Edição de Sábado: O ódio que o Facebook espalha

O discurso poderia ser de um nazista contra judeus — mas quem o faz em nada parece com um nazista. O monge Wiseitta Biwuntha, mais conhecido por Wirarthu, tem os olhos amendoados, a pele corada tão comum no Sudeste Asiático e a cabeça completamente raspada. Sempre que está em público, veste a roupa típica dos budistas teravada — dhonka e shemdap, que juntos parecem um manto só dum vermelho escuro, quase vinho. Pela aparência, não destoaria se estivesse ao lado o Dalai Lama. Mas não pelo discurso. “Se você comprar de uma loja de muçulmano”, Wirarthu afirma, “o dinheiro não para ali. Este dinheiro, ao fim, será gasto para destruir nossa raça a religião. Esse dinheiro será usado para atrair mulheres budistas e força-las a se converter ao Islã e, quando os muçulmanos tiverem população maior, vão nos engolir, tomar o poder em nosso país e transformá-lo numa nação demoníaca islâmica.” Em Myanmar, mais de 90% da população se identifica como budista. Hoje aos 53, o monge é o rosto mais conhecido do Movimento 969, que defende que budistas devem se casar com budistas, comprar em negócios budistas e trabalhar pela expulsão dos muçulmanos do país.

Wirarthu é um dos mais ávidos defensores da limpeza étnica em Myanmar. É, também, um importante aliado político dos militares nacionalistas.

O monge Wirarthu não está mais no Facebook. Foi expulso em 2018, após o genocídio da minoria rohingya no ano anterior. Mas, até lá, a rede foi a principal plataforma para seu discurso de ódio étnico. E não houve nada de acidental. Em Myanmar, o Facebook foi propositalmente utilizado como ferramenta para construção de um ambiente político instável que levasse à violência. O surgimento da internet do país, um fenômeno recente, coincidiu com a radicalização seguida de colapso da democracia, no início deste ano.

Até 2011, Myanmar era uma ditadura militar, um dos regimes mais fechados do mundo, que tinha como principal rosto Aung San Suu Kyi, a política que venceu o Nobel da Paz, em 1991. Suu Kyi foi libertada no momento em que o regime começou a abrir. Embora não tenha sido permitido a ela concorrer às eleições no primeiro pleito, seu partido venceu 43 das 45 cadeiras do Parlamento e iniciou uma lenta liberalização do país.

Um dos marcos da democratização foi acesso à internet. O preço de um cartão SIM para smartphones despencou, em 2012, de milhares de dólares para centenas. Continuava muito caro, mas tornou-se acessível para uma crosta da classe média alta. Em 2013 o monopólio estatal sobre as telecomunicações caiu e duas operadoras estrangeiras entraram — uma catari, a outra norueguesa. Em 2014, o SIM já custava um dólar, as lojas se encheram de smartphones chineses baratos e o uso de internet, principalmente em plataformas móveis, explodiu.

Como criar um ambiente de desinformação

A cultura digital que se desenvolveu no país a partir dali foi uma centrada no Facebook — a adoção da rede social no país foi a mais acelerada em qualquer nação já registrada pela empresa. Quase instantaneamente, no arco de um ano, mais da metade da população abriu uma conta na plataforma. O fenômeno não passou batido pelo monge Wirarthu. Muito menos pelos militares.

Antes do golpe militar de fevereiro deste ano, Myanmar nunca chegou a ser uma democracia plena. Os generais mantiveram, por toda década de 2010, o poder isolado de reformar a Constituição que havia sido promulgada na ditadura anterior. E a Carta determinava que o poder civil não poderia intervir nas Forças Armadas, que atuavam com orçamento próprio e plena liberdade.

Em 2017, dois anos após a ampla adoção da internet no país, o Exército já tinha um setor com 700 militares responsáveis por uma extensa campanha de desinformação no Face. Controlavam milhares de contas e páginas na rede, dentre elas as de celebridades, pop stars e até a popular Miss Myanmar, Shwe Eain Si, conhecida como SES. A população buscava seus ídolos sem saber que os influenciadores trabalhavam para o Exército, produzindo peças publicitárias de nacionalismo extremo e horror étnico. Em um de seus vídeos, narrado em inglês com legendas em birmanês, com a voz suave e um filtro difusor, SES prega a paz enquanto mostra fotografias falsas, gráficas de um verdadeiro terror, acusando os muçulmanos de ataques bárbaros contra budistas. (Ainda é possível assistir a este vídeo — mas o alerta cabe. É forte. E as acusações nele feitas são comprovadamente falsas.)

Embora não trabalhasse para o Exército, o monge Wirarthu passou a ter uma das páginas de Facebook mais visitadas no país. E ele republicava todos os boatos de violência, pregava que os muçulmanos secretamente controlavam o poder no novo governo, além de serem os donos do dinheiro em Myanmar. Em janeiro de 2017, um dos maiores advogados do país e conselheiro pessoal de Suu Kyi foi assassinado. Era um dos muçulmanos de maior visibilidade. Entre agosto e setembro do mesmo ano, pelo menos três mil pessoas da etnia rohingya foram assassinadas em manobras militares e mais de 800 mil fugiram do país para Bangladesh. Tentando ainda se manter no poder, Syy Kyi calou. Em dezembro a ONU classificou a ação como uma de limpeza étnica. Ou genocídio.

O governo civil nunca se recuperou da crise política aberta ali e dos constantes ataques via Facebook. Em 1o de fevereiro deste ano, caiu perante um novo golpe militar.

Uma das primeiras ações do regime democrático em Myanmar foi ampliar acesso à internet acreditando que, assim, abriria portas para o livre debate na sociedade. Mas quando o Facebook foi adotado espontaneamente como principal plataforma de diálogo, o elo quebrou.

Um estudo da ong jornalística Global Witness mostra o processo. Os investigadores criaram um perfil limpo, sem histórico passado, na rede de Myanmar. Fizeram então uma busca por notícias relacionadas ao Exército — o que qualquer um por lá inevitavelmente faz, tamanho o poder da instituição. No momento em que o primeiro like numa página relacionada aos militares foi dado, começaram a brotar recomendações de outras páginas. Em minutos o perfil antes vazio havia sido completamente dominado por desinformação racista, discurso de ódio e pró-golpe militar. Não é preciso grande esforço, o próprio algoritmo leva qualquer um a este tipo de conteúdo.

Durante a ditadura anterior, os militares acreditavam que se liberassem a internet, perderiam o controle do país. No Face, descobriram no curto período democrático que a internet poderia se tornar sua principal aliada. Com a ajuda da rede conseguiram criar o ambiente de incitação aogenocídio e tornar ao poder.

O monge Wirarthu foi expulso do Face em 2018, alguns meses após o genocídio. Àquela altura, ele já era habitualmente tratado como o ‘bin Laden budista’ pela imprensa internacional fazia muitos anos. Não era uma figura obscura e a natureza de seu discurso tampouco era desconhecida. O Facebook nunca explicou por que não havia tomado qualquer ação nos anos anteriores. Também foram expulsos generais, incluindo o comandante do Exército, num conjunto de 484 páginas, 157 contas e 17 grupos que “atuavam de forma coordenada em comportamento inautêntico”.

Mas, quando um tribunal internacional cobrou do Facebook, em 2020, informações que pudessem ajudar a reconstruir o caminho que o discurso do ódio online tomou para terminar em genocídio, a empresa se negou a entregar. O pedido, de acordo com a empresa, era “excessivamente amplo”. É também “intrusivo e oneroso”. Daria trabalho demais.

O Facebook também não informa quantos funcionários compreendem birmanês e são capazes de avaliar o conteúdo publicado.

No país vizinho

Em agosto de 2020, mais ou menos quando o Face se negava a entregar à Justiça dados que ajudassem a compreender o genocídio rohingya, outro monge budista começou a agir não muito longe de Myanmar. Mas, diferentemente de Wirarthu, Luon Sovath precisou fugir de seu país. O Camboja. Conhecido em todo o país, um ávido defensor dos direitos humanos, Luon Sovath foi vítima de uma campanha massiva de desinformação — ele não ameaçava, era ameaçado. Dentre o material que circulou no Facebook a seu respeito estava um vídeo muito pouco nítido que sugeria relações sexuais suas com uma mãe e as três filhas. Não só estaria violando o juramento de castidade como cometendo algo próximo do incesto num país particularmente conservador. A ameaça se mostrou tão relevante que ele teve de deixar o país.

O Camboja é uma ditadura e vem sendo governado, desde 1985, pelo primeiro-ministro Hun Sen, um homem de 69 anos que atuou como soldado durante o genocídio promovido pelo Khmer Vermelho durante a década de 1970. Assim como em Myanmar, por lá a internet é, em essência, o Facebook. A plataforma que todos usam. E, assim como as Forças Armadas de Myanmar, o governo tem um departamento dedicado a produzir conteúdo falso para a rede.

No caso de um dos vídeos envolvendo o monge Luon Sovath, repórteres do New York Times descobriram indícios ligando o material a dois funcionários deste departamento de propaganda.

Advogados de políticos da oposição, nos EUA, tentam já há três anos conseguir dados sobre a compra de publicidade no Facebook, para divulgação de conteúdo pró-governo. Um conjunto de e-mails vazados em 2017 sugerem que, por dia, o Estado gastava US$ 15 mil por dia para atrair visitas para suas páginas. Num país com 15 milhões de habitantes, a página do premiê tem quase 14 milhões de seguidores. Em sua campanha mais recente online, Hun Sen vem promovendo uma campanha de ‘moralização’ das mulheres que usam roupas ‘reveladoras’ online.

Morte africana

O cantor pop Hachalu Hundessa dirigia seu carro, no dia 29 de junho do ano passado, quando um homem se aproximou, disparou e o matou em um bairro periférico de Addis Ababa, capital da Etiópia. Hundessa tinha 34 anos e, por toda vida, alternou a militância política com a carreira de músico. Foi preso aos 17 por sua defesa de autonomia para o povo Oromo, ao qual pertence, e permaneceu nas cadeias da ditadura etíope por cinco anos. A carreira musical veio depois — “ele compôs a trilha sonora da revolução Oromo”, explicou um professor da Universidade Keele, na Inglaterra. “Um gênio lírico que incorporou as esperanças e aspirações do povo.”

Segundo a polícia, o assassino pertencia a sua etnia. O rapaz matou Hundessa porque o cantor se aproximara do premiê Ahmed Abiy, também Oromo, e que hipernacionalistas criticavam por contemporizar com outros grupos. Imediatamente após o assassinato, o Facebook se incendiou em acusações diversas, boatos e incitação. Nas horas seguintes, hordas tomaram as ruas da capital etíope. Propriedades foram destruídas e incendiadas. Houve uma série de linchamentos que terminaram com decapitações públicas.

Apenas um ano antes, em 2019, o corredor etíope Haile Gebreselassie tentou usar sua fama internacional para chamar atenção para outra explosão de ódio na região de Oromia. Ela deixou 81 mortos após informações falsas circularem no mesmo Facebook de que grupos rivais estavam sendo armados para ataques. Gebreselassie, recordista mundial de maratonas em 2008, foi ouvido na época por toda imprensa.

Em 2020, o Facebook dizia ter uma equipe de 100 pessoas responsáveis pela moderação de conteúdo no continente africano. Não revelava quantos compreendiam algum dos mais de 50 dialetos falados na Etiópia. Durante as eleições que ocorreram em junho deste ano no país, a empresa diz ter contratado falantes nativos de oromo, amharic e somali, que de fato são os troncos linguísticos mais importantes. Não afirmou quantos. Entre março e março, de 2020 a 21, o Face afirma ter retirado mais de 87 mil postagens de desinformação no país. O arco cultural do continente africano abarca mais de duas mil línguas.

O ponto

Com muita frequência, o que se publica a respeito de desinformação nas redes sociais trata de Estados Unidos, Europa, ou alguns outros países como o Brasil. O Brasil, noves fora a baixa autoestima local, é um país rico e importante na geopolítica mundial. Por conta de Jair Bolsonaro, tornou-se também um dos focos da imprensa internacional atenta ao drama da recessão democrática que ocorre no mundo.

Myanmar, Camboja, Etiópia e tantos outros não são foco. Em países como estes, as línguas faladas são pouco relevantes na economia mundial. Ninguém as fala com exceção de quem as tem como línguas maternas. Tensões étnicas não são novas em nenhum destes lugares. Ódio, autoritarismo ou violência muito menos. A história é longa. A diferença é a velocidade — de uma hora para a outra, pelas redes, boatos são espalhados espontaneamente ou por meio de uma máquina organizada para isto — e uma explosão se dá.

O Facebook já tem pelo menos um genocídio com seu nome.

A questão é simples: o algoritmo faz discurso de ódio circular com facilidade. Ele, o algoritmo, desmontou como a internet funcionava. Antes, pessoas precisavam buscar a informação que consumiriam. O algoritmo leva informação a elas. A nós. E, invariavelmente, é o tipo de material que atiça conflito. Assim como campanhas presidenciais como as de Jair Bolsonaro e Donald Trump utilizaram a ferramenta para ampliar o impacto de suas mensagens, outros movimentos autoritários no mundo já dominaram a técnica.

E a usam livremente. Muitas vezes, sem os holofotes da imprensa.

Um dia na terra de ninguém do Telegram

“Logicamente ampliamos nossa rede para o Telegram. Não tem censura e tem que ser assim”, disse o presidente Jair Bolsonaro neste dia 7, durante sua tradicional live às quintas-feiras. Em seu canal no aplicativo, o chefe do Executivo compartilha diariamente ações do governo, notícias, opiniões e informações falsas com mais de um milhão de inscritos no chat. A ferramenta de troca de mensagens possibilita a interação por meio de chats privados, grupos ou canais de distribuição de conteúdo – que têm número ilimitado de inscritos.

Com o princípio da mínima moderação, a popularidade do Telegram tem crescido meteoricamente no Brasil. De acordo com a versão mais recente da pesquisa Panorama Mobile Time/Opinion Box sobre mensageria móvel, o aplicativo já está instalado em mais da metade (53%) dos smartphones do país. No último ano, o índice era de 35%. Durante a campanha eleitoral de 2018, 15%. Sem qualquer regulamentação, a ferramenta acende um alerta para a disseminação de desinformação.

“A maioria das redes sociais possui representantes legais no Brasil. Assim, podem ser acionadas em caso de ações suspeitas. Já o Telegram, não. Ou seja, não há a quem notificar, por exemplo, caso sejam identificados disparos de mensagens em massa ou ações realizadas por robôs”, diz o advogado Marcelo Frullani, especialista em direito digital. Há meses, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) tenta contato com a companhia russa para uma parceria de combate às notícias falsas visando a corrida eleitoral de 2022, mas até o momento não obteve retorno. “A criptografia é uma ferramenta aplicada no Telegram e no WhatsApp para justamente garantir a privacidade dos usuários nas trocas de mensagens. No entanto, a partir do momento em que a plataforma permite que milhares de pessoas se reúnam em grupos sem qualquer transparência, desarranja o debate público e enfraquece a democracia”, conclui Frullani.

O que rola por lá

Ali, todos os usuários encontram suas panelinhas. Há grupos públicos formados para trocar ideias sobre música, esportes e política. Aliás, diversos políticos já estão no aplicativo. Neste mês, o vereador Carlos Bolsonaro compartilhou em seu canal oficial no Telegram um vídeo no qual o governador de São Paulo, João Doria, aparece descendo um escorregador. Ele também atacou a mídia brasileira e não deixou de criticar maconheiros e socialistas. “O socialismo é muito bom para o MACONHEIRO e para o esperto dono de BMW. Não é à toa que são favoráveis à liberação das drogas. Quanto menos neurônios, mais fácil de controlar. Enquanto isso o pai inútil se mata de trabalhar para sustentar o revolucionário incendiador”, escreveu em uma das mensagens. Já seu irmão, Flávio, usou a rede para criar uma cortina de fumaça em torno do veto do presidente à distribuição gratuita de absorventes a mulheres que vivenciam a pobreza menstrual. Em uma enquete que traz como resposta as opções “Nenhum” ou “Zero”, o Zero Um questionou: “Quantos absorventes foram distribuídos pelo PT em 14 anos de governo?”. Eduardo, o Zero Três, também analisou o veto: “Além de custar milhões ao dinheiro público, o projeto poderia se tornar crime de responsabilidade” – o que não é verdade.

A trupe Bolsonaro não é a única presente no aplicativo. O ex-presidente Lula, que já prepara o caminho para a campanha eleitoral de 2022, também mantém seu canal no Telegram. Por ali, compartilha figurinhas petistas, fotos antigas e hashtags. Pinta de rosa os anos em que seu partido esteve no comando do país. Também critica as atitudes do atual governo e reforça frases de efeito como “Ai, que saudade do meu ex. Volta, Lula” e “O povo tem memória”. Apesar de terem “grupos de apoio” constituídos por “fãs”, ex-presidenciáveis como Michel Temer e Dilma Rousseff não mantêm canais oficiais na ferramenta.

Além de abrir espaço para políticos, devido à falta de regulamentação, o Telegram também hospeda grupos que disseminam discursos de ódio e perigosas desinformações. Reunindo mais de 26 mil inscritos, o chat “Tratamento Precoce Preventivo” defende o ineficaz “kit covid” e ataca vacinas. Em uma das postagens, o moderador do grupo explica que não o alimenta no Facebook porque têm suas postagens derrubadas na plataforma. “A indústria farmacêutica patrocina a mídia. A mídia faz propaganda para a indústria farmacêutica e isso financia o seu medo. Seu medo financia sua doença. A doença financia a indústria farmacêutica. Qual parte disso você não entende?”, compartilhou. Em outro canal semelhante, chamado de “Antivax”, pessoas que se recusam a se vacinar contra a Covid-19 enviam conteúdos, no mínimo, intrigantes – como o gif do “Edward Gates Mãos de Vacina”. Outros milhares conversam em grupos declaradamente nazistas, racistas e homofóbicos no aplicativo que se tornou terra de ninguém.

Preconceito em modo multiplayer

O mundo dos videogames está cada vez menos complexo e distante do nosso imaginário; mais e mais pessoas jogam ou mesmo assistem aos outros jogarem, colocando termos como cloud gaming e GamePass no vocabulário comum. Você já deve ter ouvido falar na Twitch, não? Só nos últimos sete dias a plataforma de streaming favorita dos gamers já teve mais de 440 milhões de horas assistidas por mais de 2 milhões de usuários – eu, inclusive. Nesta semana ela virou notícia por outro motivo. O Vídeo Game Chronicles revelou um ataque hacker à plataforma, expondo dados de usuários. E por que alguém vazaria tantos dados de uma plataforma tão comum? Para mostrar que comum na Twitch é algo bem distante do prazer dos games.

Lançada em 2011, a plataforma de streaming foi comprada pela Amazon em 2014, tendo como foco os gamers, público complicado e regularmente taxado de “tóxico”. Como em tantas outras redes, o distanciamento e o anonimato servem de proteção a comportamentos machistas, racistas e xenófobos entre gamers. Não à toa, são o principal alvo de grupos neonazistas para angariar “simpatizantes”.

Na Twitch você faz sua stream jogando ao vivo para uma plateia – e isso acontece com pouquíssima regulamentação ou controle. A fim de distribuir seu conteúdo, é possível escolher uma série de hashtags que combinem com o seu público, dentre elas a tag LGBTQIA+. A Twitch a criou para marcar ambientes mais seguros para o grupo e para o streamer se identificar. Agora, o que acontece quando se cria uma hashtag para congregar um público que clama por diversidade dentro de uma plataforma onde o preconceito tem sempre uma vida extra? Não é difícil imaginar. 

Uma das possibilidades disponíveis na Twitch é chamar os seus seguidores para assistir em conjunto a live de outro canal. Era para ser uma coisa boa, um player com muitos seguidores prestigiando outros. Porém, nas mãos dos trolls, o recurso abriu caminho para os hate raids, ataques de ódio em massa a streamers. Um usuário cria incontáveis bots para invadir um canal – normalmente pertencente a não brancos, mulheres ou com a tag LGBTQIA+ –, inundando seu chat com comentários preconceituosos, racistas e denunciando a live por algum motivo para derrubá-las. Não brancos sofreram injúrias raciais, transgêneros foram atacados por grupos homofóbicos, e mulheres, como é absurdamente comum, foram sexualizadas.

A Twitch até reagiu, processando dois usuários que faziam isso com maior recorrência – e que logo retornaram à plataforma com outras contas e novos ataques.

Para quem é alvo contínuo desses ataques, é muito pouco e muito tarde. Assim, alguns streamers decidiram fazer uma greve no dia primeiro de setembro, levando hashtags como #ADAyOffTwitch ao Twitter. Comprovadamente, o dia sem Twitch teve um impacto de 5% a 15% a menos nas visualizações na plataforma

Pois, bem, foi nesse cenário que uma/um hacker vazou todo o conteúdo da Twitch num arquivo de 125Gb no fórum 4Chan. Não se sabe desde quando os dados foram roubados, mas o/a responsável o justificou o vazamento dizendo querer “alimentar disrupção e competição no campo de streaming em vídeo" e porque “a comunidade é uma fossa grotescamente tóxica”. No meio dos streamers, o vazamento não foi uma surpresa. A comunidade já tinha a impressão de que a Twitch não se importava, de fato, com a segurança dos dados.

Dentre as informações mais sensíveis vazadas estão os pagamentos dos criadores parceiros da plataforma desde 2019 até o dia 6 de outubro, data do vazamento. Um site que organizou os pagamentos num formato mais compreensível para o usuário já foi retirado do ar, mas permanece no web archives. Esse vazamento também deixou explícito que a empresa prefere ajudar o alcance e o pagamento de quem já possui uma audiência construída. Quem já rende, passa a render mais, renovando o debate de que o algoritmo de descobrimento da plataforma não ajuda quem está começando.

A relação da Twitch com a mulheres é um capítulo à parte nos vazamentos. Por um lado, análises sendo feitas sobre pagamentos por seguidor revelam que mulheres brasileiras chegam a ganhar 40% a menos que homens. Por outro, desfez o mito de que elas “roubam a cena” na Twitch. Dentre os 100 streamers mais bem pagos, só três são mulheres. E apenas uma não é branca. Quem vazou os dados já disse: essa é só a primeira parte.

É bom que não seja. Racismo, machismo, homofobia e qualquer outro tipo de preconceito não podem ter espaço em qualquer realidade – inclusive a virtual.

Britney está quase free

Tudo estava indo bem na vida da dona do sucesso Baby One More Time (YouTube), até que, em 2008, seu pai, Jamie Spears, alegou um quadro de “demência” e obteve uma medida para cuidar das finanças e carreira da filha. A tutela durou 13 anos. Atualmente Britney Spears tem 39 anos e parece estar chegando ao fim desse pesadelo. A Justiça da Califórnia transferiu a tutela de Jamie para um contador da confiança da cantora e deve, dentro de trinta dias, decidir pela devolução a Britney de sua vida.

O documentário Britney vs Spears, da Netflix, mostra como foi o processo desde que ela passou de atriz-mirim da Disney a estrela mundial até o fundo do poço, quando ela não tinha acesso a cartão de crédito, celular, carro ou até mesmo escolher ter um filho.

Fãs perceberam algo errado com a popstar, mas quem realmente podia dizer algo mais concreto eram os jornalistas, que foram fundamentais para ajudar a subir a hashtag #Free Britney. Uma repórter da Rolling Stones que costuma entrevistar Britney percebeu que a cantora estava agindo de maneira estranha. Estava acuada, com um medo constante e dava a impressão de estar “distante”. Britney era submetida a várias medicações que a deixavam “grogue”.

No documentário entendemos por que Britney desapareceu dos tabloides de forma tão repentina após o ocorrido em 2007, quando raspou todo o cabelo. O pai, a princípio, queria a saúde e o bem-estar da filha. Porém ele viu nela uma máquina de fazer dinheiro e abusou do talento da cantora, encarcerando-a e fazendo com que a filha passasse por louca até que a Justiça determinasse que ela precisava de cuidados especiais.

Britney tem dois filhos, Sean, de 16 anos, e Jayden, de 15, frutos de seu relacionamento com Kevin Federline, com quem foi casada entre 2004 e 2007. A perda de controle sobre a própria vida se estendeu a eles. Ela tem 30% da custódia, ficando os restantes 70% com o pai dos rapazes.

Alívio inicial

No começo, Britney via alguns benefícios da tutela, lidava melhor com o processo de ansiedade, não saia e não tinha tanto contato com paparazzi, conseguia viver uma vida com um pouco mais de privacidade. Em contrapartida, o ônus da tutela começou a deixá-la angustiada. Ela não podia gastar o próprio dinheiro, não podia dirigir, não podia ver as amigas e estava passando por um processo de separação. Quando conseguia escapar de casa, a imprensa sensacionalista a perseguia, e com isso vieram os gatilhos de ansiedade e um isolamento social crescente.

Uma tutela tira do indivíduo o direito de gerenciar a própria vida, e geralmente é aplicada a pessoas incapazes. No entanto, a tutelada compunha canções, lançava álbuns de sucesso e fazia turnês milionárias. Jamie alegava que a filha tinha demência, mas na hora de colocá-la para trabalhar, a vendia como uma superstar.

De acordo com documentos mostrados em Britney vs Spears, Jamie recebia uma quantia de mais de US$ 30 mil para gerenciar a carreira (e a fortuna) de Britney. Enquanto isso, a cantora, que gerava essa fortuna, tinha US$ 8 mil a título de mesada. Um detalhe bizarro é que os advogados contratados por Jamie para mantê-lo no controle sobre Britney eram pagos com o dinheiro dela.

Mas o show tinha que continuar.

Transformaram Britney numa máquina de fazer dinheiro. Ela queria ter mais filhos, mas é claro que isso tomaria tempo de vida que poderia ser “gasto” com produção e execução de turnês mundiais. Por isso forçaram-na a colocar um contraceptivo interno. Britney nunca autorizou este procedimento.

A princesinha do pop viu retirarem sua coroa, seu castelo, seus carros e sua liberdade de ir e vir ou de decidir os rumos da própria vida, como uma pessoa normal.

Mesmo com todos os problemas causados pelo pai, nestes 13 anos de tutela Britney lançou álbuns, se apresentou no mundo inteiro, participou de programas de televisão e arrecadou US$ 68,7 milhões com 79 shows, passando pelo Brasil em 2011.

Só que #FreeBritney ganhou corpo, com a adesão de fãs, da mídia e de celebridades do porte de Madonna. “Devolvam a vida dessa mulher. Escravidão foi abolida há muito tempo. Morte ao patriarcado ganancioso que tem feito isso com as mulheres por séculos. Isso é violação aos direitos humanos. Britney, nós vamos te tirar dessa prisão”, disse a rainha do pop.

Jamie Spears percebeu que seu reinado estava no fim. Ele ainda tentou usar as redes sociais da filha para dizer que “estava tudo bem”, mas não havia escapatória. Em junho de 2021 uma audiência foi marcada, finalmente queriam ouvir o que Britney tinha a dizer. E não era bonito:

“Meu pai me ligou durante um feriado e disse: ‘Sinto muito, Britney, você tem que ouvir seus médicos. Eles estão planejando mandá-la para um lugar em Beverly Hills para fazer um pequeno programa de reabilitação que vamos preparar para você. Você vai pagar US$ 60 mil por mês por isso.’ Chorei ao telefone por uma hora e ele adorou cada minuto.

[...]

“E é por isso que estou dizendo isso de novo dois anos depois, depois de mentir e dizer ao mundo inteiro ‘Estou bem e estou feliz’. É mentira. Eu pensei que talvez se eu dissesse o suficiente... eu estava negando para mim mesma. Estava em choque. Estou traumatizada. Você sabe, ‘finja até conseguir’. Mas agora estou te dizendo a verdade, ok? Eu não estou feliz. Eu não consigo dormir. Estou com tanta raiva que é uma loucura. E estou deprimida. Eu choro todos os dias.”

No início de setembro, Jamie entregou ao tribunal os documentos para abrir mão da tutela e agora é alvo de uma investigação do FBI sobre a gestão da fortuna da filha. Britney pediu que a decisão judicial, marcada inicialmente para o começo de 2022, fosse antecipada para poder se casar com o modelo e atleta iraniano Sam Asghari. Após 13 anos, a estrela está livre do controle do pai e aguarda a hora de reassumir de vez sua vida.

***

Ante a improvável hipótese de o leitor não conhecer o trabalho de Britney Spears, pode mergulhar no seu pop tanto no Spotify (uma playlist completa e uma só com hits) quanto no YouTube.

E antes que a gente esqueça, os mais clicados desta semana:

1. g1: Os memes do dia em que Facebook, Instagram e Whatsapp saíram do ar.

2. Twitter: Marcelo Adnet imitando Bolsonaro mandando mensagem para Zuck.

3. Twitter: E até o Padre Fábio de Mello tomou o Santo Nome para brincar com a queda do Facebook.

4. g1: Morre o ator Caike Luna, o Cleitom de Zorra Total.

5. Mundo mais Tech: Entenda o que é uma Dark Store e por que ela gera reconhecimento de marca.

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