Edição de Sábado: Lula e os donos da fé

No salão nobre da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), no Largo São Francisco, o corpo velado era de um de seus maiores expoentes. A memória do jurista Dalmo Dallari reunia filhos, familiares, professores, alunos e ex-alunos, jornalistas e amigos, e muitos combatentes da ditadura militar, que caminhavam com suas bengalas ou amparados por mais jovens. A manhã calorenta daquele sábado de abril se transformou em um ato político. E a pré-campanha petista se via às voltas com dois alarmes: um provocado pela foto que trazia o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva rodeado por uma maioria de homens brancos na oficialização da chapa com ex-governador Geraldo Alckmin (PSB). Outro por uma fala de Lula sobre aborto.

Dias antes, em uma palestra na Fundação Friedrich Ebert, Lula defendera que o aborto deveria ser um direito igual para mulheres de todas as classes sociais e que o assunto fosse tratado como questão de saúde pública. Absolutamente razoável. Mesmo assim, isso desencadeou uma onda de pânico. Apoiadores avaliaram que a fala tinha potencial de afugentar os arrependidos de terem escolhido o presidente Jair Bolsonaro (PL) em 2018.

Lula queria ter ido ao velório de Dallari, mas desistiu em cima da hora. Fernando Haddad (PT), que cumpria agenda de pré-candidato ao governo de São Paulo, conseguiu chegar antes de o corpo partir para o cemitério Araçá. O ex-ministro de Direitos Humanos, Paulo de Tarso Vannuchi, aproveitou o encontro para passar dois recados ao deputado Paulo Teixeira (PT-SP), que seguia Haddad. O primeiro sobre a imagem de homens brancos: “Vão querer desqualificar as nossas conquistas. Precisamos colorir mais as fotos”. Sobre o aborto, Vannuchi ditou a fórmula do discurso ideal. "Abre falando que é pessoalmente contra o aborto, depois diz que é coisa para o Congresso resolver e, por último, coloca nossa posição de tratar o assunto como uma questão de saúde pública”, roteirizou.

Lula seguiu o script à risca. Mas não conseguiu afastar de si a pecha de “abortista” espalhada por seus opositores. Nem manter sua campanha longe da pauta de costumes. Ao contrário. O que se tem visto no pleito de 2022 é um crescente predomínio — e uma miscelânea — de terrorismo moral: perseguição às igrejas, assédio eleitoral em templos, ameaça à família tradicional, denúncias vazias de mutilação e violência sexual contra crianças, satanismo, maçonaria, canibalismo e vaias para padres na festa da padroeira.

Se em 2002 a campanha precisou esclarecer que Lula não representava uma ameaça econômica e usou a Carta aos Brasileiros para acalmar o “deus” mercado, dessa vez, foi o inverso. Lula quis falar de economia, da fome e da miséria, mas se vê pressionado a assinar uma carta a religiosos. O deus da moral evangélica cobrou mais do petista. Por mais que novos aliados do segundo turno insistam na necessidade de diálogo com esse setor, a campanha de Lula considera o esforço árduo e ineficaz. O que havia de interlocução com líderes evangélicos parece ter sido destruído. Existe uma barreira quase intransponível, pelo menos por ora: os “empresários da fé”, donos das grandes igrejas com os quais o PT se relacionou no tempo em que esteve no poder, se alinharam à extrema direita nos últimos anos e colhem hoje, com Bolsonaro, os frutos políticos dessa comunhão.

“O diálogo não acontecerá para essa eleição e não será para a próxima. Se a esquerda quiser falar com os evangélicos vai ter que começar agora para conseguir daqui a 20 anos”, analisa o pesquisador Guilherme Galvão Lopes, pesquisador do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil da Fundação Getulio Vargas (FGV). Os movimentos de esquerda no Brasil não nasceram e nem fincaram base no meio heterogêneo, descentralizado e diverso dos evangélicos. O PT é o próprio exemplo disso. O partido criado por Lula se fortaleceu e se capilarizou socialmente por meio de segmentos populares mais ligados à Igreja Católica, como as comunidades eclesiais de base. Ainda assim, há eleitores evangélicos que se identificam com Lula. Pesquisa Datafolha divulgada no dia 8 indicou que, no segundo turno, Lula tem 55% das intenções de votos entre católicos e Bolsonaro, 38%. Já em relação aos evangélicos, Bolsonaro marca 62% e Lula 31%. O PT estima que Lula recebeu cerca de 11 milhões de votos dos evangélicos no primeiro turno. O partido acha que 20% dos evangélicos do Sudeste votaram em Lula e, no Nordeste, 30%. O eleitor evangélico, como todos os demais numa democracia, compõe a decisão de seu voto com base em muitos fatores. É complexo. Individual e sagrado.

A relação do PT com os líderes evangélicos é que carece de ser esmiuçada. Quando chegou ao poder, o diálogo do partido com os evangélicos, já estabelecidos como bancada na Câmara, passou a ser feito de forma verticalizada, ou seja, um diálogo com os líderes, com os “donos” da fé. “Quando houve um ambiente propício para o crescimento do conservadorismo no Brasil, na década passada, principalmente a partir de 2014, essas lideranças se deslocaram. Os bispos saíram do apoio ao PT e migraram para a base conservadora”, aponta Lopes. Os pastores perceberam que, com a extrema direita no poder, eles conseguiriam pautar o debate. É algo diferente do que os líderes religiosos tinham com Lula e Dilma e com os presidentes que os precederam. Apesar de terem angariado cargos e poder ao longo desses anos, os pastores-políticos não haviam experimentado o nível de protagonismo na pauta política do país de que desfrutam hoje.

A campanha de Lula sabe disso. “Houve um tempo em que a gente falava bem com eles. Hoje há essa união entre eles e a extrema direita”, relata um dos coordenadores do núcleo duro que preferiu conversar de forma reservada. “Não estou falando dos fiéis que estão sendo constrangidos a votar no Bolsonaro, mas dos empresários da fé”, cita o político, referindo-se a pastores como Edir Macedo e Silas Malafaia, líderes da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) e da Assembleia de Deus Vitória em Cristo, respectivamente. A essa altura do 2º turno, petistas descartam a possibilidade de o ex-presidente assinar um documento com compromissos direcionados aos evangélicos. “Se houver, será uma carta para os cristãos ou uma carta ao povo de Deus. Nada voltado exclusivamente para os evangélicos”.

Fluidez ideológica

Malafaia é volúvel politicamente. É um neo-bolsonarista. Comecemos duas décadas atrás para acompanhar a transição. Em 2002, quando Lula venceu sua primeira eleição ao Palácio do Planalto, o pastor defendia o petista e chegou a ser recompensado, em 2003, com uma cadeira no Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social. O “Conselhão” era um órgão de aconselhamento da Presidência da República que reunia empresários, economistas, religiosos e representantes de vários segmentos da economia e da sociedade para darem pitacos na construção de políticas públicas.

Em 2006, Malafaia apoiou a reeleição de Lula e, até 2009, esteve ao seu lado. Rompeu alegando falta de esforço do PT na aprovação de suas pautas no Congresso, e migrou para o apoio ao tucano José Serra em 2010, na disputa com Dilma Rousseff. Malafaia foi fundamental para colocar o aborto naquela eleição como um dos temas centrais das campanhas. Serra foi vencido e, em 2014, Malafaia apoiou a candidatura de Marina Silva, que concorria pelo PSB. A presença dele na campanha de Marina impôs um posicionamento ambíguo da então candidata, também evangélica, em relação ao aborto e a direitos da comunidade LGBTQIA+. Marina não chegou ao segundo turno e Malafaia apoiou Aécio Neves (PSDB-MG), que perdeu para Dilma.

E, então, fez-se Bolsonaro. Malafaia se uniu a ele e sua pauta ultraconservadora passou a alinhavar o casamento. O pastor mantém contato quase diário com o presidente, trânsito liberado no Planalto e no Alvorada, avalizou a indicação do “terrivelmente evangélico” André Mendonça ao Supremo Tribunal Federal (STF). É presença constante nas comitivas, como ocorreu no caminhão de som do 7 de Setembro e na viagem a Londres, para o funeral da Rainha Elizabeth II.

O caminho percorrido por Edir Macedo, da Universal, se entrelaça ao de Malafaia em alguns momentos, e se bifurca em outros. Em 1998, Macedo respaldou a reeleição de Fernando Henrique Cardoso (PSDB), contra Lula. O bispo montaria, em 2005, seu próprio partido, o PRB, ao qual o vice-presidente de Lula, José Alencar, se filiou. Em 2010, Macedo fez críticas a José Serra, em disputa com Dilma, e condenou Malafaia pelo apoio ao tucano. Na época, um jornal da IURD chegou a divulgar um conteúdo, assinado pelo ex-prefeito do Rio de Janeiro Marcello Crivella, que citava sete motivos para votar na ex-presidente Dilma. Macedo também publicou uma carta para rebater boatos contra a petista. Em 2018, Macedo e Malafaia voltam a se encontrar, no culto a Bolsonaro. No ano seguinte, o PRB mudou de nome para Republicanos, abandonou a centro-direita e buscou se firmar como liderança entre os conservadores. Foi de Alencar a Damares. A ressurreição do tradicionalismo no Brasil atende perfeitamente o discurso eleitoral dos pastores-políticos. Passou a haver uma coesão quase partidária, ideológica, estratégica. Eles agora têm uma extrema direita para chamar de sua.

Petistas alegam que há também circunstâncias de ordem muito mais prática a motivar a união entre os donos da fé e Bolsonaro. “Trata-se da possibilidade de continuarem ganhando dinheiro sem pagar impostos”, diz o dirigente do PT sobre os ex-aliados. Política fiscal. Um exemplo concreto é o das ações recentes da Receita Federal, que multou igrejas por sonegação em atividades conexas à prática religiosa. Nessa operação, nem o Instituto Lula, que não é igreja, escapou da multa. “As igrejas são isentas de pagamento de tributo, mas, se cobram estacionamento, precisam pagar imposto referente a essa atividade”, destacou o petista. “Assim como o agronegócio e outros setores tiveram o Refis, essas igrejas também querem e Bolsonaro está disposto a dar.” Ao falar dos boatos de que Lula fecharia igrejas, o petista reagiu. “Silas Malafaia se 'esquece' que, durante o governo de Lula, ele abriu 50 novas igrejas. Nunca houve nenhum caso de fechamento. Eles difundem esse negócio de que Lula vai fechar as igrejas, inviabilizando-as financeiramente”, observou. “Temos que nos contrapor a essa síntese que vem do integralismo e do fascismo oferecendo uma outra realidade. A separação da igreja e do Estado precisa ser mantida. A laicidade do Estado precisa ser assegurada.”

E não tem nada que irrite mais os integrantes da bancada evangélica do que evocar o princípio constitucional do Estado Laico. A conversa trunca imediatamente quando esse argumento é posto. Mas aí passa a imperar o reino do pragmatismo. Ambos os lados esperam os resultados das urnas no próximo dia 30 de outubro para ver como se dará a relação entre bancada evangélica e um eventual governo Lula. Se é que haverá relação. “Nossa pauta prioritária não foi definida. A gente precisa esperar para ver quem será o próximo presidente do país”, diz ao Meio o atual coordenador da frente, deputado Sóstenes Cavancante (PL-RJ), pastor da mesma igreja de Silas Malafaia. “Se der Bolsonaro, teremos uma pauta mais propositiva. Se for Lula, aí nossa pauta será de reação, porque ele virá com tudo para acabar com a gente.” Como um político profissional, Sóstenes admite que não pretende se esforçar para definir prioridades neste ano. “Vou deixar isso para o próximo presidente da frente, que será eleito no ano que vem”.

Mas é justamente o pragmatismo evangélico no Congresso que poderá abrir as portas de uma conversa futura, caso Lula vença. Talvez seja a única chance. “Historicamente, a bancada evangélica sempre foi pragmática. De 1987 para cá, os evangélicos só foram oposição no segundo governo de Dilma Rousseff. Antes, eles estavam próximos de todos os governos. Estiveram com Collor, com FHC. Se Lula vencer, ele vai encontrar um pouco de resistência no início, mas depois esses pragmáticos podem se aproximar, como já se aproximaram no passado”, destaca Lopes.

A bancada

Sóstenes tem se esforçado para demonstrar um crescimento da bancada evangélica. Ele contabiliza 121 parlamentares, entre deputados e senadores, número maior que em 2018. Na Câmara, sua estimativa é de ter eleito 115 deputados. Já Guilherme Lopes aposta em um número mais modesto: 75 deputados, número 12% inferior ao de 2018. A diferença se dá porque o pesquisador separa quem é realmente evangélico e se elege professando a pauta das igrejas de quem é conservador e se elege com um discurso predominantemente bolsonarista. “A grande questão é que houve no meio da bancada evangélica um crescimento de bolsonaristas. Cito como exemplo o Nikolas Ferreira (PL-MG) e o André Fernandes (PL-CE). São lideranças jovens, muito mais identificadas com o bolsonarismo do que com a fé evangélica."

No levantamento do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap), em 2018 foram eleitos e reeleitos 84 deputados identificados com as demandas, crenças e convicções do segmento evangélico. Em 2014, foram 75; em 2010, 73.

Sóstenes está insatisfeito, mesmo com suas contas. “Se o IBGE diz que somos 30% da sociedade, queremos ter então 30% de representação no Congresso. Conquistamos 20%”, reclamou. O real tamanho do grupo só poderá ser aferido após a posse e, talvez, após a primeira reunião da nova bancada. Tem de tudo influenciando essa composição. O pastor Henrique Vieira (PSOL-RJ), por exemplo, é um que já avisou que não fará parte. A ex-ministra Marina Silva (Rede-SP), eleita deputada, está no apoio a Lula e não deve compor com eles. A deputada Benedita da Silva, do Rio, que coordena o Núcleo de Evangélicos do PT, sempre fez parte da frente, apesar de sua condução política adversa ao conservadorismo predominante.

Mas um detalhe já chama a atenção. Tanto no levantamento do coordenador da bancada quanto no do pesquisador, as igrejas de Malafaia e Macedo lideram a filiação no ranking dos eleitos. A Assembleia de Deus está em primeiro lugar, com 24 deputados. A Universal elegeu 14 parlamentares.

Já o tamanho da bancada no Senado é mais preocupante em um cenário com Bolsonaro presidente. A estimativa de Guilherme Lopes é de que a bancada evangélica tenha 10 ou 11 senadores, a maior já vista na Casa. Em um universo de 81 membros, esse número ganha uma proporção que pode ser decisiva em decisões importantes que cabem exclusivamente ao Senado, como a aprovação de nomes para o Supremo Tribunal Federal (STF) e a votação de impeachment de membros da Corte. Fora que a pauta do Congresso Nacional é definida pelo presidente do Senado, que também preside o Congresso.

A chantagem como valor

Mesmo quando os políticos evangélicos apoiavam os governos petistas, a relação era conturbada e permeada de chantagens. A união com Dilma garantiu, por exemplo, que Marcello Crivella, discípulo de Macedo, fosse ministro da Pesca. Mas em 2011, por sugestão do então deputado Anthony Garotinho, que é da igreja Presbiteriana, a bancada evangélica se dispôs a apoiar a convocação do então ministro da Casa Civil, Antonio Palocci, nas comissões da Câmara, para explicar acusações de enriquecimento ilícito. A condição colocada era que o governo retirasse de circulação vídeos e cartilhas contra a homofobia, produzidos pelo Ministério da Educação, sob o comando de Fernando Haddad. O material compunha o “kit anti-homofobia” na denominação do governo e foi apelidado pelos evangélicos de “kit gay”. Os evangélicos demonizavam o material e acusavam o governo de ensinar as crianças a se tornarem homossexuais. Diante da pressão, o governo suspendeu a distribuição do kit nas escolas e Palocci foi poupado da convocação — mas foi demitido dias depois, enfraquecido pelo escândalo.

“Os valores e princípios que defendemos são inegociáveis e, na medida em que o governo mentiu e não honrou os seus compromissos, não nos resta outra opção”, disse o então presidente da Frente Parlamentar Evangélica, deputado João Campos (PSDB-GO), defendendo a chantagem e se referindo a uma promessa que teria sido feita por Haddad. O combate ao famigerado “kit gay” é, essencialmente, o nascimento de Jair Bolsonaro, até então um deputado cuja plataforma era basicamente a segurança pública do Rio, para a política nacional e a pauta de valores.

Esse não foi o único episódio de chantagem na relação com o governo petista. Em 2015, o então presidente da Câmara, Eduardo Cunha, na época no MDB, era o exemplo do evangélico que deu certo no parlamento, chegando à Presidência da Câmara. Cunha, informalmente, comandava a bancada religiosa. A essa altura, a direita já havia reemergido com força no cenário político, pós-jornadas de junho de 2013 e campanha de 2014. Cunha só deu andamento, em 2 de dezembro de 2015, a um dos pedidos de impeachment de Dilma porque três petistas que integravam o Conselho de Ética da Casa não aceitaram votar pela sua absolvição num processo de quebra de decoro parlamentar. Eram eles Léo de Brito (PT-AC), Valmir Prascidelli (PT-SP) e Zé Geraldo (PT-PA). A motivação foi admitida pelo ex-presidente Michel Temer em 2017, em entrevista à TV Bandeirantes. Cunha foi condenado a 15 anos e quatro meses de prisão por corrupção passiva, lavagem de dinheiro e evasão fraudulenta de divisas. Ele foi preso em outubro de 2016 pela operação Lava Jato. Hoje, apoia Bolsonaro.

“Caos Marx”

A resposta sobre o que a bancada evangélica espera de um próximo governo petista não é simples, já que a pauta de costumes serve como um figurino, um invólucro na busca por poder. Não que os políticos da fé não acreditem em nada do que pregam. É que, quando se chega ao Congresso, o que prevalece é o velho pragmatismo político. Ainda assim, por vezes, os atores se perdem no personagem e passam horas regurgitando uma salada ideológica que inclui ingredientes de discriminação, preconceitos e imposição da moral conservadora. Faz parte de manter a base engajada. “Banheiros de gênero” (sim, esse é o nome do momento), combate ao comunismo, “ideologia de gênero”, sexualização de crianças nas escolas, aborto, Cuba, Nicarágua, Venezuela, pedofilia, armas , redução da maioridade penal... Tudo junto e misturado.

Em conversa com o Meio, o vice-presidente da Câmara, Lincoln Portela (PL-MG), passou meia hora em tom de conversão. Não à fé cristã, mas à fé no atual presidente. A predileção, segundo Portela, vem do fato de que os evangélicos “conhecem muito bem o comunismo”. “Eles sabem o que vem acontecendo em Cuba, na Nicarágua, na Venezuela, na Coreia do Norte.” Essa contraposição entre comunismo e fé é estratégia manjada da retórica ultraconservadora. No Brasil, seu maior propagador foi Olavo de Carvalho. A “lógica” consiste em associar o comunismo à destruição da família, para transformar os cidadãos avulsos em escravos da esquerda. Assim, tudo hiperbólico mesmo. “Imagine uma menina de 5 anos que vai ao banheiro e encontra um marmanjo com ‘bigulinho’ de fora. O que o comunismo quer é isso”, diz Portela. Mas Lula é comunista? “Opa! Claro que é. Ele segue Karl Marx, a quem eu chamo de Caos Marx”, riu do trocadilho. “Essa gente é contra a família monogâmica. É só ler o manifesto comunista. Está tudo lá.”

Poucos minutos da conversa foram dedicados à parte prática da coisa. Portela citou a pendenga da cobrança de impostos por conta dos estacionamentos das igrejas, mas sua versão coaduna com a ideia de fechamento dos templos que, segundo ele, é objetivo de Lula. “Querem inviabilizar as igrejas obrigando os templos a terem estacionamentos compatíveis com o número de fiéis. Querem obrigar as igrejas a terem isolamento acústico. Tudo isso serve para que? Para inviabilizar a livre expressão da fé.” Portela é exemplar vivo da fluidez ideológica dos donos da fé. Na época do kit anti-homofobia, Portela se comportou como um aliado do governo petista. Ele era líder do PR, partido que virou PL, e se colocou contra a chicana. “Uma coisa não tem nada a ver com a outra”. Mas longe do deputado misturar as coisas. “Nossa prioridade é garantir a liberdade religiosa. Somos contra o ativismo ideológico.” Amém.

O fantasma do comunismo

Terça-feira, 6 de setembro. Exatamente ao meio-dia, na Paróquia Militar São João Arcanjo, Asa Norte de Brasília, começava a missa em memória dos quatro anos da facada. Como diz o presidente Jair Bolsonaro (PL), a celebração de seu “segundo aniversário”. “Afastai para longe de nós a peste do comunismo e toda ideologia nefasta que atenta contra Deus e seus santíssimos mandamentos”, orou ajoelhado diante de Nossa Senhora. Não rogou sozinho. O padre bolsonarista Jean Marcos, que comandava o evento, reiterou o pedido. “Rezemos por nossa pátria, por nossos governantes, por nosso presidente. Pelo futuro do nosso Brasil. Do nosso mundo. Que fiquem longe de nós os perigos do comunismo, os perigos de um falso socialismo.” No fim do mês, a prece foi reforçada por um padre café com leite. Em rede nacional e horário nobre, o Padre Kelmon (PTB) se dirigiu aos universitários. “As universidades hoje no Brasil viraram um ninho, né? [...]. A gente chega numa universidade e vê jovens utilizando camisetas com Che Guevara. Aí eu pergunto a você, universitário: Você sabe quem foi Che Guevara? Um assassino de sacerdotes”, afirmou Kelvin, Kerman, Kelmon no debate entre presidenciáveis na TV Globo.

Enquanto isso, na Europa, o jornalista norte-americano Jon Lee Anderson, da revista The New Yorker, deixa para trás a Ucrânia. Durante a viagem para a Geórgia, conversa com o Meio. O correspondente internacional coloca de lado a cobertura da guerra que devasta Kiev para analisar outra batalha, a ideológica. Um vale-tudo para se alcançar o poder estimulando o medo na população. O medo do comunismo aflige, segundo o Datafolha, 44% dos brasileiros. O fantasma segue pairando embora o país nunca tenha estado verdadeiramente à beira do comunismo.

É um fantasma, entre outras coisas, porque os principais líderes dessa ideologia estão mortos. Seu ícone revolucionário, o médico e guerrilheiro argentino Che Guevara, morria com uma rajada de fuzil há 55 anos. Lee Anderson escreveu a biografia definitiva de Che (Che: A Revolutionary Life) em 1997. O controverso marxista dedicou a vida à disseminação, sem sucesso, do regime socialista nos países da América Latina. Unindo-se à Revolução Cubana, foi um dos principais responsáveis pela derrubada, em 1959, da ditadura de Fulgêncio Batista. Parceiro de Fidel Castro, não hesitou em pegar em armas. Por fim, teve seu corpo exposto por três dias e enterrado numa vala comum em Vallegrande sob um segredo: nenhum dos responsáveis por dar fim ao cadáver poderia revelar onde este estava. E assim passaram-se 30 anos. Até que, em 1995, o oficial Mario Vargas Salinas confessou a Lee Anderson, biógrafo de Che, onde estavam os restos mortais do mito. Confira os principais trechos da entrevista:

Para além das mitificações, quem era de fato Che Guevara?
Che era um homem profundamente inteligente, altamente alfabetizado, com um senso de humor sarcástico e bastante curiosidade intelectual, o que o levou a mergulhar na leitura e a estudar muitas das filosofias e religiões prevalecentes no mundo. No que se tornou uma busca pelo seu próprio credo, acabou por adotar o marxismo-leninismo, talvez uma consequência da época em que atingiu a maioridade, a era pós-guerra. Naquele momento, grande parte do mundo se descolonizou e dezenas de novos países se tornaram independentes. Era alguém que procurava um universo moral claro e acreditava tê-lo encontrado no marxismo.

Podemos considerar que Che Guevara foi produto de seu tempo?
Definitivamente, Che era um homem da sua época. Enquanto se destacava, o seu idealismo radical era partilhado por outros revolucionários da mesma idade — homens e mulheres que chegaram à idade adulta durante a Segunda Guerra Mundial, sendo conscientizados desde cedo dos horrores gêmeos da bomba nuclear e do Holocausto. Pessoalmente, acredito que isto criou um laboratório único para a geração de Che e Fidel e outros que passaram a apelar a uma mudança global radical através da revolução armada, um apelo que só pode ser descrito, em retrospectiva, como uma espécie de utopia apocalíptica.

Che Guevara seria considerado revolucionário ainda hoje?
Absolutamente. Che era um revolucionário. Quer concordemos ou não com a sua escolha ideológica, a maior potência de Che como símbolo político é a do indivíduo que ousa peitar todo um sistema, escolhendo neste caso a força das armas, em qualquer altura e em qualquer lugar, considerando sacrificar sua própria vida no processo se necessário. Este é um precedente poderoso que foi estabelecido e tem seu legado vivo.

Se tivesse contato com as atuais experiências, Che ainda acreditaria que a social-democracia está condenada ao fracasso?
Che sempre se manteve fiel ao ideal marxista e, sendo assim, acreditou até a morte que a social-democracia era fraca e condenada ao fracasso. Mas é claro que isso era um reflexo do que via, ou acreditava ver, em sua vida, a sua volta. Por exemplo, ele via isso na Guatemala, onde o governo ‘fraco’ de esquerda de Arbenz não se defendia adequadamente das forças de direita apoiadas pela CIA, que acabaram bem sucedidas contra o governo. Então, tendo testemunhado esse desastre em primeira mão, Che chegou a acreditar que só uma revolução armada, de uma esquerda puro sangue, construída sobre princípios marxistas, poderia defender ‘o povo’ e fomentar uma verdadeira mudança social. Mas, neste mundo mais complicado e politicamente mais cínico em que vivemos hoje, não tenho a completa certeza de que Che teria uma visão tão severa dos social-democratas, que, afinal de contas, são todos aqueles que se situam entre a sociedade civil e o autoritarismo brutal em muitos países.

Como Che Guevara enxergaria a onda da extrema direita que varreu as Américas nos últimos anos?
Che não ficaria surpreso. Ele sempre foi muito claro ao defender que o capitalismo e o fascismo coexistiam como potenciais parceiros e poderiam, em última análise, fundir-se, nas circunstâncias certas — como aconteceu nos anos 1930 e 1940. E, em justiça ao Che, até certo ponto, isso parece ser o que aconteceu no Brasil com o fenômeno que conhecemos como bolsonarismo. Ele sempre considerou que o ‘centro político’, aquilo que no Brasil entendemos como o Centrão, é constituído por partidos moralmente fracos, facilmente manipulados, que acabariam por servir para sustentar o status quo. E olhando para o Brasil de hoje, quem poderia dizer que Che estava errado?

O nome de Che é evocado pela extrema direita para incitar medo na população. Medo do ‘comunismo’.
Não há nenhum partido próximo do comunismo como o conhecemos no Brasil. Mas, dada a atual polarização entre extrema direita e esquerda, e com a miséria e a falta de um estado de direito no Brasil, sem contar a desigualdade e a corrupção, alguns dos princípios do marxismo-leninismo ganhem potência como um caminho de “consertar” as coisas. Nesse sentido, o Brasil, mais do que alguns de seus vizinhos, permanece um lugar onde as mesmas questões que ajudaram a alimentar os conflitos da Guerra Fria ainda estão se desenrolando, com as ideologias opostas de esquerda e direita ainda desempenhando um papel.

Bolsonaro tem uma política pró-armas. Qual a diferença entre ‘pegar em armas’ para iniciar uma revolução e pegar em armas para manter o sistema?
Aqui, falamos essencialmente da diferença entre reação e revolução. Os seguidores de Jair Bolsonaro atuam no campo da reação. Quando pegam em armas para defender seus posicionamentos, querem preservar uma ordem nacional vista como ameaçada pelas forças de mudança – ou, até mesmo, procuram atrasar o relógio para um passado ‘perfeito’ que nunca existiu, um antigo tempo mítico onde supostamente prevaleciam a ‘ordem’ e a ‘tradição’. Já a outra força procura derrubar o status quo ‘podre’ para provocar a emancipação e, então, a mudança.

Os ambientes musicais de Brian Eno

Mais de uma década depois de Another Day On Earth, de 2005, o músico, produtor e artista visual britânico Brian Eno, 74 anos, conhecido como precursor da “música ambiente”, volta a cantar. Em ForeverAndEverNoMore (Spotify), álbum lançado ontem, ele aborda o que chama de “emergência climática” com sons eletrônicos e distorções características de seus álbuns. "Não são canções de propaganda que dizem em que acreditar e como se comportar", explica. “Em vez disso, são explorações dos meus próprios sentimentos.” Explorar, aliás, é o que Eno sabe fazer de melhor. Formado em artes plásticas, ele ajudou a fundar, há 50 anos, a banda britânica Roxy Music, no auge do Glam Rock. Fez trilhas sonoras de filmes, criou um relógio de 100 mil anos e uma ONG para o combate às mudanças climáticas. Ele dedicou sua vida a ser tudo, menos um mero músico. E a seguir estão três períodos fundamentais para conhecer os vários ambientes de Brian Eno.

1 - Foi em 1972 que Eno conheceu o estrelato na música, com o Roxy Music, “a banda que quebrou a barreira do som”. O primeiro disco homônimo da banda, lançado em 16 de junho, mesmo dia do The Rise and Fall of Ziggy Stardust and the Spiders from Mars (1972), de David Bowie, trazia uma visão diferente do Glam Rock. Era um som Art Rock, Progressivo e experimental, com Bryan Ferry no piano e voz, Phil Manzanera na guitarra, Graham Simpson no baixo, Andy Mackay no sax e Paul Thompson na bateria. Eno tinha um visual andrógeno e extravagante, com seu grande aparato de sintetizadores que ajudou a dar o tom do que parecia ser um tipo de música “vinda do futuro”.

Em Ladytron (YouTube), Brian se inspirou na chegada do homem à lua para produzir os sons de uma espécie de balada espacial sobre uma mulher-robô. Em Re-make/Re-model (YouTube), um tipo de ambientação já se mostrava presente abrindo a faixa com sons de festa, gente conversando, ruídos de talheres e brindes. O segundo álbum, For You Pleasure, de 1973, trazia a modelo e musa de Salvador Dalí, Amanda Lear, fotografada ao lado de um Jaguar preto, com a banda retomando parte da veia futurista e climática do primeiro álbum em Editions of You (YouTube) e na sombria In Every Dream a Heartache (YouTube), no que seria o último trabalho de Eno com o Roxy Music.

2 - Após deixar a banda por desavenças criativas com Ferry, Brian Eno lançou seu primeiro álbum solo em 1974: Here Come The Warm Jets (Spotify), que ainda trazia a atmosfera do Glam. Mas parcerias com outros astros do rock consolidaram Eno como produtor. Composta pelos discos Low, de 1977 (Spotify), Heroes, de 1977 (Spotify) e Lodger, de 1979 (Spotify), a Trilogia de Berlim de David Bowie foi influenciada pela música eletrônica underground de uma Berlim dividida pelo muro. Foi quando Bowie se mudou para a Alemanha fugindo da fama e do vício em cocaína, e se deparou com os sons minimalistas de Eno, com grupos de eletrônica como Kraftwerk e o produtor Tony Visconti.

Em Low, por exemplo, Eno com o seu sintetizador EMS Synthi A e Visconti com um Eventide Harmonizer conseguiram transformar o cosmos de Bowie com muito improviso e caminhos nunca explorados. Como um todo, esse período extremamente criativo na carreira de Bowie trouxe clássicos como Heroes (Spotify), Look Back In Anger (Spotify) e Warszawa (Spotify). Apesar da carreira muito individual, Eno fez questão de colaborar com uma gama grande de talentos, como David Byrne em My Life in the Bush of Ghosts, de 1981 (Spotify), e Everything that Happens Will Happen Today, de 2008 (Spotify); John Cale em Wrong Way Up, de 1989 (Spotify); e até o U2, em The Unforgettable Fire, de 1984 (Spotify), e Achtung Baby, de 1991 (Spotify), entre outros; Coldplay Viva la Vida or Death and All His Friends, de 2008 (Spotify) e muitos outros. Não é exagero dizer que muitas das canções mais queridas desses artistas e bandas não seriam possíveis sem sua participação.

3 - Com trabalhos marcantes na década de 1970, Eno já havia se tornado um dos célebres músicos instrumentais do século XX. Naquela época, ele começou a explorar uma direção minimalista em lançamentos como Discreet Music, de 1975 (Spotify), e Ambient 1: Music for Airports, de 1978 (Spotify). A música foi criada para ser harmônica e calma com a intenção de aliviar o clima tenso e ansioso de um terminal de aeroporto. Foi a partir desse álbum que o conceito de “ambient music” tomaria forma em uma série de discos que Brian Eno lançaria depois, como o Vol.2: The Plateaux Of Mirror, de 1980 (Spotify), The Shutov Assembly, de 1992 (Spotify), e Reflection, de 2017 (Spotify).

“Eno explora a nova tecnologia sem deixar que ela o prenda”, disse uma entrevista da Wired ainda em 1995, antes do streaming e das redes sociais ocuparem o cotidiano social. Naquela época, aliás, Eno comporia, também, música para o sistema operativo Windows 95, onde, ao todo, faria 84 peças, todas elas com microssegundos de duração. Hoje, em ForeverAndEverNoMore, o artista parece muito mais preocupado com o futuro do planeta do que com o da música em si. Sobre o novo álbum, o New York Times o descreve como se estivesse antecipando uma eternidade pós-humana. “Talvez as espécies sobreviventes do planeta apreciem a música.”

Lembra da Grande Mentira sobre fraude nas eleições? Então, os militares fiscalizaram as urnas, nada encontraram e Bolsonaro mandou segurar. Esse foi o tema mais clicado pelos leitores na semana:

1. Globo: Bolsonaro segura relatório sobre urnas após militares não encontrarem fraudes.

2. Globo: Decisão veio depois de encontro com o ministro da Defesa.

3. G1: O TCU está pressionando o governo para liberar o relatório.

4. Estadão: Supercomputador da Nasa simula processo de criação da Lua.

5. CNN Brasil: Bolsonaro descarta aumentar número de ministros se STF “se baixar temperatura”.

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