Edicão de Sábado: A noite dos generais

Momentos chaves da história brasileira são marcados por um brado ou uma frase, algo dito enquanto o curso dos acontecimentos seguia e que depois, quando visto já no passado, se mostrou síntese. É o grito de “Independência ou Morte”, ou o “Saio da vida para entrar na história”. O movimento que depôs João Goulart, na madrugada de 2 de abril de 1964, tem uma marca destas. Uma sessão conjunta do Congresso Nacional, comandada por Auro de Moura Andrade, presidente do Senado, ouviu a leitura de uma carta que comunicava a ida do presidente da República para o Rio Grande do Sul, onde planejava resistir. Auro então comunicou aos parlamentares, entre vivas e vaias: “Declaro vaga a presidência da República.” O deputado Tancredo Neves se levantou de presto. “Canalhas!”, gritou. “Canalhas!” A ofensa, assim dobrada, entrou para a mitologia do Congresso e sempre, em momentos conturbados, há um parlamentar que a recupera. Nesta semana que antecedeu mais um aniversário da instauração do Regime Civil-Militar, a polêmica tomou as redes e duas versões entraram em conflito. No centro, duas questões. Golpe ou revolução? Havia um movimento em curso para tornar o Brasil uma segunda Cuba ao qual os militares se impuseram?

A documentação permite encontrar respostas claras para ambas as perguntas. Mas não necessariamente agradam a todos. Sim, foi um Golpe de Estado. Não havia, na Carta de 1946 vigente, qualquer dispositivo constitucional que autorizasse a destituição do presidente da República naquelas condições. Em sendo ilegal, foi um Golpe. Mas nem Jango, nem a esquerda, estão isentos de responsabilidade.

O mais completo livro que conta a história do Golpe de 1964, narrando cada instante daqueles março e abril, é A Ditadura Envergonhada (Amazon), o primeiro dos cinco volumes da série As Ilusões Armadas, do jornalista Elio Gaspari.

Em grande parte, a crise ocorreu por conta de uma bizarra característica da Constituição de então. As eleições para presidente e vice-presidente eram separadas. E assim foi que, em 1960, um populista de direita — Jânio Quadros — foi eleito presidente com tendo Jango, um velho getulista de esquerda, na vice. Jânio renunciou repentinamente após sete meses no cargo, enquanto Jango estava na China. Os ministros militares, porém, não queriam lhe dar posse. Desconfiavam que tinha ligações com o Partido Comunista. O impasse foi resolvido com a aprovação de uma emenda constitucional que tornou o Brasil parlamentarista. Por um ano e meio, o país teve primeiro-ministro, até que um plebiscito reinstituiu o poder do presidente sobre o Executivo. Em 6 de janeiro de 1963, a população brasileira deu uma clara vitória para João Goulart: 82% dos eleitores votaram contra o parlamentarismo.

A última pesquisa do Ibope antes do Golpe, realizada dias antes da deposição, indicava que 15% consideravam seu governo ótimo; 30%, bom; e 24%, regular. Apenas 16% viam a administração como ruim ou péssima. O Ibope também descobriu que 59% dos brasileiros eram favoráveis às Reformas de Base, o plano que mais assustava a direita. Outra pesquisa, esta feita em oito capitais, ouviu que 49,8% dos entrevistados cogitaria votar nele caso a Constituição fosse emendada para permitir reeleição.

Falava-se, no governo Jango, e abertamente, sobre uma emenda assim. E não poucos temiam que ele se aproveitasse de uma crise para dar um Golpe similar ao impetrado por Getúlio, em 1937.

Não era, o seu, um governo particularmente hábil. Jango havia perdido o controle da economia. A inflação em 1962, lembra Gaspari, foi de 50%, subiu para 75% no ano seguinte e, em 1964, as projeções levavam a taxa anual para 140%. A maior do século 20 até ali. Ocorreram 154 greves em 1962, 302 e 63. Se ministros da Fazenda ficavam, em média, 20 meses no cargo, no governo João Goulart mal passava dos seis meses. Para muitos, principalmente nas classes médias de Rio e São Paulo, entre empresários e banqueiros, na imprensa, e com parte dos militares, a impressão é de que o presidente fazia o país rumar rapidamente para o caos generalizado.

Jango não tinha o carisma de Getúlio Vargas, e uma certa timidez tolhia sua capacidade de levantar multidões. Mas, cria de Vargas, vinha da mesma tradição do populismo trabalhista. Não tinha nada de comunista. Ele teria, como Vargas teve, flexibilidade para rumar para a direita caso a situação política exigisse. Só que, num ambiente em que militares haviam tentado impedir sua posse e a elite econômica virava as costas para ele, suas possibilidades de movimento diminuíram. Só encontrou apoio para se firmar na esquerda.

E esquerda, naqueles princípios de anos 1960, queria dizer muitas coisas. O PSB era um partido democrático. Com os comunistas o jogo era mais complexo. Em 1956, Nikita Krushev denunciou os crimes de Josef Stalin, na União Soviética, moderando o Partido Comunista russo. O PCB, liderado por Luís Carlos Prestes, não só acompanhou a decisão de Moscou como foi além. Mudou seu estatuto para retirar referências ao marxismo-leninismo e se afastou da defesa revolucionária. O objetivo, completado em 1961, era sinalizar para a Justiça Eleitoral que não estava mais sob tutela soviética e gostaria de participar legalmente do jogo partidário. Não veio sem briga — um grupo, liderado por João Amazonas, fundou um novo partido, o PCdoB. Eles defendiam um levante, uma revolução. Mas sequer conseguiam ter um diretório mínimo que fosse em todos os estados do país.

Era uma esquerda muito dividida, quase sempre em grupos mínimos que se desentendiam. E, no entanto, alguns assustavam a classe média. As radicais Ligas Camponesas, no Nordeste, eram míticas — mas não reuniam mais do que dois mil homens, desorganizados. O PCdoB era ainda menor. O PCB tinha estrutura, até 40 mil militantes, quase nenhum com treino militar, e nenhum interessado em revolução.

A Revolução Cubana, porém, era recente de 1959. Nos EUA, ainda predominava a Teoria do Dominó. O Departamento de Estado acreditava que onde um país cai para o comunismo, ameaçados ficam os vizinhos, que vão caindo sucessivamente. Foi por esta razão que os americanos se embrenhavam cada vez mais nas matas do Vietnã. Para impedir o que viam como uma possível perda de todo Sudeste asiático. Em Washington, formou-se a convicção de que instável como era o governo Jango, e com sua inclinação cada vez maior à esquerda, havia o sério risco de o presidente dar um Golpe, o Brasil seguir Cuba, e assim desmoronar peça por peça a América Latina toda. Lincoln Gordon, o embaixador americano no Brasil, incentivou ativamente uma conspiração.

É neste cenário que 1964 abriu. João Goulart se convenceu de que precisava abraçar cada vez mais a esquerda. Em 13 de março, fez um grande comício na Central do Brasil, no Rio, defendendo Reformas de Base que incluíam distribuição de terras improdutivas para trabalhadores rurais, valorização dos professores e combate ao analfabetismo, maior ação sobre remessas das multinacionais, reordenação do espaço urbano, estender a analfabetos e militares de baixa patente o direito ao voto, legalizar o PCB e uma intervenção nos bancos. Quando, no dia 24, reuniu-se com dois mil marinheiros de baixa patente que estavam amotinados, disparou os alertas entre generais. No dia 30, se encontrou com sargentos. Jango estava sinalizando que queria o apoio de praças e oficiais inferiores para evitar um Golpe Militar. Os oficiais superiores viam, ali, incentivo à insubordinação.

O presidente tinha alguma cautela. Nos comandos militares mais importantes estavam homens em que confiava, incluindo o general Amaury Kruel, do II Exército, em São Paulo. A maioria daqueles em que não confiava estavm em cargos burocráticos — com uma exceção. O general Olímpio Mourão Filho, comandante das tropas sediadas em Juiz de Fora, decidiu por conta própria colocar na rua o movimento militar sobre o qual já se conspirava há muito. Pretendia, assim, lidera-lo. Mourão, que não tem qualquer relação com o vice-presidente Hamilton Mourão, havia sido fascista, comandante do serviço secreto da Ação Integralista Brasileira, durante os anos 1930. Nesta função, falsificou um documento que seria um projeto comunista de tomada de poder no Brasil. O Plano Cohen foi a desculpa usada por Getúlio para dar o Golpe do Estado Novo, em 1937. Segundo o general, a intenção original era fazer um jogo de guerra, imaginar como os comunistas poderiam tomar o país. Perseguiu a possível revolução marxista toda a vida. Em 31 de março, ligou para quem pôde avisando que suas tropas estavam a caminho do Rio de Janeiro com o objetivo de depor o governo.

Num tempo sem internet e no qual mesmo a rede de telefonia era precária, por mais de um dia acreditou-se que soldados marchavam de Juiz de Fora para o Rio. Não estavam: um coronel após o outro desobedeceu as ordens do general, recusando-se a pôr os soldados em movimento. Mas como circulava que ele estava a caminho, os principais conspiradores, o marechal Humberto Castello Branco e o general Arthur da Costa e Silva, buscaram a clandestinidade, escondendo-se em apartamentos para não serem presos, enquanto tentavam angariar apoio. Pelo menos duas pessoas — Tancredo e o general Kruel — procuraram Jango, tentando convencê-lo a mover-se para o centro, acalmar os ânimos. Até a noite de 31, nenhum disparo havia sido feito, não havia grandes movimentações militares e, ao que tudo indicava, o Golpe não ocorreria.

Visto de tantas décadas depois, fica claro que se Jango houvesse moderado o discurso, teria possivelmente sobrevivido politicamente e permanecido no governo. Mas não o fez. Na confusão do dia 1º, um dia que se arrastou lento, com trocas de telefonemas, boatos e imensa confusão, Kruel decidiu apoiar o levante militar. O presidente optou por viajar para Porto Alegre liderar a resistência. Mas os comunistas não resistiram, os militantes brizolistas tampouco, nem mesmo as tropas legalistas — que haviam em razoável quantidade. E sua ausência de Brasília abriu espaço para que, no Congresso, o velho reacionário Auro de Moura Andrade o depusesse sem qualquer argumento legal.

Na madrugada do dia 2, após três dias exaustivos de articulações frustradas, restou a Tancredo gritar “Canalhas!” Começava ali a ditadura.

Ouça: a sessão do Congresso que depôs João Goulart, em áudio. Longe dos microfones, não se ouve o grito de Tancredo, apenas as vaias dos parlamentares.

Galeria: Nos 54 anos do golpe militar, quinze fotos de arquivo lembram o período.

Acervo de documentos da ditadura militar conta histórias de músicas esquecidas

O acervo de documentos da ditadura militar, digitalizado pelo Arquivo Nacional, é de valor fundamental para a preservação da história do país. Nas milhares de caixas, digitalizadas entre 2015-2017, há toda a leva de letras musicais que foram submetidas à censura entre 1964 e 1985. No total, são 13.743, e mais da metade está disponível para o público no site da instituição. Cerca de 1.500 eram sambas de compositores como Candeia, Martinho da Vila, Leci Brandão e Nei Lopes.

Entre eles está um jovem Paulinho da Viola inspirado no cordões de ouro, camisas coloridas e bota cavalo-de-aço de um percussionista talentoso conhecido como Chaplin. Seus visual destoava dos sambistas da época. Foi para ele que Paulinho compôs o samba de breque Meu sapato, que acabou sendo a única música vetada da sua carreira. “Os censores implicaram com tudo, mas principalmente com os trechos:

Um barato
Meu sapato
Bico chato
De puro aço
Inoxidável
Que espanta os ratos
Desperta os rotos
Desgosta os retos
De bico estreito com suas meias
Botões de ouro, com suas siglas
De orgulho e amargura
Sempre voltados para o passado

De acordo com a avaliação, a letra ‘dá margem a interpretações dúbias, podendo ser uma alusão ao militarismo’. A música acabou tendo o título alterado para Meu novo sapato e foi gravada por Paulinho no álbum Memórias cantando (1976) com mais de dez versos alterados ou novos.

Pra ler com calma… Uma série de reportagens do Globo conta as histórias de bastidores destas canções, as circunstâncias em que se deram os vetos e a reação dos compositores ao ver esses documentos originais pela primeira vez.

São as águas de março fechando o verão…

São as águas de março fechando o verão…Pra se despedir do mês, uma playlist cheia de bossa nova. Amanhã vai ser outro dia reúne clássicos interpretados por Elis Regina, Secos e Molhados, Chico Buarque, e até Maria Rita e Céu. São 176 músicas; algumas escolhidas falam abertamente sobre censura, caso de Apesar de você, e outras apenas refletem a inquietude do Brasil naquele contexto e em dias mais recentes.

Há 164 anos nascia Vincent Van Gogh

Há 164 anos, no dia 30 de março de 1853, nascia Vincent Van Gogh, o gênio que não conseguia se encaixar em lugar nenhum. O pintor ficou ali no meio, no espaço indefinido entre o pós-impressionista e o pré-modernista. E essa sensação de não-pertencimento, uma constante em sua trajetória, já rendeu material suficiente para as mais diversas narrativas. Para celebrar seu aniversário, selecionamos um filme, um livro e um vídeo.

Na Netflix, ainda dá tempo de assistir o deslumbrante e premiado Com Amor Van Gogh (trailer). Estreando a técnica da animação a partir de pinturas a óleo, o filme segue o mesmo estilo do homenageado e concorreu ao Oscar de melhor animação, em 2018.

Pra ler, a biografia Van Gogh: A vida (Amazon) é amparada pela mais ampla documentação já reunida sobre o pintor holandês. São mais de mil páginas que abordam as referências estéticas, literárias e religiosas que definiram seus trabalhos.

E posto que é sábado, trechos do episódio clássico de Doctor Who, quando os viajantes no tempo Doctor e Amy levam Van Gogh — que só vendeu uma pintura durante toda a vida — para ver sua obra exposta no museu D’Orsay, na Paris de 2010.

A verdade sobre o Wasabi

Você sabia que o wasabi que comemos nos restaurantes japoneses, não é wasabi, mas sim uma mistura de raiz forte, mostarda e corante? Pois é. O wasabi verdadeiro é uma planta extremamente cara e cujo quilo chega a custar mais de R$ 1.000. Quase toda a produção ainda é cultivada usando técnicas milenares no Japão. Delicada, a planta precisa de uma corrente de água fresca constante passando pelas raízes. A Atlantic produziu um curta documentário que conta a história de Shigeo Iida, um japonês de 75 anos que cuida desde jovem da produção de wasabi na fazenda da família, que tem passado de pai para filho há 8 gerações. Seu neto já foi escolhido e está sendo treinado para herdar a responsabilidade. Assista, são pouco mais de 6 minutos, falado em japonês, com legendas em inglês.

Habilidades digitais da população brasileira

O brasileiro tem vocação digital. Essa é a principal mensagem de um novo estudo publicado por Google e McKinsey sobre as habilidades online da população brasileira. Vale a leitura completa, disponível na íntegra e em português. Mas destacamos alguns pontos:

Sete em cada dez brasileiros está conectado à Internet e acessa alguma rede social. 67% da população possui smartphone e gastamos em média 9 horas por dia online. O consumo de vídeo está explodindo, usamos a rede pesadamente para comunicação e socialização. Somos a quarta maior população digital do mundo mas, apesar disso, estamos apenas em oitavo entre os clientes de e-commerce — apenas em vigésimo em penetração. O potencial é alto, mas aproveitamos pouco.

As desigualdades nas habilidades digitais espelham as desigualdades de gênero, raça e idade que ainda são muito grandes no Brasil. Em 2018, as mulheres corresponderam a apenas 15% das inscrições para a carreira de Ciências da Computação, na USP. Vale lembrar que 95% dos desempregados brasileiros pertencem às classes C/D/E, que são justamente os mais afetados pela desigualdade digital. Uma redução pode gerar um impacto imediato de até R$ 380 na renda mensal de cada indivíduo, com potencial de adicionar US$ 70 bilhões ao PIB brasileiro.

É possível iniciar um processo assim. A cidade de Nova York começou há cinco anos um esforço nessa direção com o programa CS4All (Ciência da Computação para todos). O objetivo é garantir que todos os alunos das escolas públicas tenham aulas da disciplina. O programa é uma parceria público privada, financiada por doações de empresas e com forte apoio do prefeito. O programa já passou das fases iniciais com pilotos em algumas escolas e está agora treinando cinco mil professores para expandir sua abrangência. Um dos focos é promover a diversidade, levando programação para minorias e incentivando mulheres a entrarem na área. Os resultados já começam a aparecer. O número de meninas novaiorquinas que passam na prova avançada de ciência de computação chamou até mesmo a atenção do jornal de oposição ao prefeito.

E essa semana, os mais clicados foram:

1. Youtube: Enquanto o Galaxy Fold não chega ao mercado, robôs passam o dia testando a resistência da dobra do aparelho.

2. Estadão: E em meio à crise com a câmara, Bolsonaro resolve tirar uma manhã para ir ao cinema com Michelle.

3. El País: Uma galeria sobre o novo Museu Nacional do Catar, projetado pelo arquiteto francês Jean Nouvel.

4. Omelete: Novos cartazes de Vingadores: Ultimato.

5. Twitter: Fazendo móveis com shapes antigos de skate.

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