A estratégia de comunicação do bolsonarismo

O negacionismo estrutural é a base. É a técnica de governo destinada a produzir uma realidade fictícia onde vige um sistema diferente de causalidades e responsabilidades daquele do mundo real

Todas as expressões ideológicas do reacionarismo populista se manifestam em uma estratégia fundamental, que perpassa todas as práticas do governo Bolsonaro: o negacionismo estrutural. Fala-se muito em negacionismo a respeito da condução da política sanitária pelo governo federal, mas o fenômeno não se limita a esse ramo da administração. Entendido como técnica de governo destinada a produzir uma realidade fictícia, o negacionismo do governo Bolsonaro é mais amplo, ou seja, estrutural. Esse negacionismo pretende criar uma realidade paralela onde vige um sistema diferente de causalidades e responsabilidades daquele do mundo real. Do ponto de vista ideológico, a origem desse negacionismo é tipicamente reacionária porque, almejando recuar para um tempo já desaparecido, começa por ter de negar postulados básicos da racionalidade moderna na descrição do funcionamento do mundo. Para se infiltrar na sociedade, esse discurso precisa atacar a imprensa, a ciência e a academia, que são as instâncias responsáveis pela geração de consensos sociais sobre o que seja a verdade no mundo moderno.

A modernidade é orientada pela busca da ampliação da racionalidade como fundamento da justificativa a respeito da verdade/falsidade das decisões. Em termos políticos, essa racionalidade seria traduzida em discursos capazes de informar a opinião pública, que, assim, tomaria decisões e escolhas baseadas no convencimento racional sobre a veracidade de um tema. Sabemos, contudo, que esse modelo ideal de maximização da racionalidade das escolhas construído ao longo dos séculos XIX e XX está longe de ser a realidade das democracias. A “opinião pública” é formada por um sem-número de discursos que mobilizam narrativas nem sempre comprometidas com sua justificação racional ou universal. Porém, em períodos de estabilidade, mesmo lideranças políticas muito divergentes em termos sociais e econômicos convergiam em alguns fundamentos da vida democrática moderna, tais como o valor da racionalidade científica, a importância das garantias de liberdades públicas, de pluralismo político, da preservação das instituições e de seu funcionamento razoavelmente autônomo.

O negacionismo estrutural visa destruir a busca racional da verdade como fundamento da vida coletiva. Nega a relativa possibilidade de divergência racional na política e busca dividi-la entre amigos e inimigos inconciliáveis, tendo como horizonte a conquista de maiorias para justamente “regenerar” uma ordem estável perdida com o conflito.

A divergência não é considerada um antagonismo regulado por procedimentos, mas uma guerra que exige suspensão da normalidade democrática e recursos excepcionais de Estado. Para o reacionário, os fundamentos do mundo moderno — a secularização, a relativização dos valores absolutos, o discurso científico, a democratização do acesso à cultura e informação — seriam corruptores da civilização judaico-cristã ocidental, caracterizada como uma sociedade homogênea e hierárquica em termos de valores e traços culturais e marcada pela precedência da autoridade religiosa sobre a razão. Portanto, negar e acusar o mundo moderno seria uma estratégia fundamental para “restaurar” os valores autênticos de nossa civilização corrompida. A produção da verdade passa a ser uma função do Estado, que responsabiliza tudo o que de mal ocorre ao demônio ou a seus inimigos.

O negacionismo opera por uma lógica de reversão dos valores de uma sociedade democrática. Conquistas democratizantes, que ampliam a proteção de direitos, as liberdades públicas, a participação política de parcelas antes excluídas da população, são convertidas pelo discurso negacionista em manifestações do mal, corruptor da civilização em declínio. Os negacionistas precisam inverter a lógica da vítima, colocando-se no lugar daqueles que eles pretendem atacar. Assim, o racismo é constantemente negado e, em seu lugar, se manifestaria um “racismo reverso” contra homens brancos, pais de família, ciosos dos valores tradicionais e religiosos. O reconhecimento de direitos e de identidades de gênero é interpretado como manifestação de uma “ideologia de gênero”, estratégia de corrupção dos sexos naturais e de sua função na divisão dos papeis sociais e da família.

A face oculta do negacionismo é o conspiracionismo, ou seja, a ideia de que aquilo que explica os fenômenos sociais, econômicos e políticos está sempre oculto. Assim, a “verdade” ocultada precisaria ser revelada por aqueles capazes de desvendar os segredos do poder e expô-los ao povo autêntico. Eis, portanto, a estrutura fundamental do negacionismo e de sua utilidade para o populismo reacionário: o acesso aos fatos não depende do uso da razão e de seus critérios – a comprovação de uma causalidade –, mas de um suposto compartilhamento de informações não divulgadas pela ciência ou pelos meios correntes de comunicação de massa, somente acessíveis a homens e mulheres que tem a coragem de transpor a falsidade do mundo aparente e acessar o mundo das verdades ocultas.

O negacionismo estrutural foi desenvolvido deliberadamente pelos populistas reacionários para encobrir pela desinformação o que eles produzem de mais ruinoso e contraditório.

O importante é conciliar o inconciliável. Conciliar um governo eleito com a bandeira da ética com favores às velhas oligarquias políticas com amplo histórico de corrupção, sob a promessa de aparelhamento administrativo e blindagem da máquina pública. Ou conciliar a ideia de um governo eleito sob a bandeira da desestatização com a decisão de ampliar gastos de pessoal com os militares, blindar as carreiras da magistratura da reforma administrativa ou ampliar o gasto com emendas parlamentares a níveis nunca vistos em governos anteriores. Para acobertar a contradição e a incoerência, o fracasso e o absurdo é que se presta o negacionismo estrutural empregado pelo poder. Por isso atacam a imprensa, a ciência e a academia. Do púlpito dos padres ultramontanos, o reacionarismo clássico do século XIX prometia aos seus adversários o mármore do inferno. O fascismo do século XX também soube usar o cinema e o rádio para difundir seu próprio negacionismo. Hoje, as mentiras negacionistas são difundidas com a mesma violência por meio das redes sociais. E com a mesma finalidade.

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