Edição de Sábado: O centro das atenções

De Brasília

Latitude: 16º 42' 45” Sul. Longitude: 39º 08' 33” Oeste. A pista de terra batida fica a 31 quilômetros ao sul de Porto Seguro (BA) e foi onde o presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva desembarcou com a socióloga Rosângela da Silva, a Janja, sua mulher, para a lua-de-mel atrasada em 6 meses pela disputa eleitoral. Caraíva é um paraíso de coqueirais na beira da praia de areias brancas e água morna no sul da Bahia. A ideia era ficar isolado com Janja. O sossego foi interrompido, no feriado de Finados, pelos ex-governadores da Bahia Rui Costa (PT) e o senador Jaques Wagner (PT), que passaram o dia na casa de praia da Ponta do Camarão. Coisa de amigos. A assessoria não divulgou o destino para não atrapalhar as breves férias do casal — mas notícias vindas de Salvador indicam que a casa de veraneio foi emprestada pelo deputado federal Ronaldo Carletto (PP-BA).

Sim, Carletto é do mesmo partido de Arthur Lira (PP-AL), o presidente da Câmara que foi fiador da campanha derrotada de Jair Bolsonaro (PL) à reeleição. No próximo ano, Carletto estará sem mandato, visto que disputou a eleição como 1º suplente de Cacá Leão (PP-BA) para o Senado, na chapa de ACM Neto. Leão perdeu a vaga para Otto Alencar (PSD-BA), da chapa encabeçada por Jerônimo Rodrigues (PT) e apoiada por Lula. A expectativa na Bahia é que o PP passe a integrar a base de Jerônimo e se reaproxime de Lula na Câmara dos Deputados.

O reassentamento da política, porém, não produziu imagens na praia nordestina. A primeira cena do governo de Lula ocorreu a 1.500 quilômetros país adentro. Em Brasília, em meio ao estalar de flashes, reuniões, e seguranças abrindo caminho no empurra-empurra de repórteres, o vice-presidente eleito, Geraldo Alckmin (PSB-SP), apresentava-se ao Congresso Nacional. Tinha o seu característico sorriso com os lábios e dentes cerrados e, enquanto se locomovia pelo carpete azul, educadamente, se desculpava por não responder às muitas tentativas de diálogos disparadas por jornalistas. “Vamos no púlpito”, chamava o ex-tucano, ao se dirigir, escoltado, para a porta da Presidência da Casa, onde o aguardava a torre apinhada de microfones. Eram os primeiros passos de uma transição que desembarcava na capital federal, na quinta-feira pós-finados, enquanto Lula curtia o descanso à beira-mar.

Sob a batuta de Alckmin, seguiam o ex-ministro Aloizio Mercadante (PT-SP), a presidente do PT, Gleisi Hoffmann (PT-PR), e o senador eleito Wellington Dias (PT-PI), em conversas no Tribunal de Contas da União (TCU), no Palácio do Planalto, no Senado, e nas salas subterrâneas das lideranças do PT. A agenda incluiu ainda, no dia seguinte, uma visita ao prédio que abrigará a comissão de transição, o Centro Cultural Banco do Brasil, que também passou por uma vistoria em sua preparação. Coordenador da transição, Alckmin atraiu todos os olhares em Brasília. “Tivemos uma overdose de Alckmin”, apontavam jornalistas no meio da tarde de quarta, após a quarta entrevista do ex-governador em um só dia. Alckmin saiu do PSDB por divergências com o então governador de São Paulo, João Doria. Após ser convidado por Lula para ser seu vice, se abrigou no PSB, partido coligado, para a formação da tão esperada frente ampla. Foi seu primeiro nome e símbolo. Desde o início, Alckmin representou uma reaproximação de Lula com representantes do setor produtivo. Agora, Lula tem o desafio de ampliar ainda mais sua rede de apoio para garantir governabilidade. A contar pelo primeiro dia, o passaporte Alckmin funcionou.

O vice eleito chegou negociando com o relator do Orçamento, senador Marcelo Castro (MDB-PI), um estouro no teto de gastos para que, ao assumir o mandato, o petista tenha condições de cumprir promessas de campanha — entre elas, continuar pagando R$ 600 do Bolsa Família, mais um incremento de R$ 150 para cada criança de famílias mais necessitadas. Só nesse quesito, o custo estimado é de R$ 70 bilhões ao Estado. Saiu da reunião com a combinação de uma proposta de emenda constitucional (PEC) para furar o limite. Com a “PEC da transição” combinada, o PT quer agora aproveitar sua negociação para ampliar ainda mais sua relação com líderes de partidos que não estiveram na aliança de Lula, dando a relatoria para membros do MDB ou do PSD. O partido de Lula quer ainda que o texto seja apresentado no Senado por um conjunto de líderes. “De que adianta um relator do PT? A gente precisa que seja uma PEC dos líderes do Senado”, disse o deputado Paulo Rocha (PT-PA).

Com apuração própria do Meio e um apanhado do que a imprensa conseguiu de informações de possíveis indicações, eis aqui alguns dos nomes e movimentos do PT rumo ao centro. Trata-se tanto de um reposicionamento ideológico, de se distanciar do que afasta os antipetistas aguerridos, quanto de visões pragmáticas de gestão e acordos políticos para atender demandas de setores como o empresariado, o agronegócio e o mercado financeiro.

A lista de milhões

“Esta não é uma vitória minha, nem do PT, nem dos partidos que me apoiaram nessa campanha. É a vitória de um imenso movimento democrático que se formou, acima dos partidos políticos, dos interesses pessoais e das ideologias, para que a democracia saísse vencedora.” Essa foi uma das mensagens de Lula no discurso de sua vitória, na noite do domingo, dia 30. Ele já vinha insistindo na garantia de que o governo não seria do PT. É esperado e natural que o partido do presidente trave disputas para garantir espaço e protagonismo. Mas tudo indica que o comando de Lula foi compreendido por correligionários, ao menos por enquanto. O esforço inclui a própria composição da equipe de transição. O recado a ser dado é de que o governo está disposto ao diálogo, e mais, espera colaboração dos fiadores junto aos representantes do mercado. Alckmin, ao falar da lista de cerca de 50 nomes, indicou que membros do MDB de Simone Tebet (MS) e do PDT de Ciro Gomes (CE) foram convidados a integrar a equipe e aceitaram. Ele também disse que pessoas não filiadas a partidos políticos podem integrar a equipe. “A partir de segunda-feira vamos anunciar os nomes”, disse.

Nos bastidores da aliança de Lula, um pensamento jocoso diz muito sobre o que se pretende do novo governo: trata-se de um reconhecimento de que Bolsonaro proporcionou para Lula uma grande coligação, impensada anteriormente. “Ter Guilherme Boulos (Psol-SP), Geraldo Alckmin e Fernando Haddad (PT-SP) em um único carro de som era uma coisa inimaginável”, reconheceu um dos interlocutores do presidente eleito. A mesma lógica serve para os garantidores junto ao mercado, que passaram a não estranhar e até desejar ver nomes historicamente ligados ao PSDB em um governo de Lula. A dupla do Plano Real, que chegou a ser chamado de plano “Larida”, André Lara Resende e Persio Arida, entra nesse contexto. Ex-presidente do Banco Central no governo de Fernando Henrique Cardoso (PSDB-SP), Arida coordenou o programa de governo de Alckmin em São Paulo. Mesmo que ele não vá parar na lista da transição, Lula e o PT fazem questão de mantê-lo como conselheiro e é um nome que poderá ser convidado a compor o Conselho de Desenvolvimento Econômico de Lula, caso não tenha uma posição na Esplanada. O mesmo ocorre com Lara Resende. É preciso ressaltar que, apesar de terem assinado o plano que estabilizou a economia do país, o pensamento dos dois enveredou por rumos diversos de lá para cá. Lara Resende ficou mais heterodoxo — daí o fato de seu nome soar mais redondo aos ouvidos petistas. “Persio Arida e Lara Resende são como Sandy e Júnior. Hoje, são completamente diferentes”, brincou um petista.

Já Henrique Meirelles, do União Brasil de São Paulo, é tão querido pelo mercado que já existe, por parte da classe política, a desconfiança de que alguém possa estar usando seu nome para especular e mexer com os ânimos da Faria Lima. Toda vez que se quer uma alta das ações, aparece Meirelles como possível nome para comandar a Fazenda de Lula. “Isso tem ocorrido há algumas semanas. Está parecendo coisa para se ganhar dinheiro”, disse um representante do mercado. Mas o próprio Meirelles vem se apresentando para jogo sempre que pode. Meirelles tem a admiração de Lula e é político. Ele foi ministro da Fazenda do governo de Michel Temer (MDB-SP) e comandou o Banco Central durante os dois mandatos do petista. Na última quinta, precisou vir a público mais uma vez para desmentir que havia sido chamado. O fato é que Lula ainda não disse quem estará no comando da economia, mas indicou o perfil desejado. Tudo o que o petista não quer é um nome estritamente técnico. O presidente eleito quer um ministro alinhado com ele e que tenha traquejo político para negociar. Nesse perfil, ainda concorrem petistas. Wellington Dias é visto como um grande negociador. O deputado federal Alexandre Padilha (SP) é tido como um profundo conhecedor da relação com o Congresso, característica que suplantaria sua performance como economista. E ainda tem o ex-ministro Fernando Haddad, que tem mestrado em Economia e é político.

Mesmo no PT, é difícil alguém que arrisque cravar o que poderá vir da cabeça de Lula. Enquanto essa tão aguardada indicação não sai, outras na área da economia seguem pipocando nas apostas. O economista Bernard Appy, que foi secretário de Lula e é autor de uma das propostas de reforma tributária que estão no Congresso, é um deles — mas nega que tenha sido chamado, repetindo que, antes do nome do camisa 10, o resto do time não é escalado.

As presenças entusiasmadas de Simone Tebet (MDB-MS) e Marina Silva (Rede-SP) no segundo turno de campanha e as perspectivas de que estarão com Lula em posições no governo ou no Congresso também animam setores da economia. Simone, na avaliação de petistas ligados ao presidente eleito, passa um recado importante de responsabilidade fiscal, desejo da turma que opera o mercado. Além disso, sinaliza para a Agricultura. A senadora é proprietária de fazendas no Mato Grosso do Sul. Seu pai, Ramez Tebet, um dos ícones do MDB, presidiu o Senado. Ela continua repetindo que não condiciona seu apoio a cargos, mas seu partido quer um espaço de projeção. A preferência, segundo o Globo, é pelo Ministério da Cidadania, pasta com orçamento gigante, responsável por gerir os programas sociais mais importantes, como o Auxílio Brasil, o antigo Bolsa Família, e o Cadastro Único, que identifica famílias de baixa renda. Já o Estadão diz que Simone gostaria mesmo de comandar a Educação.

Marina é, em si mesma, portadora da plataforma do respeito ao meio ambiente e de que sequer se ganha dinheiro “passando a boiada”. “Mesmo que não seja um pensamento majoritário, os mais esclarecidos do mercado gostam muito dela”, destacou um interlocutor de Lula. O mercado sabe que um investidor estrangeiro feliz coloca dinheiro no país sem medo. E investidores hoje olham para o que se faz com o meio ambiente. Na próxima semana, Simone e Marina viajarão com Lula para a 27ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP 27), no Egito. Aos olhos do mundo, Lula quer mostrar que o país não está mais na posição de pária ambiental e a ex-ministra empresta a Lula seu reconhecimento na defesa da Amazônia. Foi durante sua gestão na pasta que o Brasil conseguiu reduzir em 83% o desmatamento da região. Ela chegou a afirmar recentemente que "o Brasil vai deixar de ir para a COP para fazer chantagem", referindo-se aos pedidos feitos pelo ex-ministro Ricardo Salles (PL-SP) para que os países fossem obrigados a remunerar o Brasil como condição para a conservação da floresta.

O pedágio no Congresso

Enquanto Alckmin estreava o governo no Senado, em outra frente, o deputado José Guimarães (PT-CE) garantia outra ampliação na transição de Lula. A poucos quilômetros do Salão Azul, na Residência Oficial da Câmara, a negociação era com o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), líder do centrão e dono da pauta. Afinal, não se chega ao centro sem passar pelo centrão. O petista saiu da reunião dizendo ter obtido o compromisso de Lira de deixar “portas abertas para pautar as matérias de interesse do novo governo”. Esse compromisso inclui o tratamento célere para a PEC da transição, negociada por Alckmin.

É claro que, no Congresso, o caminho de Lula ao centro tem o pedágio da sucessão na Câmara. Lira quer apoio dos petistas para se reeleger presidente da Casa em fevereiro. Por enquanto, o que tem é a disposição do PT em não lançar candidato. O PT não quer Lira como inimigo, apesar da divergência quanto ao “orçamento secreto”. “O PT precisa evitar ter um novo Eduardo Cunha no comando da Câmara”, disse um petista, lembrando o trauma com o emedebista, que foi cassado e preso depois que abriu o processo de impeachment contra a ex-presidente Dilma Rousseff.

Na próxima semana, Lula desembarca em Brasília e vai conversar com o alagoano. Tudo indica que a divergência sobre a legitimidade das emendas de relator, o infame orçamento secreto, não será obstáculo a um entendimento. Mais fácil, nesse caso, deixar que o Supremo Tribunal Federal (STF) decida sobre a legalidade desse ponto do orçamento. A presidente da Corte, Rosa Weber, prometeu levar o assunto a julgamento logo depois das eleições. Em nome da ampliação da base, petistas apostam que uma definição do STF servirá para colocar fim ao problema. Na terça, além de se encontrar com Lira, Lula terá conversas com o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), Rosa Weber e com o presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), ministro Alexandre de Moraes.

As negociações ao centro no Congresso, inclusive com a centro direita, incluem conversas de Gleisi com um acolhedor Luciano Bivar, do União Brasil — que, além de abrigar Meirelles, é também o partido de Sergio Moro, ACM Neto, e companhia.

Ciúmes

Nessa política de expansão da aliança, todo cuidado é pouco para não perder aliados pelo caminho. A reaproximação com Lira em torno da PEC da transição parece ter causado o primeiro episódio público de ciumeira do governo Lula. O senador Renan Calheiros (MDB-AL) não se conteve e se mostrou estridente nas críticas, tão logo o primeiro pedido de Lula chegou ao Senado: “Barbeiragem”, classificou o emedebista. Isso rendeu uma ligação de Gleisi a Renan. “Conversei com o senador e mostrei que precisamos viabilizar aquilo que foi contratado nas urnas. Não podemos entrar em 2023 sem o Auxílio Brasil e sem garantia de aumento do salário mínimo”, explicou Gleisi.

Já no Senado, Lula deverá apoiar a recondução de Rodrigo Pacheco (PSD-MG), o que atende o PSD de Gilberto Kassab (SP), partido que adotou a posição de neutralidade no primeiro e no segundo turno. Agora, Kassab está em grand tour na imprensa apresentando suas condições. Na próxima semana as negociações com o PSD, até então nos bastidores, devem ganhar mais corpo e parlamentares do PT já indicam que a legenda foi chamada “a fazer parte” da equipe. Kassab, por sua vez, assumiu a função de convencer a ala do partido que esteve com Bolsonaro para o apoio ao petista. “Agora nós temos uma realidade e no partido tem uma parcela muito expressiva que apoiou o presidente Lula. Existe sim, da minha parte, um entendimento de que, em havendo convite do PT, e haverá na semana que vem, nós deveremos examinar”, disse o ex-ministro em entrevista ao UOL, antes de viajar a Curitiba para conversar com o governador reeleito do partido Ratinho Júnior, que lidera a ala apoiadora de Bolsonaro. “É importante para o Brasil que esse governo tenha governabilidade e é importante que nessa governabilidade o PSD esteja envolvido”, enfatizou. Na Câmara, o PSD terá 42 deputados em 2023 — mesmo número do MDB, na quinta posição das maiores bancadas.

Também não está descartada a possibilidade de que o PSD tenha uma pasta na Esplanada de Lula. O senador Carlos Fávaro (PSD-MT) tem se colocado ativo na tarefa de levar o partido para os braços do petista e é um dos cotados para assumir o ministério da Agricultura. Na próxima semana, haverá uma reunião para bater o martelo sobre a posição do PSD. Dos 11 senadores que a legenda terá na próxima legislatura, a segunda maior bancada da casa, pelo menos 4 já são aliados de Lula: Fávaro, Alexandre Silveira (MG), Otto Alencar (BA) e Omar Aziz (AM). Uma das vantagens de se fundar um partido “nem de direita, nem de esquerda, nem de centro”, nas palavras de Kassab, em 2011.

Onde está o fascismo no bolsonarismo

Não são acidentais as imagens capturadas no interior de Santa Catarina, onde homens e mulheres bolsonaristas fazem a saudação romana, braço estendido à frente, em ângulo para cima. Os apologistas dizem que juravam a bandeira. Mas não é disso que se trata — o juramento à bandeira, além de uma cerimônia rara, é sempre feito com uma bandeira que esteja na frente das pessoas e o braço tem de estar paralelo ao chão. Na cena bolsonarista, as bandeiras estavam ao lado, entre os militantes, e o que saudavam era um quartel. O gesto que muitos faziam tem um único significado na cultura política do Ocidente. É a saudação nazista. Não é acidental por uma única razão. Mesmo que as pessoas ali não tenham qualquer noção do que fazem, ainda que seja uma reação gutural e instintiva, por trás de seu rito há uma ideologia. Uma ideologia antiga. Sua visão de Brasil e de mundo é fascista. De um fascismo bastante específico: o brasileiro.

Plínio Salgado era jornalista e escritor. Gustavo Barroso, ex-presidente da Academia Brasileira de Letras, historiador. E Miguel Reale, o pai, era, como o filho, jurista. Os três formavam o comando da Ação Integralista Brasileira. O bolsonarismo não tem, nem que se jogue Olavo de Carvalho no meio, sequer um naco da qualidade intelectual do fascismo brasileiro original. Talvez por isso as crenças, a ideia de Brasil ideal do presidente que perdeu a eleição no último domingo, jamais tenham sido sistematizadas para além de slogans vagos. Mas os integralistas, não. Eles escreveram livros, fizeram discursos detalhados, até às crianças ensinavam sobre seu projeto utópico. Reconhecemos de cara.

O brasileiro ideal do integralismo era o descendente do bandeirante — todo fascismo tem seu tipo ideal. Aquele homem (é sempre um homem) que em sua personalidade representa o melhor do país. Em sua leitura, os bandeirantes haviam domado a terra brasileira. Abriram espaço nas matas, lutaram bravamente onde foi que encontrassem adversários, ergueram grandes fazendas e descobriram onde havia minério para garimpo. O descendente do bandeirante era o brasileiro do interior, que ainda vivia nas terras abertas por suas expedições. Por isso mesmo, por permanecer ali, tinha fincado raízes profundas que fazia este homem ter uma conexão direta com a história brasileira. Era o homem do campo e do minério, que trabalhava com suas mãos. Muito diferente de um tipo para quem os integralistas olhavam com desdém: os homens da cidade, cosmopolitas, com o olhar voltado para o mundo e não para seu próprio país. Homens cuja desconexão com o interior do país fazia deles afeminados — esta era, precisamente, a palavra que Plínio usava.

O interior é melhor que a cidade. O bolsonarismo concorda. A dicotomia homem de verdade, homem afeminado — estava lá, como está aqui. A apologia do agro e do garimpo. O olhar sobre a floresta como terra que é preciso ocupar, devastar. O homem de valor se impõe sobre a mata.

Plínio Salgado era católico — profundamente religioso. Escreveu uma biografia de Jesus Cristo. Havia muitos padres integralistas porque o movimento era de todo permeado por uma leitura do catolicismo. Ele defendia que uma das razões de o mundo estar em decadência era o fato de que valores religiosos terem saído da vida civil. Por isso mesmo, defendia que o cristianismo precisava ser reinstituído como guia tanto para o Estado quanto para a família. Sua família ideal, portanto, era uma em todo tradicional e hierarquizada: o pai trabalha fora e está no comando; a mãe cuida da casa e organiza a vida dos filhos. Os filhos obedecem aos dois. Igreja todo domingo. No integralismo, os rituais civis se misturavam com os católicos. Seu símbolo, a letra grega Sigma, entrava dentro da igreja que voltava a realizar casamentos civis, batismos civis. A Igreja e o Estado se fundiam.

Quem ouve a senadora eleita Damares Alves ou mesmo a primeira-dama Michelle Bolsonaro de presto reconhece todo o desenho. É verdade que o que antes foi católico, hoje tem a cara dos evangélicos. Que os padres foram substituídos por pastores. Mas o desenho da família é o mesmo, a aproximação de Igreja e Estado, também.

Por fim, havia Gustavo Barroso. Sua principal missão no movimento foi criar uma milícia armada da qual foi comandante. Elas eram disciplinadas. Distribuíam-se em decúrias com dez militantes cada, sobre elas os terços — de três decúrias comandadas por um monitor —, daí bandeiras com quatro terços e um bandeirante os orientando, e então as legiões, de quatro bandeiras, com no topo um mestre de campo. Acima de todos, uma dupla. Barroso e seu lugar-tenente, Olympio de Mourão Filho. (O mesmo que, décadas mais tarde, dispararia o golpe de 1964.) Os integralistas tinham este exército privado que de fato patrulhava ruas em muitas cidades do interior — para garantir a segurança e auxiliar o Estado, diziam. Era este o discurso. Cada qual com sua arma.

O bolsonarismo não tem milícias — hoje seriam imediatamente ilegais. Mas os CACs, os clubes de tiro, todos são, essencialmente, o arcabouço para a criação de algo equivalente. O que o governo conseguiu fazer para livrá-los da vigília do Estado, ele fez.

Quase cem anos separam integralistas e bolsonaristas. Representam a mesma visão de Brasil, têm os mesmo valores, e apostam nas mesmas crenças.

"A pátria que sonhei era um mito": Lima Barreto explica o Brasil

O ano de 1922 trouxe muitas novidades ao Brasil. Nas ruas, em julho, militares de baixa patente deixaram o Forte de Copacabana, no Rio, de peito aberto para contestar os caminhos daquela República que ainda engatinhava em direção à mesmice desigual que caracterizou o Império. Em setembro, a Semana de Arte Moderna estabeleceu um novo jeito de pensar e fazer arte. De alguma forma mesclado e alheio a isso, em novembro, Afonso Henriques de Lima Barreto morreu, aos 41 anos. A causa foi um ataque cardíaco promovido – ou, ao menos, amplificado – pela inclinação ao álcool. “Tenho para mim que morreu de racismo”, pondera Lilia Schwarcz, historiadora e autora de Lima Barreto – Triste Visionário (Companhia das Letras, 2017).

Em 2022, a Feira Literária das Periferias (Flup) se debruçou sobre as letras do autor. Entre 31 de outubro é 1° de novembro, no Museu da História e da Cultura Afro-brasileira (Muhcab), na Gamboa, discussões contextualizaram as críticas de Lima ao nosso tempo. E nos dias 7 e 8 de dezembro, no Centro Cultural da Maré, também no Rio, onde viveu e morreu o romancista, os debates continuam, em torno de livros como O Cemitério dos Vivos — único manuscrito deixado incompleto — e Clara dos Anjos. Confira os principais trechos da entrevista com Lilia, em homenagem ao centenário de morte do escritor, que aconteceu em meio à ebulição de tudo aquilo que ele criticou por meio da pena.

A tragédia cotidiana de Lima Barreto ganhou mais destaque na biografia do autor que as tragédias que ele denunciava. Parte daí a abordagem da sua obra?
Parto da perspectiva oposta. Tanto que cada capítulo começa com as obras, não com a vida. Agora, só o leitor pode julgar o que que eu fiz. Sem dúvida, eu tento criticar o fato de que durante muito tempo a obra do Lima Barreto foi, simplesmente, analisada por sua biografia. É o que eu chamo, no meu livro, de “biografismo”. Ou seja, a maneira como se trata da literatura feita por pessoas negras, pobres, fora do cânone, exclusivamente a partir da vida e dos problemas que essa pessoa teria tido na vida. Essa, no caso de Lima Barreto, é uma perspectiva complicada, mas também não se pode fugir da vida dele, porque ele mesmo dizia que fazia uma literatura militante, que incluía a sua vida e as desigualdades na própria literatura. É o próprio autor que borra os limites entre vida e obra.

No capítulo “Eleições”, de Os Bruzundangas, logo nas primeiras linhas ele diz que “a superstição eleitoral é uma das nossas coisas modernas que mais há de fazer rir os nossos futuros bisnetos”. Qual a tua interpretação?
Os Bruzundangas é um exemplo da literatura que eu mencionava na primeira resposta. É difícil definir se é um conto, se é uma crônica, se é uma novela. E o próprio Lima Barreto, em comentários sobre o livro, chama atenção para o que eu chamo “borramento de gênero”. Uma coisa inegável é que o livro é uma crítica muito grande à República brasileira, em alguns aspectos que sempre voltam na obra dele. Em primeiro lugar, a ideia de que a República prometeu inclusão e entregaram exclusão; depois, a crítica que ele fazia à nossa democracia, sem inclusão social; e a crítica que ele faz aos políticos. Em “Numa e a Ninfa”, ele deixa claro quem são os políticos da República, como lutam pelos próprios interesses. Me parece que é nesse sentido que ele fala da superstição eleitoral. Agora, Lima foi apagado dos anos 1930 e 40, até que Francisco de Assis Barbosa, nos anos 1950, escreve a biografia e republica a obra de Lima. E ele foi muito mal compreendido por conta das teorias do determinismo racial, eugenistas, que condenavam a literatura escrita por uma pessoa negra, considerada biologicamente inferior. Lima está voltando com força porque os temas de que ele tratava – as críticas aos militares, aos políticos, a crítica à República, a denúncia do racismo, da morte das mulheres, do nosso bovarismo – são todos temas absolutamente atuais, o que mostra que ele pode ter passado fora do cânone, mas volta, muito pelas mãos do ativismo, pelo nosso momento.

Lima não chegou a ser “esbranquiçado”, como Machado de Assis, mas houve certo apagamento de sua memória, contando com o moralismo em torno da “loucura” do autor.
Gosto muito dos dois autores, mas tento mostrar no meu livro que eles tiveram trajetórias diferentes na literatura. Machado escreveu uma literatura mais universal e Lima se definia como um literato negro, que trazia as questões do racismo e também as coisas bonitas, a questão da religião, por exemplo, para dentro das obras. Ele foi caricaturado como negro, pobre, dos subúrbios — e um negro ébrio. Sérgio Buarque de Hollanda, em sua crítica errada a Clara dos Anjos, viu em Lima uma pessoa “sem imaginação”, porque tratava da própria vida. O que dizer da atual prêmio Nobel [a francesa Annie Ernaux], que faz obras só sobre sua vida? Esse Lima, que se autodefinia como literatura militante, agora volta por conta da sua modernidade. É possível dizer que Lima lutou por um Brasil que o rejeitou. Lutou e criticou também, ele era muito feroz, sobretudo nas crônicas. Era um Brasil que ele gostava e desgostava também, ele não era apenas um ufanista. No final de Triste Fim de Policarpo Quaresma ele diz “a pátria que queria era um mito”. Esse triste fim, esse Lima muito decepcionado com a República, convive com o Lima Barreto que acredita numa outra democracia, numa outra República.

A valorização dos aspectos nacionais, como idioma de povos originários e de características dos brasileiros, é muito abordada e aparece como ápice na obra mais conhecida de Lima Barreto fora da academia. Seria Policarpo uma sátira exagerada de si próprio?
Eu diria que Policarpo não é Lima Barreto, é uma sátira do pai dele. Primeiro porque, como Policarpo, o pai de Lima teve de se reinventar muitas vezes na vida. Ele era tipógrafo, mas foi um dos primeiros desempregados da República. Então teve de atacar de administrador, na colônia de alienados [instituições psiquiátricas] da Ilha do Governador, depois como agrônomo, jornalista. O pai de Lima era como Policarpo, muito nacionalista. Na colônia de alienados, não queria plantar a batata inglesa, só a brasileira. Lima tinha essa questão de valorizar alguns aspectos dos povos originários, a música brasileira, mas ele não gostava de tudo. Por isso não acho que ele é tanto Policarpo, ele é muito mais Isaías Caminha e Clara dos Anjos. E é muito mais Vicente Mascarenhas, que é o personagem do único romance incompleto de Lima Barreto, O Cemitério dos Vivos. Como Lima, era funcionário público, bebia muito e terminou no manicômio.

Em ‘Triste Fim’ também há a revolta de Lima Barreto com os rumos da República dos Marechais. As críticas a Floriano Peixoto contribuíram para que Lima Barreto tivesse um triste fim?
Não me parece que foi a crítica aos marechais que derrubou Lima. Ele escreve sobre a Revolta da Armada projetivamente. Esse é mais um elemento que me faz acreditar que Policarpo Quaresma é o pai de Lima Barreto, porque quem sofreu com a revolta foi seu pai. Lima, como autor, criticou os militares, os políticos, os jornalistas. Ele vai se isolando, e se isolando também porque é um crítico muito feroz do racismo – imagine isso na década de 1920. Como tudo na obra de Lima Barreto, ele usa essa ideia de “triste fim”, uma forma ambígua, porque triste, para ele, é uma pessoa mais caída, mas também uma pessoa teimosa. É uma boa paródia para pensar na figura de Lima, que o biografismo insiste em pintar como alguém decaído, que, de fato, morreu muito jovem – eu diria que morreu de racismo –, mas morreu cheio de projetos. É uma pessoa triste enquanto teimoso, insistente. Deixou um romance incompleto, contos por entregar. Essa imagem de triste fim não se gruda a ele. Tanto que está voltando.

Alpinistas digitais

Em bom português de Portugal, deveria ser uma cimeira. Mas o encontro de cúpula dos maiores nomes da internet mundial precisa de uma marca mais internacional: Web Summit. E agora é oficial, trata-se do maior evento de tecnologia do planeta. Na edição deste ano, a sexta em Lisboa, foram 71 mil participantes de 160 países. Um grande negócio para a cidade, que investiu na renovação da franquia até 2025. O Rio de Janeiro é o próximo. Em maio do ano que vem, o Brasil terá a sua primeira edição do evento. Movimento natural. De longe, o nosso sotaque foi o mais ouvido nas rodinhas de conversas por aqui.

Teve Tim Berners-Lee, inventor da Web. Claro, o Summit sem ele seria igual a um Rock In Rio sem o Iron Maiden. Na Arena Central, na frente de 10 mil pessoas, o inventor do protocolo que originou isso tudo revelou o novo evangelho da Web 3.0. O que é diferente da Web3, que também estava representada em massa no evento. Mas sobre o ponto que distingue uma da outra e as razões dessa disputa parasitária da marca “web”, só vou escrever na newsletter especial que os assinantes Premium do Meio receberão na segunda-feira.

Outra marca em litígio é o metaverso. Também tive a oportunidade de ouvir o que Philip Rosedale, que há 19 anos lançou o Second Life, achava do Facebook virando Meta. E o quanto as criptomoedas de hoje lembram o seu Linden Dollar. Um gênio, relegado ao ostracismo dos palcos periféricos do Pavilhão 3.

O caminho até o cume não é fácil. E poucos aguentam ficar nele por muito tempo. Para estar na Arena Central desta cimeira, é necessário enfrentar uma ladeira mais mortal do que as dessa cidade com sete colinas. Neste ano, Kondzilla foi um dos poucos brasileiros que cravaram a sua bandeira por lá. A grande maioria dos alpinistas digitais começa pelo Pavilhão 5, frequentado por idéias em busca de um produto viável. São muitos. Espremidos como sardinhas em mesas minúsculas, repetindo exaustivamente o seu pitch para investidores tubarões vindos dos mares mais distantes. E, de pavilhão em pavilhão, vão sobrevivendo e crescendo até, quem sabe um dia, ocuparem o palco principal com a sua história de sucesso.

Mas já chega de spoilers. Nesta segunda-feira, vamos alçar voos mais altos. Prometo descrever para vocês, assinantes Premium do Meio, o que mais de interessante eu vi lá de cima. E o quão distante está o horizonte desses mundos virtuais cheios de promessas. Até lá, já garanta o seu ingresso para 2023. Vale a pena!

Que a força esteja com o Brasil! Aqui estão os mais clicados pelos leitores na semana que passou:

1. Twitter: Mark Hamill saúda Lula.

2. Meio: O bolsonarista, o caminhão e suas muitas versões.

3. YouTube: Ponto de Partida - O golpe não era imbrochável.

4. YouTube: Ponto de Partida - Lula ganhou, mas o Brasil rachou.

5. G1: Close de boca de crocodilo em Cuba ganha prêmio de fotos.

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