Edição de Sábado: Uma seleção de argumentos

Quando o Qatar estrear neste domingo (20) contra o Equador, uma pelada que provavelmente terminará em derrota dos donos da casa (olha o bolão!), o Brasil estará diante de uma inédita Copa do Mundo com dois presidentes: um que abraça o passado e outro no qual muitos futuros são projetados, como numa caixinha de surpresas. Qual deles vai dar o tom da nação, e como os jogadores responderão a eles? Esse é só o primeiro dos debates curiosos aos quais a Copa do Mundo vai nos convidar.

Essa situação — provocada pelo deslocamento da Copa do Mundo para o fim do outono do Hemisfério Norte — pode trazer alguns perigos para a democracia brasileira. Afinal, há por aí, acampados diante de quartéis, alguns milhares de patriotas verde-amarelos com camisa da seleção. O que é no mínimo diferente de 2018, quando não tivemos o velho costume de decorar ruas com painéis e caricaturas dos craques: o Brasil das redes sociais parecia estar conectado com ansiedades mais curtas, não fazendo mais sentido o hábito que tantos suburbanos consagraram. Será interessante ver como esse sentimento difuso golpista se comportará no momento em que o hino tocar nos televisores. Montarão telões de led, bancados por empresários? Comemorarão seus gols ao som de salvas de canhão? Seria divertido — se não fosse trágico — ter flashes ao vivo na porta dos quartéis e salões presidenciais, competição dos acampamentos mais animados respondendo ao chamado de Galvão Bueno. Bolsonaro certamente sairá de sua caverna digital, postando coisas em busca da lealdade de um ou outro jogador, pode esperar.

Mas o que mais me interessa é a dissolução do sentimento golpista num sentimento maior (e mais tradicionalmente amarelo e verde) de nação.

O certo é que muita gente preocupada com a democracia vai fazer as pazes com seu velho uniforme Nike e confraternizará com amigos e parentes, naquele que é o único ritual que se replica uniformemente por todo o Brasil. De quatro em quatro anos, a nação traja costumes folclóricos, se reúne em torno de TVs e torce por sete churrascos. Magistrados decretam meio expediente em dias de jogos do grupo da Argentina, aulas são piedosamente mortas e pontos obrigatoriamente facultativos se multiplicam por todo país. Tenho amigos que farão churrasco já neste domingo, vendo Qatar x Equador. Pervertidos, claro.

Como sempre, a Copa do Mundo não é algo que nos passe despercebido. Todos se envolvem com o Mundial, alguns pelos motivos mais chatos. “Como podemos aceitar que um torneio desses seja disputado num país tão ditatorial e negligente com os direitos humanos quanto o Qatar?”, afirmaram aqueles que, com certeza, desconhecem a performance dribladora de Gabriel Martinelli no Campeonato Inglês. E tudo bem, o delicioso da Copa do Mundo é que ela deixa inúmeras portas abertas para que as pessoas entrem.

A controvérsia a respeito do Qatar é interessante, mas algo tardia. Bom, o país foi escolhido sede do Mundial há doze anos. A monarquia absolutista dos Al Thani não é, de fato, o regime mais interessante para quem é, como você e eu, apóstolo da democracia liberal. A questão, para mim, é que quem aposta nesse tipo de conversa nunca está muito a fim de debates profundos.

Caso houvesse disposição, poderíamos, por exemplo, questionar qual o tamanho das “brechas teológicas” para a ideia de estado laico e democrático. Começaríamos propondo uma comparação entre o surgimento do Cristianismo — uma religião de caráter marginal, abraçada desde os primeiros séculos pelo último degrau social do Império Romano e só depois adotada por um imperador sem qualquer obrigação de conversão — com o ethos do Islã, que nasceu com vocação de estado já em seus primeiros anos, quando o profeta Muhammad liderava seu exército em saques e conquistas no sétimo século até se tornar califado. Investir nesses debates nos levaria obviamente a situações muito mais tensas que o bolão do Grupo H (Portugal, Uruguai, Gana e Coreia do Sul — onde, aliás, acho que a Coreia do artilheiro Son Heung-min, destaque do Tottenham, pode roubar uma vaga), ao mesmo tempo em que seríamos obrigados a reconhecer que o cristianismo mais ruidoso do presente começa a vedar perigosamente a tal brecha teológica, em países como Brasil e os Estados Unidos. Já ficou desanimado? Eu também.

Para entreter o amigo que descobriu uma causa pela qual lutar apenas e a propósito da Copa, poderíamos afirmar categoricamente que, de fato, a Copa do Mundo não é para si. Não nos faltam exemplos de Mundiais que foram disputados em meio a controvérsias democráticas — e, neste ponto, a malversação de recursos para a realização da Copa de 2014 no Brasil soa como um dos episódios mais suaves.

Quatro anos se passaram desde a Copa da Rússia, e a noção do sportswashing empreendido por Vladimir Putin só se torna mais cristalina. O mundo já tinha sido bastante benevolente com a autocracia de Moscou, que, à época, já menosprezava tanto os direitos da população LGBTQIA+ quanto a integridade do território ucraniano na região do Donbass. Álcool, no entanto, havia à vontade. No Qatar, a experiência de bebemorar promete ser bastante tortuosa. Primeiro, os copos de cerveja já custariam inacreditáveis R$ 73; depois, a uma semana da abertura, o emir Tamin Al Thani exigiu a ocultação das propagandas da Budweiser, patrocinadora oficial do evento. Agora, a dois dias do pontapé inicial, o governo decidiu proibir a venda de cerveja dentro e no entorno dos estádios, liberando somente a versão sem álcool nessas localidades. Nas fan zones, ao torcedor ainda poderá encontrar seu oásis etílico, mas estará sujeito a longas filas e com acesso somente depois da ultima reza muçulmana, para não dar vexame na terras do emir.

Os exemplos recentes saltam aos olhos; no entanto, Copas do Mundo convivem com autoritarismos dos mais diversos desde sua primeira década. Foi em 1934, primeiro ano de governo fascista de Benito Mussolini na Itália, que a Squadra Azzurra obteve seu primeiro título. Em 1978, a sanguinária ditadura da Argentina mal tentou fazer uma enorme operação de RP na Copa do Mundo vencida por Mario Kempes y companía. Mesmo no Brasil de 1950, o governo do presidente (e general liberal) Eurico Gaspar Dutra já se encontrava em fase de recrudescimento, com perseguição franca ao Partido Comunista Brasileiro e seus apoiadores.

Nada disso alivia demais a barra do Qatar, país com legislação absolutamente revoltante no trato com imigrantes e que foi gradativamente trocando o tom amistoso por posições irredutíveis, conforme o torneio se aproximava. Se era mentira que 6.500 operários morreram nas obras da Copa (uma conta enfática demais, produzida por ONGs emocionadas e já desmentidas), é preciso reconhecer que trazer as verdades do Qatar será uma tarefa muito obstruída pelas autoridades locais. Nesta quarta, um repórter da TV dinamarquesa foi grosseiramente abordado enquanto estava ao vivo, numa situação sem justificativas. Veremos mais situações assim nos próximos 30 dias.

A única coisa com a qual não concordo é que tenhamos que sacrificar nossas ansiedades e alegrias com o esporte que amamos por conta disso, e espero não soar muito simplista quando digo isto. Cabe o alerta de que meu argumento se tornará, pouco a pouco mais emotivo, talvez até com certo pendor ao piegas. Mas, se isso ocorrer, é porque não se conhece outra maneira de defender a alegria, enquanto direito. Se ética e moral servem desavergonhadamente à defesa do estado reflexivo, da angústia perante as injustiças do mundo, fazendo da compaixão um tributo que a tristeza paga à humanidade, a alegria e o entusiasmo dificilmente terão perto de si um argumento igualmente racional que nos obrigue a sermos [ou melhor, ficarmos] felizes.

A história do Brasil é algo que começa a se redimir para dentro e para fora de seus territórios a partir do futebol. Por melhores que tenham sido os esforços de gente valorosa que residiu e pisou por aqui desde 1500, a verdade é que apenas o futebol codificou um orgulho brasileiro em escala nacional que pudesse ser reconhecido pelas demais nações. O que o Brasil fez com o esporte mais amado do planeta, a partir do surgimento da Copa do Mundo em 1930, deu estatura e relevância a 8,51 milhões de quilômetros quadrados que, até então, tinham poucas realizações honrosas. O analfabetismo grassava, a instabilidade política estava na ordem do dia e a escravidão, abolida havia menos de 50 anos, ainda ecoava seus efeitos nefastos.

Quando digo “O que o Brasil fez”, não quero inferir aqui, de forma inocente, qualquer ideia de um grande projeto nacional top-down, ou de qualquer visionarismo de gabinete. As coisas simplesmente aconteceram, como costumam ocorrer na maior parte do tempo. Leônidas da Silva se tornou o Diamante Negro em 1938, Pelé foi apontado príncipe ainda aos 17 anos, em 1958, e coroado rei em 1970. Mesmo dentro da CBD (a antiga CBF), as teses mais racialistas foram derrubadas pela percepção de que era melhor ter Garrincha contra os europeus do que não tê-lo. Pouco a pouco, os quartos de meninos e meninas foram se enchendo de pôsteres e recortes de ídolos negros que inspiravam respeito porque tinham inventado os motivos de orgulho de um triste trópico. Didi, o príncipe etíope; Nilton Santos, a Enciclopédia; Jairzinho, o Furacão da Copa. Todos eles recriaram, à maneira brasileira, o conceito do self-made man, o garoto que brincava na rua e seguiu brincando até ter o mundo a seus pés. A grandiloquência do jornalismo de outrora, com Nelson Rodrigues à frente, viu a grandeza deles e os cristalizou numa grande tradição oral. Aí está nosso mito fundador.

Mas os intelectuais dirão, com bastante razão, que hipervalorizar o papel dos negros como astros do esporte (ou da música) é sintoma de uma sociedade que lhes obstrui o caminho em todos os outros campos. É verdade. Contudo, é de se imaginar o que teria acontecido caso não tivéssemos vencido nem isso. Imagine um Brasil sem títulos mundiais de futebol, sem um Pelé vitorioso, sem essa mescla de identidade e orgulho que o futebol injetou na nação entre os anos de 1958 e 1970. Pessoalmente, tendo a imaginar que seria um país infinitamente mais triste e profundamente mais racista, uma ilha de depressão lusófona, uma grande coleção de exílios, fossem eles europeus, africanos e ameríndios, sem uma cola que justificasse a bandeira. Inventaríamos alguma outra coisa? Pode ser. Mas não sei se seria melhor do que o que nos foi dado pelo futebol.

Se pudermos agora falar de bola, vale ter a certeza de que a Copa do Mundo será bastante diferente de tudo que já vimos, e que considero o Brasil favoritíssimo, graças, justamente, a essas mudanças. E mesmo em campo, há discussões que não vale a pena debater com visões de outrora.

A principal razão se dá pelo fato de que o técnico Tite conseguiu reunir a maior coleção de pontas das últimas décadas, numa era que reabilitou os pontas. Ao Qatar, o Brasil levará nove atacantes que ocuparão quatro lugares no time titular. O que muda o jogo, no entanto, são as cinco substituições, incorporadas ao futebol por ocasião da pandemia.

Ao menor sinal de fadiga, Neymar, Raphinha, Vini Jr. e Richarlison poderão ser substituídos por Gabriel Martinelli (um dos maiores dribladores da Premier League), Antony, Gabriel Jesus, Pedro e/ou Rodrygo. Isso significa uma intensidade no ataque absolutamente assombrosa, em que velocidade e técnica poderão fazer miséria, se aliadas a trocas de posições bem ensaiadas. Não existe nada parecido com isso na Inglaterra, uma equipe talentosa, mas coordenada sem brilho pelo técnico Gareth Southgate.

Essa coleção de pontas e atacantes muda bastante aquilo que sempre foi o jogo do Brasil, porque o papel dos laterais mudou. Se antes estávamos acostumados à agressividade esplendorosa de gente como Jorginho, Cafu, Roberto Carlos, Maicon, Marcelo e Daniel Alves, subindo ao ataque e voltando à defesa, é preciso reconhecer que o futebol não funciona mais assim. Primeiro, porque o corredor encurtou: defesa e ataque trabalham atualmente muito mais próximos, imprensando os adversários. Os espaços no futebol diminuíram a tal ponto que a lendária matada no peito, aquela em que a bola escorre pelo corpo do jogador por quase três segundos, se tornou uma impossibilidade prática. É justamente essa situação que permite que a seleção possa levar um Daniel Alves meio baleado — lembrando que há outros três jogadores no grupo capazes de fazer uma lateral-direita: Danilo (Juventus), Fabinho (volante do Liverpool) e Éder Militão (zagueiro do Real Madrid).

Segundo, porque equipes que funcionam no 4-2-3-1 brasileiro (com variações ao 4-1-4-1) trabalham com pontas abertos, gerando agressividade com muito arranque no drible. Esses pontas já atuam numa faixa alta de campo, logo não precisam que os laterais os ultrapassem. Precisam sim, que os laterais se aproximem para fazerem trocas inteligentes– quase automatizadas - de posições e de passes.

Terceiro porque hoje a faixa de campo em que os laterais trabalhavam quando chegavam o ataque — a zona próxima da linha de fundo — é cada vez menos reconhecida como o melhor lugar para realizar um último passe, muito em razão da evolução acentuada dos goleiros — a posição que mais se transformou e se aperfeiçoou no futebol deste século. São mais altos, mais ágeis e mais bem treinados para situações previsíveis, como a curva de uma bola cruzada na área. Além disso, já participam muito mais da construção das jogadas de ataque: nisto, Alisson e Ederson são dos melhores do mundo. Não bastasse isso, times mais defensivos costumam ter zagueiros e volantes altos, que agradecem a cada vez que uma bola é cruzada na área.

A saída diante desse cenário foi formatada pela Espanha de 2006 e cristalizada nos times de Pep Guardiola: tornar o futebol contemporâneo num jogo cada vez mais “terreno”, em que a troca de passes no chão é muito mais valorizada do que os cruzamentos dos laterais – por gerar maior imprevisibilidade, sobretudo se os jogadores forem muito técnicos e os gramados, perfeitos. Equipes que realmente criam muitas chances de gol acabam sendo aquelas em que os pontas fazem movimentos em diagonal, da ponta para o meio, na direção da área, atacando os espaços vazios entre os homens da defesa e recebendo a bola em posições quase frontais ao gol, onde um chute fica cada vez menos defensável. Lembre-se que futebol não é basquete: chutar de longe não gera três pontos. Logo, é melhor chutar de perto com mais chances de acerto.

Isso não significa, porém, que situações de bola parada não seja arriscadas. Ao contrário, são perigosíssimas, e cada vez mais os movimentos de todos os envolvidos numa jogada são orientados em relação a um jogador específico. É quando o futebol aprende com o futebol americano: há o jogador que vai receber a bola, há o seu colega que vai impedir que outros cheguem perto dele, há o outro que vai tentar atrair a marcação para deixar o receptor livre. Espera-se esse tipo de perigo de seleções como Alemanha e Dinamarca.

Os maiores rivais do Brasil serão a Argentina de Lionel Messi, invicta há mais de 30 jogos e com padrão de jogo agressivo bem montado por Scaloni, e a França, que pode se dar o luxo de ter os volantes Tchouaméni e Camavinga, ambos do Real Madrid, nos lugares dos lesionados Pogba e Kanté, fundamentais no título da Rússia. A Espanha corre por fora, graças a uma renovação liderada pelo garoto Gavi. Mas nenhum deles têm a coleção de talentos titulares e bancários como o Brasil, muito superior, sem dúvida, à convocação de 2018: entre os 11 que habitualmente entram em campo pelo Brasil, apenas o volante Fred oscila como reserva em seu clube, o Manchester United — o que pode levar Tite a optar por um 4-1-4-1 com Casemiro na contenção e Paquetá por dentro. O mundo respeita muito esse Brasil, mas vale uma ressalva: nossa defesa, com Thiago Silva (Chelsea), de 38 anos, é um tanto envelhecida. Não se surpreenda caso o discreto Bremer (Juventus) conquiste uma vaga ainda na primeira fase. As laterais também devem mudar bastante, uma vez que Danilo e Alex Sandro não andam exatamente brilhantes na Juve.

Os temas são esses. Escolha bem o seu debate e boa Copa.

*Márvio dos Anjos é jornalista e crítico musical. É head de Relações Institucionais da OneFan. Foi repórter na “Folha de S.Paulo”, editor no “Jornal do Brasil”, “Destak Brasil” e “O Globo”, onde chefiou a editoria de Esportes. Apresenta o podcast “Deus te Ouça”, na Folha, e escreve para “O Globo” e “The Times”. Na Copa do Qatar, vai apresentar o #MesaDoMeio Especial Copa, com Pedro Doria e David Butter, no canal do Meio no YouTube.

Luz nos antirracistas

Apesar do breu na Rua Martiro Ângelo Derenze, ainda longe e de dentro do táxi, foi fácil localizar o colégio. Na quinta-feira, quase cem estudantes e um tumulto atípico bloqueavam o portão azul da Escola Estadual Antônio Ruy Cardoso, em Taboão da Serra, na Grande São Paulo. Nenhum dos adolescentes estava de uniforme, não era horário de aula. Entre os alunos do 6º ano do Ensino Fundamental e 3º ano do Ensino Médio, se intercalavam meninos de moletom e calças largas, meninas de unhas postiças e cabelos bem arrumados no estilo baby hair. Perguntei pelo professor Jean Francalino, diretor do colégio. Logo uma menina respondeu que ele corria “pra cá e pra lá” na tentativa de resolver a escuridão. É que, bem naquela noite de palestra, um garoto decidiu jogar o par de tênis no fio elétrico. Acertou os cabos, mas sua mira também afetou o transformador. O resultado? A escola, a rua e parte do bairro sem luz. O debate sobre Consciência e Identidade nas Relações Sociais estava marcado para 19 horas. A Enel já havia sido chamada havia uma hora — e nada.

Os professores se dividiam entre conversar com os alunos e deliberar a respeito do possível cancelamento da discussão. O ato marcaria a segunda noite do “1º Encontro da Diversidade Étnico-racial”, uma iniciativa da própria escola para, às vésperas do Dia da Consciência Negra, trabalhar a temática com os jovens e suas famílias dentro dos quatro muros da instituição situada numa região periférica. Na quarta, as reflexões haviam cercado as Bases Legais para uma Educação Antirracista. Na sexta, para encerrar as atividades, a comunidade escolar se reuniu pensando os Atravessamentos Estéticos e Políticos da Negritude. Bem… enquanto esperavam o milagre da Enel e matutavam sobre a realização do evento, fui levada à sala dos professores. No caminho, as paredes carregavam marcas das discussões em sala de aula. Num tecido TNT amarelo pendurado numa delas, estavam colados os versos da música War, de Bob Marley: “Enquanto a cor da pele for mais importante que o brilho dos olhos, haverá guerra”. Em torno da frase, desenhos coloridos de mulheres negras pintados pelos alunos dos sextos anos A, D e E.

Sala dos professores

Ali, iluminados pela lanterna de um celular, os palestrantes conversavam sobre as dificuldades da luta antirracista. “Faço questão de sempre estar com a minha indumentária, porque as pessoas precisam se acostumar a ter gente como nós em espaços de poder. Quando alguém chega e me vê com turbante, eketé ou simplesmente vestindo minhas roupas coloridas, é claro que se espanta. Percebo isso, mas não trato com ojeriza. Sei que aquele olhar reflete a estranheza de quem se deparou com algo que não é comum. Sou preto, gordo e um homossexual declarado, além de não esconder meu sacerdócio e minha vida dentro dos povos tradicionais de matriz africana. Mas a gente vai conquistando as coisas devagar”, disse o Pai Joel de Xangô, secretário adjunto de Cultura do município.

Vestindo um turbante amarelo que combinava com o blazer, naquela quase-conversa-de-boteco regada a cafezinho, Joel ressaltou a necessidade de se combater as injustiças por meio da política. “Para darmos um passo maior, precisamos ter um dos nossos fazendo as regras no Legislativo. Mas não vai ser comigo, não sou político, sou Babalorixá que trabalha com políticas públicas. Ponto.” Chamada para analisar a institucionalização do racismo, Andréia de Jesus Monteiro, que integra a direção da OAB subseção de Taboão da Serra, ponderou que tão difícil quanto “chegar lá” é se manter vigilante em relação às leis “que podem destruir todo nosso avanço ou facilitar o caminho para uma sociedade menos injusta”. “Olha só a nossa Lei de Cotas… dez anos se passaram e muita gente ainda questiona sua necessidade e efetividade. E o problema maior é que, nos últimos quatro anos, essas perguntas permearam os pensamentos daqueles que integravam nosso Legislativo e Executivo. Acham lindo dizer que ‘somos todos iguais, não importa a cor da pele’, mas trabalhavam para desmanchar as legislações que tentam reparar nossa história. Iguais? Onde?”, questionou a advogada. Apesar de todos saberem a resposta, ninguém respondeu.

Os educadores, então, puxaram o assunto para dentro do ambiente escolar. A professora Valquíria, que leciona História, desembestou a falar. “Numa outra E.E. que trabalhei, durante os estudos sobre África, avisei os alunos que levaria um Pai de Santo para trocar com eles. Disse bem assim: ‘sei que aqui está cheio de evangélicos, mas a gente só acaba com o preconceito diminuindo a ignorância. A discussão acontece semana que vem. Vocês são livres. Quem não quiser vir, pode ficar em casa’. Imaginei que a escola estaria vazia, mas lotou. Todos os jovens evangélicos foram, participaram e fizeram perguntas. Se interessam mesmo. Agora, com as professoras foi o contrário. Passei um documentário sobre a cultura afro e, na cena gravada num terreiro, várias levantaram e saíram”, contou.

Quem reivindicou a palavra dos evangélicos foi a advogada Andréia Monteiro. No papo, ela se identificou como mulher preta e evangélica, mas que não se esquece de sua ancestralidade. “Eu e meu marido… nós somos evangélicos. Sabemos bem como é. Dentro das igrejas ensinam que todo demônio vem do Candomblé, mas trabalhamos todos os dias para não replicar isso aos nossos filhos." Sentada ao lado das duas crianças, um casal de onze anos, ela trouxe à mesa a lembrança do dia em que seu menino apareceu em casa com o gibi Contos dos Orixás. “Entrei na sala e achei estranho. Ao lado da estante, com a capa virada para baixo, estava um livro que eu nunca tinha visto. Questionei meu filho e ele, envergonhado, respondeu que estava aprendendo sobre religiões de matriz africana na escola, gostou das aulas e pediu o livro da professora emprestado.” Ela seguiu o relato afirmando que, sem titubear, sentou ao lado da cria para aprender sobre a cultura dos que os antecederam. Quando a discussão seguia no balaio da religião, foi atravessada pela voz do diretor. “Tentamos de tudo, a luz não voltou, vamos cancelar o evento”.

A palestra

Francalino se enganou. Os jovens não arredaram o pé. Recusaram-se a ir embora. Os palestrantes começaram no escuro mesmo. Com um microfone ligado à caixa de som portátil, o dirigente de Educação de Taboão da Serra e Embu das Artes, Reinaldo Lima, atrelou a luta antirracista à humanização. “Nós acreditamos na escola pública de qualidade, aquela a qual vocês têm direito e que possui a obrigação de refletir sobre todas as situações que impactam nossa sociedade. É furada essa história de que não se pode discutir o racismo nos colégios. Na verdade, estes são os espaços em que precisa haver uma discussão permanente para que percebamos o quanto essas formas de racismo, principalmente o estrutural, desumanizam. Não podemos fugir das reflexões." Terminou a fala bradando para que os alunos jamais aceitem menos do que tudo aquilo que é deles por direito.

Às 20h40 a luz voltou revelando os olhos atentos dos alunos. Mesmo matriculados nos períodos da manhã e tarde, seguiam ouvindo noite adentro. Quase todas as cadeiras ocupadas. “Fico lisonjeado em poder conversar com vocês, em nome de todos os meus ancestrais. Cada espaço vazio aqui está ocupado por um deles”, agradeceu o Pai Joel sendo, neste momento, interrompido por uma rajada de vento. Em Nagô, a língua de seu povo Iorubá, cantou uma antiga cantiga que diz que “existe o branco, o azul e o vermelho. E cada um deles é completo em sua plenitude porque, todos eles precisavam ser diferentes”.

O Coordenador do Comitê da Igualdade Racial da cidade, Antonio de Souza Santos, nem precisou do microfone. Começou sua fala aos gritos: “Boa noite! Antes de tudo, peço uma salva de palmas para vocês que, mesmo no escuro, não foram embora dando um exemplo de resistência, permanecendo para debater e combater o racismo excludente, que mutila e mata”. Quando o evento se encaminhava para o fim, um aluno do 2º ano Ensino Médio pediu a palavra e passou quatro minutos falando sobre a Consolidação das Leis do Trabalho, a CLT. “Minha avó, pequena, foi abandonada na Bahia. Entregue em um sítio. Os donos meio que adotaram, mas ela não tinha acesso a educação e passou a vida trabalhando de graça. Ainda hoje, em São Paulo, a capital do trabalho, existe trabalho análogo à escravidão que principalmente nos atinge, o povo preto. Queria ressaltar a importância da CLT para nos garantir trabalho, acesso e segurança”. Assim que terminou, outro jovem pediu para encerrar o evento e evocou Djonga: “fogo nos racistas”.

Pouco tempo sobrou para conversar com os alunos. A escola esvaziou em menos de dez minutos depois do encerramento do evento. Alguns foram para o ponto de ônibus, outros continuaram caminhando. Mas Luísa da Silva Alves, estudante do 2º ano, parou para conversar. Ressaltou que seu momento favorito, até então, havia sido um desfile organizado no primeiro dia. As alunas se dividiram em grupos e, com os adereços disponíveis, montaram as vestimentas de acordo com os costumes de cada país africano. Gabriel Oliveira, também aos 17 anos, disse que a história da socióloga, professora e co-deputada estadual Najara Costa (PSOL-SP) o inspirou para continuar lutando contra o racismo nas salas de aula. A parlamentar conversou com os alunos na quarta. Prestes a se formar, Guilherme de Silva Amaral levantou a importância do evento ocorrer após dois anos de isolamento pela pandemia de Covid-19. “Esse ano está sendo atípico, voltamos a nos ver e retomamos o convívio. Com isso, o racismo se faz mais presente, não tem jeito. E essas palestras nos estimulam a ter mais voz, perder o medo de falar. E você sabe, a desconstrução do racismo só acontece a partir da escuta e da fala, do diálogo.”

Neste sentido, o diretor Francalino avalia que a luta antirracista se alicerça, cotidianamente, dentro das salas de aula para então, atingir e transformar a sociedade. “Não temos opção, precisamos insistir. Até porque, segundo nossos dados, 82% dos nossos alunos se identificam como pretos. O papel que executamos, de desconstrução e reconstrução, é contínuo. A partir da consciência, estamos tentando diminuir, até extirpar, as práticas racistas do âmbito escolar. Mas esse trabalho não ocorre só dentro dos muros da escola. Começa aqui, mas precisa atingir as famílias e a comunidade como um todo”.

Essa foi por pouco

Przewodow é uma vila minúscula, de uma rua. Tem 413 habitantes. No dia 15 de novembro, às 15h40, a aldeia que fica a 6,4 quilômetros da fronteira da Polônia com a Ucrânia foi sugada para a História, fazendo com que muitos temessem vê-la repetir o papel de Sarajevo em 1914. Ao longo da semana, gente poderosa se esforçou para que a comparação não se consumasse e Przewodow caísse no esquecimento rapidamente.

O que colocou a vilazinha no mapa geopolítico foi um míssil que atingiu um silo de grãos e acabou matando dois fazendeiros. O S-300 é um modelo antigo da União Soviética. Mas ele também é usado como defesa aérea da Ucrânia. Definir se o artefato foi lançado por russos ou ucranianos, na guerra que completa nove meses agora, pode determinar se teremos ou não uma Terceira Guerra Mundial. E em reedição atômica. Uma hora depois de o incidente virar notícia, Volodimir Zelensky, presidente da Ucrânia, já dizia que o ataque foi sim do exército de Vladimir Putin. O Ministério da Defesa russo, por sua vez, correu para negar e acusar ucranianos de provocação. Os demais envolvidos optaram por um pouco mais de cautela.

Joe Biden, presidente dos Estados Unidos, estava dormindo em Bali, na Indonésia, quando Przewodow virava o centro do mundo — ao menos por algumas horas. Estava lá para o encontro entre os países do G20 e para aplacar as tensões com outra superpotência, a China. Foi acordado por assessores às 5h30 do horário local. Ainda de camiseta, telefonou para Andrzej Duda, presidente da Polônia. Cada palavra precisava ser cuidadosamente escolhida. Uma reunião de líderes em Bali foi convocada. A Polônia é parte da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan). Ao se comprovar que o míssil veio da Rússia, o líder polonês poderia evocar o Artigo 5 do acordo, segundo o qual um ataque a um membro da Otan representa um ataque a todas as nações da organização. Antony Blinken, secretário de Estado dos EUA, também havia sido acordado por seu guarda-costas às 4h. Fez contato com seus pares poloneses e arranjou a ligação entre Biden e Duda.

Conforme as horas foram passando, a partir de imagens de satélite foi ficando clara a possibilidade de o míssil ter partido do sistema antiaéreo ucraniano. "Deixe-me ser claro: isso não é culpa da Ucrânia. A Rússia é a maior responsável já que segue em sua guerra ilegal contra a Ucrânia", grifou Jens Stoltenberg, secretário-geral da Otan. Um pano quente com carinho, para não deixar ninguém muito bravo. Mas oficiais americanos já haviam agido para conter a verbarrogia de Zelensky, que podia levar a um agravamento rápido da tensão. Segundo a CNN, o conselheiro de Segurança Nacional americano, Jake Sullivan, ligou para o escritório do ucraniano e pediu cuidado. Zelensky queria uma conversa com Biden, mas eles não se falaram na noite de terça. Já na noite de quarta-feira, o diretor da CIA, Bill Burns, estava reunido com Duda em Varsóvia para acompanhar as investigações do ataque. Horas antes, Burns estava se protegendo de mísseis russos na embaixada americana em Kiev. Zelensky pediu para que a Ucrânia faça parte das investigações, mas até agora não foi atendido. E a Polônia não só não recorreu ao artigo 5 como pode sequer recorrer ao 4, que convoca os países membro da Otan a discutir se a integridade territorial, a independência ou segurança política de um país estão ameaçadas.

Mas o episódio deixou evidente como se está a um acidente de distância de um conflito potencialmente nuclear e global. E numa guerra em que uma potência como a Rússia parece estar perdendo, recorrendo inclusive ao inverno como arma, e deve muitas explicações internas, acidentes têm alta probabilidade de acontecer. Nenhum dos três maiores personagens, Putin, Zelensky e Otan, têm disposição de recuar numa situação de flagrante agressão. Acidentes nesse contexto tornam-se exponencialmente inflamáveis. Esse da Polônia pode ter sido o último em que há uma chance real de se distensionar o que nem havia ter sido tensionado.

Grupos de transição

Participo de um grupo de WhatsApp que tem uma curiosa tradição. De tempos em tempos, ocorre uma migração. É quase como se fosse uma migração anual, como vemos tantas espécies diferentes fazerem na natureza. Não sei bem quando isso começou, mas acho que participei já da primeira dessas grandes migrações.

Tudo começou quando o grupo bateu no limite de pouco mais de 250 pessoas que o WhatsApp permite; e tinha sempre gente nova querendo entrar, mas sem espaço. Tentou-se levar o grupo pra outras plataformas, teve a turma que queria ir para o Telegram, outros para o Slack, criaram diversos subgrupos tentando achar um caminho, mas a conversa interessante continuava lá.

Então, alguém teve uma bela ideia: que tal migrarmos para um novo grupo? Quem está ativo, acompanhando o papo, vai perceber e migrar junto. Outros, que não acompanham mais, ou números de telefone perdidos, sem ninguém por trás, ficariam no grupo velho e não entrariam no novo. Seria como que uma seleção natural. Assim fizemos. Foi um sucesso: abriram-se novas vagas e pelo próximo ano pudemos receber novas pessoas no grupo. Até que lotou de novo e fez-se uma nova migração.

Semana passada, um dos administradores do grupo, sem querer, depois de uns chopps a mais, excluiu um valoroso colaborador. E o grupo estava naquele limite — o WhatsApp não permitiu incluí-lo de volta. Foi a deixa para iniciarmos uma nova migração, não sei se a terceira ou a quarta que fazemos. Depois de um ou dois dias, estamos todos na casa nova, com espaço para novos membros e comunidade renovada. Sim, alguns ficaram para trás. Mas outros, que haviam se perdido em migrações anteriores, voltaram para o grupo, e assim segue a vida nesse nosso novo mundo digital.

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O Brasil voltou ao normal. Aqui estão os mais clicados da semana pelos leitores:

1. G1: O James Webb não para de fazer descobertas incríveis.

2. YouTube: Ponto de Partida - Lula e o tal do mercado.

3. YouTube: Ponto de Partida - Lula precisará parecer honesto.

4. Rádio Novelo: O primeiro episódio do podcast semanal Rádio Novelo Apresenta.

5. G1: Os memes do Enem 2022.

 

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