Edição de Sábado: A estranha ideologia do Telegram
No dia 16 de abril, em 2018, a agência russa responsável por regular serviços de comunicação e tecnologia anunciou que bloquearia o Telegram em todo o país. Exatamente como o Tribunal Superior Eleitoral cogita fazer no Brasil. Naquele dia, o criador do app, Pavel Durov, foi à principal rede social russa, VKontakte, e publicou o desenho de um cachorro branco vestindo um moletom de capuz preto. O texto de legenda dizia apenas ‘resistência digital’. Os russos conheciam aquele cachorro. Passada uma semana, Durov apareceu novamente na VK — e, desta vez, escreveu mais. “Conclamo todos que defendem a Internet livre a lançar uma gaivota pela janela, um avião de papel, exatamente às 19h. Esta semana ficará registrada na história.” Também esta referência, a das gaivotas, os russos conheciam. Lançar gaivotas pela janela a uma mesma hora como símbolo de resistência silenciosa é a conclamação feita por um popular vilão de histórias em quadrinhos no país. A personagem, um assassino em série de políticos corruptos e empresários ligados à oligarquia mafiosa, é um justiceiro chamado Doutor Praga. De dia, ele é o bilionário fundador de uma rede social. À noite, uma figura sinistra que veste máscara de bico como a dos médicos medievais e faz Justiça com as próprias mãos. Os russos que tomaram as ruas de Moscou no dia 30, protestando contra o bloqueio do app, sabem também que o Doutor Praga é inspirado em Durov. E que, não à toa, o ícone do Telegram é uma gaivota.
Durov e o governo de Vladimir Putin têm, juntos, uma longa história de embates. Todas as referências pop que o jovem bilionário faz, e que os russos compreendem, se referem a esta história. E os problemas que o Telegram causa em democracias mundo afora, incluindo no Brasil, são consequência de tudo que ele passou. Em 18 de junho de 2020, a Rússia enfim suspendeu o banimento do Telegram no território nacional. Oficialmente é porque o empresário havia concordado em “conter extremistas” na plataforma. Um eufemismo para movimentos pró-democracia. Na prática a razão foi outra: mesmo bloqueando milhões de endereços IP, em dois anos os técnicos nunca conseguiram impedir livre acesso ao app por quem desejasse.
Se o TSE decidir por este caminho, também pode ser difícil.
Ascensão
Pavel Durov nasceu em Leningrado em 1984, durante o curto período em que Konstantin Chernenko presidiu a União Soviética. Era um tempo de caos, crise econômica e uma sensação generalizada de desesperança. Quando ele tinha 4, seu pai, um professor universitário especialista em Latim e Roma Antiga, conseguiu um posto na Universidade de Turim — mas a família não se mudou completa. Pavel ficou para trás por vários meses, na casa da avó. “Aprendi que preciso contar comigo mesmo”, contou anos depois. Se tornou confortável com a solidão. “Estava lá eu com quatro anos de idade, meus pais e meu irmão longe, e minha avó era uma senhora. Não sabia brincar e trabalhava o tempo todo.”
O irmão mais velho, Nikolai, tinha uma cabeça matemática brilhante. Na Itália dos anos 80, nos programas de auditório popularescos vibrantes que pareciam estar a um mundo de distância da União Soviética, o menino de 10 se mostrava fazendo contas e resolvendo problemas que adultos não conseguiam. E Pavel, o caçula, quando enfim se juntou ao resto da família já assentada, se perdia em fascínio e admiração. De volta à Rússia, na adolescência, enquanto o país desmoronava no governo desastrado de Boris Yeltsin, o Durov mais velho ganhava uma medalha de ouro após a outra nas Olimpíadas Internacionais de Matemática. Foi bicampeão internacional de jovens programadores. Ainda hoje, em tudo quanto é entrevista que dá, Pavel cita Nikolai como seu melhor amigo.
Juntos, quando Pavel estava recém-formado, os dois lançaram o VKontakte, uma rede social copiada do Facebook, em 2006. Escreveram o primeiro código a quatro mãos, copiaram a aparência da rede de Mark Zuckerberg, puseram no ar. Explodiu em seu país num momento em que a política havia sido estabilizada, Vladimir Putin ainda fingia ser democrata, mas oligarquias já dividiam o comando de boa parte das grandes empresas. Pavel tinha 22 anos. Ficou rico.
Mas lentamente o governo Putin foi fechando e, era inevitável, alguma forma de controle teria de chegar à principal rede social russa. Foi em 2011 que a pressão começou: o Kremlin deu ordens para que o VK encerrasse as páginas de oposicionistas. Durov ignorou os pedidos — limitou-se a publicar a fotografia de seu cachorro vestindo um moletom, capuz na cabeça, e a língua para fora. Aquele cachorro de capuz ia virar ícone. Naquela noite, quando estava sozinho em casa, a campainha tocou. Eram uns tantos policiais em roupa camuflada. Pavel fingiu não estar. Ele os observou pelo monitor de segurança conforme tentaram forçar a porta. Chegou a fazer o movimento de ligar para o irmão, mas aí teve receio — não estariam ouvindo suas ligações? Então se encolheu. E esperou.
Talvez os homens apenas quisessem assustá-lo, mas não chegaram a entrar.
A reação do jovem CEO, porém, foi de não se recolher. Reagiu. Quanto mais a pressão do aparato de segurança do governo aumentava, mais errático Pavel se tornava. Se comportava de forma aleatória, como se estivesse completamente alienado. Como se nada o amedrontasse. Em uma semana de particular pressão pública, seu nome em todos os jornais, acusações de toda sorte circulando, foi à janela de seu escritório em um dos mais icônicos edifícios art nouveau de São Petersburgo, a antiga sede da Companhia Singer, e começou a jogar gaivotas na rua. Cada uma dobrada em notas de 5 mil rublos — ao todo, lançou quase sete mil reais. Nos telejornais da noite, também pipocando de celular em celular, fotos e vídeos da bagunça que arrumou o transformaram no assunto da semana.
Mas o caos não assusta o Kremlin. Em 2013, o CEO foi acusado formalmente de atropelar uma pessoa, mata-la, e fugir. Pavel Durov, porém, não sabe dirigir. Se ele não se intimidava, havia outras formas de derrubá-lo. Em 2014, perdeu o VK quando outra empresa digital, a Mail.ru, fez uma aquisição hostil. Seu fundador, Alisher Usmanov, é um dos homens de Putin. A compra de participação majoritária na rede tinha vários problemas legais, contratos de direito de primeira oferta foram rompidos, mas a Justiça russa não o ajudaria. O jovem CEO publicou na rede uma última fotografia, dele com os dois dedos médios levantados — aí sumiu. Foi reaparecer meses depois no interior do estado de Nova York, para onde havia se transferido com seus melhores programadores.
Telegram
“Governos e países são menos importantes do que as pessoas acham”, afirmou Durov certa vez em uma entrevista. “Eles fazem parecer que têm crédito por processos que ocorrem naturalmente. Acredito em governos enxutos ou mesmo governo nenhum.” Tendo ficado multimilionário antes dos 25 e encontrado no governo Putin uma forte resistência ao crescimento de sua empresa, ele foi lentamente formando uma ideologia própria que se fundiu com seu temperamento e personalidade.
Pavel Durov é vegetariano, segue uma prática rígida de exercícios com yoga e meditação. “Uma hora você percebe que nossas mentes são controladas, no sentido neurológico, por nossos corpos. Aprendemos a fazer a engenharia reversa para localizar as razões reais de nossas emoções.” Por anos, após deixar a Rússia, tornou-se um nômade digital. Juntava sua equipe de programadores, punha-se num jatinho particular, alugava um Airbnb e ia para um país novo. A cada hora num canto. Em seu perfil no Tinder afirma que não quer qualquer compromisso.
E foi assim que desenvolveu o Telegram. No ícone, a gaivota, uma memória daquele dia que lançou notas de dinheiro à rua enquanto o governo o pressionava a extirpar da rede qualquer traço da oposição. Seu app de mensagens seria à prova de quaisquer governos, incontrolável, um ambiente de total liberdade de expressão, de garantia de anonimato. Ele podia ter perdido o VK, mas criando o Telegram de fora da Rússia Durov conseguiria vencer Putin.
E, de certa forma, conseguiu mesmo. O Kremlin tentou banir o uso do app. No país há uma cultura do uso de VPNs, um método de contornar bloqueios da internet de forma anônima. Pois o governo nunca conseguiu fazer o bloqueio.
O Telegram é um app de mensagens similar ao WhatsApp com a diferença de que tem ferramentas de anonimato e permite a criação de canais. Qualquer um pode cria-los e todos os usuários têm como assinar estes canais para receber o que é publicado. O ideal libertário por trás da plataforma, ao longo do tempo, a tornou também um ambiente livre para distribuição de conteúdo do Estado Islâmico, de pornografia da vingança e imagens de pedofilia.
As idiossincrasias de Durov se mostram de muitas formas. A plataforma combate pedofilia e trabalha de forma exaustiva para derrubar conteúdo do extremismo islâmico. Não mostra a mesma sensibilidade com o livre mercado para distribuição de imagens íntimas de mulheres que não gostariam de vê-las públicas.
Em 2021, após o ex-presidente americano Donald Trump ser banido da maioria das redes sociais, o app explodiu nos EUA, assim como no Brasil. De 400 milhões de usuários ativos, passou a 500 num ano e tem a expectativa de dobrar a base, agora, em 2022. Bater um bilhão. Está entre os dez apps mais baixados tanto da Play Store, do Android, quanto da App Store, da Apple.
E a desinformação política, que a plataforma se recusa a combater, circula livremente.
Essa mistura de app de mensagens privadas com canais públicos de broadcast faz toda diferença para a organização de grupos políticos. É a ferramenta escolhida pelos manifestantes pró-democracia, em Hong Kong, e também a dos antivacina, que ocuparam nas últimas duas semanas o centro do Canadá.
Durov só se veste de preto, evocando o personagem Neo, da série de filmes Matrix. No Instagram, gosta também de posar sem camisa, com o olhar distante. O vilão anti-herói Doutor Praga, dos quadrinhos russos, não é inspirado nele à toa. É um justiceiro: suas vítimas são políticos e empresários corruptos. Mas ele é juiz e executor. Em 2017, quando uma versão para o cinema saiu na Rússia, o trailer encerrava com as centenas ou milhares de gaivotas flutuando pela cidade, em homenagem ao vilão. Um vilão que atrai jovens seguidores — e que permanece sendo vilão. Mas um vilão de quadrinhos que não parece incomodar o jovem executivo libertário. Pelo contrário — Pavel o cita.
Entrevistado pela Wired, que dedica a capa deste mês à plataforma, um funcionário descreve o comando da empresa como uma seita. Hoje, todos moram nos Emirados Árabes Unidos, um pequeno grupo de russos extraditados, programadores que não contradizem seu chefe em nada.
Nada sugere que isto vá mudar. Hoje, afirmando não ter posses ou ambições materiais, Pavel Durov já não é mais multimilionário faz tempos. O Telegram o pôs na lista dos bilionários da Forbes.
A Neuralink de Elon Musk e o dilema ético com experimentos em animais
O bilionário Elon Musk é conhecido por suas empresas de alto perfil como Tesla e SpaceX, mas também tem empreendimentos incomuns. Além da The Boring Company, startup de construção de túneis, existe outra empresa considerada como a mais estranha e futurista de Musk: a Neuralink. Segundo o homem mais rico do mundo, a missão da companhia é promover uma simbiose entre o cérebro humano e a inteligência artificial, desenvolvendo tecnologia de interface neural para implementar um novo tipo de acesso às funções cerebrais.
Isso: implantes que ligam cérebro e máquina.
Fundada em 2016, a Neuralink deu um grande passo em 2019, quando divulgou o vídeo de um macaco jogando videogame com a mente. Pager, de 9 anos, que recebeu um implante de chip no cérebro cerca de seis semanas antes da gravação, controla o game Pong mesmo com o controle desligado. Mas um processo judicial recente acusa a empresa e sua parceira — a Universidade da Califórnia-Davis (UC Davis) — de maus tratos dos animais usados nos testes de implantes cerebrais, colocando o sistema que conecta mente e máquina, uma proeza digna de ficção científica, sob um dilema ético.
O Comitê de Médicos para Medicina Responsável (PCRM), que luta pelos direitos dos animais nos Estados Unidos, denuncia a empresa por “mutilar” cérebros de macacos, deixando-os “para morrer”. O processo menciona o “sofrimento extremo como resultado de procedimentos inadequados com os implantes de cabeça experimentais altamente invasivos”.
A acusação ainda se apoia em estudos da própria UC Davis, que opera o centro federal de pesquisa de primatas nos EUA. A universidade forneceu mais de 700 páginas de documentos com registros veterinários e laudos de necropsias, que indicam como 23 macacos eram tratados na Neuralink entre 2017 e 2020. Do total, 16 macacos teriam morrido até 2020. Agora, o grupo diz que apresentará uma queixa oficial ao Departamento de Agricultura dos EUA, exigindo que o órgão investigue os experimentos.
Segundo o grupo médico ativista, as ações da Neuralink com macacos envolve 9 violações da Lei de Bem-Estar Animal nos Estados Unidos, que determinam a redução da dor ao realizar testes, presença de um veterinário assistente para aconselhar o uso de anestesia, reduzindo o sofrimento. Também existem citações em registros de que um dos macacos não tinha alguns dos dedos das mãos ou dos pés, condição que pode ter sido causada “possivelmente por automutilação ou algum outro trauma não especificado”.
Como funciona a tecnologia
Mas o que poderia ter causado esse tipo de condição nos animais usados nos estudos? Na prática, a Neuralink desenvolve tecnologia de interface neural para implementar um novo tipo de acesso às funções cerebrais. São dois aparelhos em desenvolvimento: um chip que seria implantado no crânio de uma pessoa, com eletrodos espalhados em seu cérebro. A partir do chip, do tamanho de uma moeda, uma série de pequenos fios se espalha no cérebro do paciente. Os fios são equipados com 1.024 eletrodos capazes de monitorar a atividade cerebral e estimular o cérebro. Então, os são transmitidos sem fio via chip para computadores, onde podem ser estudados por pesquisadores. Já a segunda tecnologia da empresa consiste em um robô que pode implantar automaticamente o chip.
O vídeo do macaco Pager, por exemplo, é uma demonstração de como a Neuralink tem demonstrado as possibilidades. O animal foi ensinado a jogar videogame com um controle, enquanto era recompensado por uma vitamina de banana. Enquanto fazia isso, um dispositivo da empresa gravou informações sobre a atividade dos neurônios através do chip implantado em seu crânio.
Mas a proposta de Musk para a Neurolink não é só a “tecnologia pela tecnologia”. Segundo o bilionário, o trabalho da companhia vai permitir que pessoas com paralisia utilizem um celular com a mente “mais rápido do que alguém com os dedos”. Embora tudo isso soe exagerado, a inovação pode ter amplos usos dentro da medicina. A primeira aplicação do chip será dar a pessoas quadriplégicas a habilidade de controlar telefones e laptops. Mas, no futuro, Musk quer juntar a consciência humana à inteligência artificial.
O dilema
Partindo disso, os experimentos feitos em macacos são realmente um problema? Para a empresa, não. Em uma postagem no blog da companhia, a Neuralink se defendeu das acusações e explicou todo o processo de comprometimento ético da marca com macacos e porcos, que também são utilizados em testes. A empresa explica que as primeiras cirurgias do experimento foram realizadas em cadáveres ou como um procedimento terminal. “Os procedimentos terminais envolvem a eutanásia de um animal anestesiado na conclusão da cirurgia. Com isso, a cobaia não sofre no pós-operatório caso o procedimento de teste tenha um resultado inesperado.”
Em relação aos animais que apresentavam partes amputadas, como dedos, a empresa explicou que “esses animais podem ter perdido dedos ao longo da vida devido a conflitos com outros macacos”. Mas nenhum dos ferimentos teria ocorrido durante o projeto da Neuralink. No total, oito deles foram sacrificados durante os testes, na universidade. Dois em datas finais planejadas para coletar dados histológicos, e seis pelo conselho médico da equipe veterinária da UC Davis.
Em 2020, os estudos passaram a ser realizados na própria empresa. Para isso, a Neuralink construiu um viveiro. Alguns animais também são afastados quando não colaboram de forma adequada nos estudos.
“Aposentamos vários macacos em um santuário em março do ano passado, porque eles sempre optaram por passar o dia nadando em suas piscinas, procurando alimentos e relaxando em suas redes, em vez de assistir ao jogo que apresentamos. Seus novos recintos e custos do santuário foram totalmente financiados pela Neuralink. Nós também esperamos o dia em que animais não serão mais necessários para pesquisas médicas. Porém, se precisam ser usados para pesquisa enquanto isso, suas vidas e experiências devem ser o mais vitais e naturais possíveis.”
Tatuagens ressiginificam dores
Raquel Gaulthier tem 24 anos, atua como tatuadora há três e faz um que se especializou em cicatrizes. Descobriu que tinha talento para tatuagens ao manejar uma máquina de micropigmentação de sobrancelhas, quando escreveu “respira” em sua própria mão e percebeu a importância que aquela maquininha tinha sobre a autoestima de uma mulher. Ela viu nas micropigmentações um trabalho artístico e, como estava em busca de se especializar, encontrou ali a oportunidade de se conectar consigo mesma. Ao se tatuar, sentiu algo diferente.
Ainda assim, no início, a sensação é de que fazia tatuagens “sem significados”. Foi quando entendeu do que a movia — a busca daquele impacto de um desenho na autoestima. O que ela não tinha ainda era um estilo de tatuagem. Para isso, precisou da confiança de outros para que pudesse montar um portifólio. Hoje, ela é a primeira tatuadora especializada em cobrir cicatrizes de automutilação, cirurgias, acidentes e queimaduras e coleciona histórias intensas e emocionantes, todas cuidadosamente colecionadas em seu Instagram.
Entrei num projeto de tatuagem em automutilação, no Setembro Amarelo. Tatuei três pessoas neste projeto e senti esse algo que tanto procurei. A tatuagem ali não significava apenas um luxo, juntava um significado e um motivo por trás da cicatriz. Comecei a estudar cicatrizes até que apareceu uma moça com uma de queimadura no pé. Queria tatuar comigo. Eu disse que não conhecia ninguém especializado neste nicho. ‘Se você confiar em mim, vou estudar muito para tatuar na sua cicatriz e vamos ver no que vai dar.’ Ela confiou. Ficou linda. E foi aí que decidi.
Pedi permissão para postar o resultado e comecei a receber elogios de todos os lados, até que a página Razões Para Acreditar reportou o meu trabalho e comecei a receber mensagens de muitas mulheres querendo tatuar. Decidi me especializar, não existia ninguém aqui no Brasil. Essas pessoas precisam de alguém que cuide das suas dores, dos seus traumas, que veja seu corpo com carinho e respeito. Foi quando decidi que tatuaria somente cicatrizes. Vi que por um lado perderia alguns clientes, mas por outro ganharia emocionalmente.
Processo de criação
Só tatuo cicatrizes após um ano, pois a pele está preparada para receber tinta. O processo de criação é onde faço esboços no corpo da cliente, para valorizar o corpo e a região onde a tatuagem será feita. É o momento de ver o biotipo, a prolongação do traço e a valorização da área da tatuagem.
Peço para a cliente pensar com carinho na tatuagem, pois não basta cobrir. Não é como uma roupa que ela pode cansar e tirar, é uma tatuagem concentrada na cicatriz.
Faço um esboço para entender a proporção e o tamanho da tatuagem, do jeito que ela imagina. Faço um segundo esboço com as minhas sugestões, porque ela precisa ver na prática que o desenho pode ficar melhor do que ela imagina.
O processo de criação exige um dia livre para pensar nas características da cicatriz e desenho.
Como elas sentem
Os olhares maldosos, comentários sobre as cicatrizes, é isso que mexe com a autoestima. Ficam abaladas. Já ouvi relatos de que as pessoas reparam primeiro na cicatriz e depois na pessoa que passa. Notam mais a marca do que qualquer característica. Outras se queixam de ter de explicar, toda hora, o que aconteceu. É um processo dolorido. A pessoa levou um tiro e tem gente que quer saber, é traumático se sentir na obrigação de contar diversas vezes a mesma história. Algumas pessoas até mentem.
Mulheres relatam vergonha, não têm relações sexuais com as luzes acesas, somente no escuro. Outras aprendem posições e ângulos para esconder a cicatriz com o marido. Algumas dizem que o marido nunca chegou a ver a cicatriz durante o sexo, elas têm vergonha da marca. Do trauma.
A cicatriz
Existem cinco tipos de cicatrizes — queloide, atrófica, hipercromicas, hipocromica e normotrófica. Na hora de aplicar a tatuagem preciso testar o quanto a pele aguenta as batidas da máquina e como ficará a pigmentação. Meus traços são trabalhados com delicadeza, tenho de analisar a cicatriz para que o processo de criação seja adequado. As cicatrizes de queda de moto, queimadura, cirurgias ou automutilação exigem técnicas diferentes, não é tudo a mesma coisa. Os elementos visuais também mudam porque luz e sombra influenciam.
A partir daí, sol não é bom para pele nenhuma, mas principalmente para as com cicatrizes. Não podemos esquecer que a tatuagem também precisa de um tempo para cicatrizar e, neste caso, estamos falando de uma cicatriz por cima de outra. A pele fica sensível, é normal. O processo de cuidado pós-tatuagem é o mesmo para peles sem cicatrizes, o mesmo de um piercing. Nunca tive problema, mas sempre indico que a cliente procure um dermatologista caso precise de medicamento ou pomada.
É necessário assinar um termo de responsabilidade antes de tatuar. Caso ocorra uma alergia ou algo parecido, não me responsabilizo. Mas nunca aconteceu, tomo os cuidados.
A transformação da memória
Até hoje me lembro de uma cliente que sofreu um acidente aos cinco anos. Ela morava em Salvador, estava na calçada brincando em época de Carnaval, e um carro desgovernado a atropelou. Deixou uma cicatriz. Fez com que ela nunca mais usasse roupas que mostrassem a perna. Hoje, aos 45, me contou que a mãe dizia — ‘um dia você vai acordar e não vai mais ver essa cicatriz’. Então ela dormia com esse pensamento. Me encontrou pelo Instagram, veio para São Paulo, onde tenho estúdio, e quis homenagear a mãe. Bolamos um desenho, uma orquídea, a flor preferida de sua mãe. Ela conta que a mãe tinha razão. Hoje ela acorda e não vê mais a cicatriz. Vê um desenho que a lembra do amor pela mãe.
Essa história me toca muito por ter acontecido com uma criança. Mas tem muitas histórias de clientes que já foram atropeladas por caminhão, sofreram acidente de moto, se automutilavam, tomaram um tiro, se queimaram, fizeram uma cirurgia ou até mesmo que sofreram violência doméstica. Fico emocionada. Cada história é uma vivência, não dá para escolher uma. Fico feliz pela confiança que elas têm em mim e no meu trabalho.
E os mais clicados da semana.
1. g1: Fotos mostram o antes e o depois da tragédia de Petrópolis.
2. g1: Vídeo flagra momento em que bando de pássaros caem mortos em cidade no México.
3. g1: Vídeo mostra deslizamento de terra em Petrópolis.
4. g1: Frases de Arnaldo Jabor, que nos deixou essa semana.
5. Tribuna de Petrópolis: Ruas destruídas dificultam o acesso ao centro histórico da cidade.