upload de suas mentes para um hotel de luxo, onde cada usuário pode ter acesso a bens e serviços diferenciados. É uma comédia que vai muito além das atuais tentativas de desenvolver o metaverso.
(Adriano Oliveira, editor de conteúdo em texto)

Mais clicados da semana

Se você pudesse ir ao Qatar, levaria uns pen drives na mala? Eduardo (diz que) levou. Aqui estão os mais clicados pelos leitores na semana:

1. Estado de Minas: Eduardo Bolsonaro foi ao Qatar. Levar pen drives.

2. UOL: Mande mensagem para você mesmo por WhatsApp.

3. Poder360: Mais memes dos pen drives de Eduardo.

4. Meio: A obra de Tony de Marco.

5. Estadão: O carma do 7 a 1. E seus memes.

Para ler com calma. Não é fácil dimensionar e compreender o que acontece na China, cerrada para o exterior, enclausurada em sua política Covid zero domesticamente. Mas os protestos que se espalham por algo em torno de uma dúzia de cidades dão uma pista de que o contentamento popular com Xi Jinping pode estar enfraquecido. O aparato repressor do Estado chinês tem tudo para suprimir as manifestações. A forma como Xi vai reagir a essa provocação é que está em jogo agora. Enquanto isso, no Irã, mais de 400 pessoas já foram mortas na revolução em andamento — 60 eram menores. Estima-se que mais de 18 mil iranianos tenham sido presos nos protestos. Acontece que o estado de segurança do Irã foi construído para resistir longamente à agitação popular.

 

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