Edição de Sábado: Robin Hood, os três Poderes e Bolsonaro

Em geral, a história da democracia é contada a partir da Atenas de Péricles, ou talvez da experiência de República que viveu a Roma antiga. Mas há outra forma de conta-la, uma que se inicia com o terceiro e último dos reis da dinastia de Angevin. Para a história ele foi lembrado como King John. Sem número. Era tão odiado em vida que, desde seu governo, nenhuma das dinastias reais inglesas seguintez teve a coragem de batizar um possível herdeiro de John. O nome, proscrito. E foi de todo acidental — John, o quarto e último dos filhos de Henry II sequer era para ser rei. Seu pai teve de brigar com os outros filhos para poder dar ao caçula alguma terra e, por isso mesmo, ele teve em vida o apelido John Lackland. João Sem Terra ou, como foi conhecido na corte, Jean sans Terre. Eram de origem francesa, os condes de Anjou, quando assumiram o trono dos sete reinos que formaram a Inglaterra. Foi um personagem histórico tão marcante que é o vilão da mais conhecida lenda do folclore local. O vilão de Robin Hood. Pois é na história deste rei que começou a ideia da separação entre os três poderes.

As agruras de King John surgiram porque, diferentemente do pai e do irmão mais velho, Richard I, ele era mau militar. O contraste não podia ser maior. Porque o rei Ricardo, um homem profundamente religioso, esteve entre os comandantes da Terceira Cruzada. Após uma sequência de sucessos em batalha, estabeleceu uma trégua com Saladim, sultão de Egito, Síria, um bom naco do atual Iraque, Iêmen e, claro, Jerusalém. Richard Coeur de Lion, Ricardo Coração de Leão, tanto enfraqueceu seu inimigo na Cidade Santa que conseguiu negociar permissão para que peregrinos católicos pudessem visitar novamente o local onde morreu Jesus. Reinou entre 1189 e 1199 — dez anos, até morrer aos 41, vítima de uma infecção por flechada no ombro. Governou um vasto território que incluía a atual Inglaterra, a Irlanda e metade da França. E este pedaço continental do reino, o canto de onde vinha a família dos senhores de Anjou, foi perdido em batalha pelo rei João. Uma perda tão grande de terras, derrota que deixou o país muito endividado, e forçou João Sem Terra a impor altos impostos.

Na lenda, Robin Hood é um homem generoso, leal súdito de Ricardo Coração de Leão, que se revolta contra o príncipe João Sem Terra por conta dos altos impostos que cobra do povo. É possível que o personagem da lenda tenha sido inspirado por Robert Fitzooth, senhor de Locksley, um feudo na região de Nottinghamshire. A tese é questionada, mas faria sentido. Pois foi no reino de King John que ocorreu a Primeira Guerra dos Barões. E este é o ponto chave para compreender a conexão do simpático bandoleiro das matas de Sherwood com a democracia e a separação de poderes. Os barões eram os senhores feudais, os donos de terra no reino e, por isso mesmo, os principais pagadores de impostos. Quando não pagavam, eram presos, às vezes torturados. Pois se revoltaram contra King John por considerar seu governo abusivo. Vem de uma tentativa de acordo entre as duas partes a Magna Carta, o primeiro arremedo de Constituição moderna, onde nasceram direitos considerados, hoje, essenciais. O rei não poderia ordenar a prisão injusta de nenhum dos seus barões. Eles teriam direito a um procedimento legal quando acusados de crimes. E quaisquer novos impostos teriam de ser aprovados pelo colegiado de barões. É a origem da atual Câmara dos Lordes, também a primeira tentativa na Europa pós-Roma de submeter o rei à temperança de um Parlamento.

Não foi uma conquista fácil — nenhum dos sucessores de King John gostou da ideia de ver seu poder absoluto de alguma forma questionado. A partir dali, quase que ao ritmo de duas vezes por século, algum conflito houve entre reis e seus barões. O ápice ocorreu em 1649, quando após uma destas guerras o Parlamento condenou à morte, por traição, Charles I. Que os barões pudessem ter poder para tanto mostra o quanto a Inglaterra já estava distante do absolutismo que marcava a Europa continental àquela altura. Ainda assim, a decapitação de um rei em praça pública por abuso de poder marcou o tempo e dois filósofos. Um, Thomas Hobbes, já era um senhor grisalho e publicou dois anos após um ensaio pessimista argumentando, pela primeira vez, que talvez não fosse escolhido por vontade divina, mas ainda assim era bom que houvesse um rei com poder absoluto. Só isso impedia a população de se entregar à livre matança. O outro, ainda saindo da adolescência, foi John Locke. Demorou quatro décadas para que publicasse sua visão de liberdade religiosa, separação de Igreja e Estado, direito à propriedade e, talvez a mais ousada das ideias, o conceito de que o governante só poderia ser legítimo se tivesse o consentimento dos governados.

E, ali no meio, Locke observou que para a ideia de consenso dos governados existir era necessário o poder separado em dois — o Rei e o Parlamento. Executivo e Legislativo. A perigosa ideia que nasceu de King John, o rei do nome proscrito.

Não foi Charles-Louis Secondat, o barão de Montesquieu, quem falou primeiro em separação de três poderes. O velho juiz francês, que considerava suas ideias perigosas o suficiente para só publicá-las como anônimo, nasceu no ano em que Locke publicou sua obra prima — 1689. Após ter vivido alguns anos na Inglaterra, saiu de lá tão bem impressionado que construiu toda uma tese sobre o sistema ideal de governo em cujo centro estava este conceito da separação entre não dois, mas três poderes.

Seu raciocínio era límpido. Se a mesma pessoa controla tanto a produção de leis quanto sua execução, o passo para publicar leis que permitam a tirania é fácil. Se o legislador é também juiz, a tentação para fazer leis de forma a condenar inimigos está dada. Se o juiz for também o chefe do Executivo, sair prendendo os desafetos é trivial. “A liberdade terminaria”, argumentou o filósofo francês, “se o mesmo homem ou o mesmo colegiado, não importa se composto por nobres ou plebeus, exercitasse os três Poderes — o de aprovar leis, o de executar resoluções públicas e o de julgar as causas dos indivíduos.” Era justamente uma liberdade que não existia. Seu O Espírito das Leis foi publicado em 1748. Quando os americanos declararam sua independência, em 1776, já tinham em mente um sistema de governo inspirado por, principalmente, Locke e Montesquieu. Ideias tão fortes, tão poderosas, que em menos de um século levaram o mundo do absolutismo à primeira experiência de democracia liberal.

E o Brasil...

Ao convocar para uma manifestação contra o Congresso Nacional, o que o presidente Jair Bolsonaro fez, esta semana que passou, foi justamente agredir o espírito de Locke e o princípio de Montesquieu. A situação que levou a esta agressão, porém, está no centro de um dos debates que existem hoje em ciência política. Um debate que questiona o velho barão francês. Dois professores da Escola de Direito de Yale, uma das três melhores dos EUA com Stanford e Harvard, estão à frente desta discussão. Um, morto em 2013, era o teuto-espanhol Juan José Linz. O outro, de 77 anos, é Bruce Ackerman.

Há um cenário que Linz descreveu e, em sua homenagem, foi posteriormente batizado de Pesadelo Linziano (PDF). É o que acontece quando se forma um impasse entre o Legislativo e o Executivo.

O argumento se dá a partir de uma comparação entre os modelos britânico e americano. No Reino Unido, a separação entre Legislativo e Executivo não é plena. O Poder Executivo está a cargo do primeiro ministro e seu gabinete, todos membros do Legislativo e eleitos indiretamente pela maioria dos parlamentares. Neste cenário, impasses são raros. Quando chega a um ponto em que o chefe do Executivo não pode contar mais com maioria no Parlamento, ele renuncia ou corre o risco de se submeter a uma nova eleição, que tem o poder de convocar. A população vai às urnas definir quem tem maioria no debate. No sistema americano, o primeiro de uma democracia moderna, presidente e parlamentares são eleitos separadamente. Como os Poderes são equivalentes e os pesos e contrapesos não são suficientes para arbitrar impasses, democracias travam.

O Brasil está vivendo um Pesadelo Linziano. É um fenômeno político que tem ocorrido com alguma frequência, em geral em repúblicas que adotaram o modelo americano de democracia. Nosso caso.

Para Bruce Ackerman, é preciso voltar aos princípios que moveram Montesquieu. A lógica da separação dos poderes existe para promover três ideais. Governança profissional, legitimidade democrática e a proteção de direitos fundamentais do cidadão. O profissionalismo da administração, ele sugere, é garantido por um corpo de funcionalismo público técnico, selecionado por critérios claros e que esteja de alguma forma protegido de um governante desequilibrado. O Executivo dá a direção das políticas públicas, que são gerenciadas por este corpo. Um ou outro funcionário pode ser demitido, mas não todos. Os outros dois ideais, legitimidade e proteção de direitos, são mais bem garantidos se há alguma fluidez entre Legislativo e Executivo, como no modelo britânico. Porque, em caso contrário, se grupos políticos distintos e adversários controlam cada qual um dos Poderes, o Executivo é tentado a governar por decreto na melhor das hipóteses, ou romper a Constituição levando a uma tirania — justamente aquilo que Montesquieu buscava evitar.

Trata-se, em essência, de um debate sobre Presidencialismo e Parlamentarismo.

Este não é um debate sobre o qual há consenso. E um dos defensores do ponto de vista contrário é outro professor da mesma Escola de Direito de Yale. Steven Calabresi, um jurista conservador cujos avós lutaram na resistência italiana ao fascismo, lembra que a ideia da Separação dos Três Poderes foi fundamental a um ponto. A doutrina que prevalecia antes era a do Um, dos Poucos e dos Muitos (PDF). O poder era distribuído do Rei, aos Nobres, aos Plebeus — o Rei, a Câmara dos Lordes, a Câmara dos Comuns, numa estrutura hierárquica. Quando, na fundação dos EUA, prevaleceu o conceito de que todos os homens são iguais, foi a separação de Poderes que pôs de pé um novo regime. Para Calabresi, novos países na Ásia vêm adotando o sistema presidencialista sem passar perto do Pesadelo Linziano. As crises teriam mais a ver com cultura do que com o sistema. Entre seus exemplos, num artigo de 2001, estavam Coreia do Sul e Filipinas.

Com o presidente Rodrigo Duterte, as Filipinas hoje vivem o Pesadelo Linziano.

Talvez não seja justo definir o debate como se fosse apenas sobre Presidencialismo versus Parlamentarismo. É, na verdade, sobre níveis separação. Ao calibrar estes vasos comunicantes, diminui-se as chances do tipo de impasse que leva ao risco de colapso constitucional. Se o Pesadelo Linziano de fato é um fenômeno que tende a se repetir quando a separação é absoluta, só há uma forma de evitá-lo: com um chefe de Executivo cuja autoridade esteja diretamente ligada à base que tem no Parlamento. O chefe não tem escolha que não basear sua autoridade na representação parlamentar que tem.

Aliás... Neste vídeo, Terry Jones, do grupo Monty Python, conta a história da Magna Carta e do pior rei que a Inglaterra teve.

A caixa preta das abas do gmail e a campanha presidencial americana

Foi ao ar essa semana o Markup, a esperada ONG de jornalismo que pretende investigar as práticas das grandes empresas de tecnologia do mundo. Com um aporte de US$ 20 milhões recebido em 2018, viveu um 2019 turbulento. Em abril, passou por um ‘golpe’ em sua redação, quando Julia Angwin, co-fundadora e editora-chefe, foi abruptamente demitida por seus outros dois co-fundadores: Jeff Larson e Sue Gardner. Larson assumiu o conmando, enfrentando uma série de pedidos de demissão de jornalistas em apoio a Angwin. Quando maio chegou, os dois sócios deixaram a empresa, abrindo caminho para a volta de Angwin em agosto, culminando com o lançamento agora.

Em uma de suas primeiras matérias, Markup busca um ângulo pouco explorado no impacto de redes sociais em campanhas políticas. Como o algoritmo do Gmail, que seleciona em que aba cada mensagem cai, pode estar afetando a campanha presidencial americana? Para o teste, criaram uma conta nova no sistema, utilizando um número novo de telefone e um navegador TOR, que anonimiza a navegação, de forma a não passar nenhuma informação sobre preferência política para o algoritmo. Inscreveram então esse email em diversas listas de envio de mensagens: 16 de candidatos à presidência de ambos os partidos, candidatos a algumas cadeiras em que há mais disputa no Congresso, e de uma série de diferentes grupos de interesse. Em quatro meses, receberam mais de 5 mil mensagens de 171 diferentes grupos. Descobriram que cerca de 90% dos emails de candidatos à presidência foram remetidos para a aba de Promoções. Entre os candidatos, a diferença foi grande. Pete Buttigieg, por exemplo, conseguiu que 63% de suas mensagens chegasse à aba principal, 28% foram consideradas SPAM. Dos democratas, que ainda estão na corrida, o segundo melhor foi Bloomberg, que conseguiu entregar na aba principal 17% de suas mensagens, com o resto todo indo para promoções, e nenhuma para o SPAM. O agora favorito Bernie Sanders teve apenas 2% de suas mensagens chegando na principal, com 96% em Promoções e outros 2% no SPAM. Já Biden e Warren não tiveram nenhuma na principal, cerca de 85% em promoções, e 15% em SPAM. Enquanto isso, Donald Trump, não enviou nenhum email durante o período pesquisado.

O que ainda fica de dúvidas é se parte desse melhor resultado de algumas campanhas não foi causado por algumas delas estarem seguindo práticas recomendadas contra SPAM e terem configurado toda a sopa de letrinhas que garantem uma boa entrega de newsletters.

Disney surpreende em escolha de sucessor de seu CEO

E a Disney confundiu os investidores com o anúncio da sucessão de seu CEO. Todos esperavam, depois de a empresa ter passado os últimos três anos falando de um futuro assentado no streaming, que o escolhido serua Kevin Meyer, executivo que comanda a divisão de produtos para o consumo da empresa. Meyer liderou o bem sucedido projeto de lançamento do Disney+, que conseguiu em apenas 3 meses quase 30 milhões de assinantes. Para a surpresa de todos, o escolhido foi Bob Chapek, que comanda a divisão de parques temáticos. Chapek assumiu o posto imediatamente, substituindo Bob Iger, no comando desde 2005. Iger comandou a estratégia de aquisições de marcas como Marvel e Star Wars. Ele continuará como presidente do conselho de administração. As ações do conglomerado caíram, por cont de dúvidas sobre a estratégia.

Mudanças climáticas na Antártica

Fevereiro foi o mês no qual as mudanças climáticas ficaram mais aparentes. O motivo é a onda de calor de nove dias na Antártica, registrando sua temperatura mais quente de todos os tempos: 18,3°C. Algumas consequências imediatas foram o derretimento de 20% de uma ilha na região e o fenômeno neve de framboesa, criado por uma alga quando exposta a temperaturas mais altas. A neve fica vermelha.

A Península Antártica é a região que aquece mais rapidamente no mundo. Acompanhar as mudanças no continente significa entender o futuro do planeta. Embora pareça estar no fim do mundo nos mapas, ela é o centro dos oceanos, responsável pela circulação da água. A taxa em que seu gelo derrete determinará se veremos 50 ou 100 cm de aumento do nível do mar até o final do século — que pode ser a diferença que determinará se cidades baixas como Miami e Bangkok sobreviverão ou não. É que 70% da água doce do mundo e 90% do gelo estão na região.

Se todo o continente derretesse completamente, o nível do mar global aumentaria em 60 metros.

Um importante ator para compreender as mudanças no continente são os pinguins. Por serem mais fáceis de serem monitorados, eles funcionam como bioindicadores do ecossistema do Oceano Antártico. Eles ajudam, por exemplo, a determinar a disponibilidade de krill. Esse pequeno crustáceo, parecido com um camarão, é a espécie mais abundante do planeta e a base da cadeia alimentar do oceano. E o bicho se nutre do gelo do mar. Assim, o derretimento das geleiras significa menos alimento para krills, portanto para pinguins e inúmeras outras espécies, como baleias e focas. Com o verão na Antártica durando 90 dias a mais do que em 1979, o cenário não é otimista: as colônias de pinguins caíram mais de 75% nos últimos 50 anos.

Para os cientistas, as formas como as espécies da Antártica estão se adaptando (ou não) às mudanças climáticas são fortes indicativos do que está por vir para os humanos nas próximas décadas. E o caminho não é muito bom: se o aquecimento mundial ficar limitado a 2°C até o final do século, como previsto no Acordo Climático de Paris, a população de pinguins vai diminuir apenas 44%. Mas se continuar na trajetória atual, esse número chega a mais de 80%, até desaparecer em 2100.

Veja como a Antártica mudou em 25 anos.

E os mais clicados dessa curta semana:

1. BR Político: Bolsonaro manda vídeo por Whatsapp convocando para ato contra o congresso.

2. Youtube: Meio em vídeo: Mas, afinal... Por que a ação do presidente é golpista?

3. CNN: Uma galeria de fotos de Maria Sharapova, que anunciou essa semana sua aposentadoria das quadras.

4. Ars Tecnica: Um repórter de tecnologia tenta roubar uma fruta para testar o algoritmo do novo supermercado automatizado da Amazon em Seattle.

5. Netflix: E finalmente podemos ver o que mais está fazendo sucesso no serviço de streaming.

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