Edição de Sábado: Um Jesus Possível

É tradição das revistas, quando se aproxima o Natal, botar Cristo na capa e anunciar o Jesus histórico definitivo. Mas há limites para a ciência e a verdade é que muito pouco podemos falar sobre este personagem que definiu o Ocidente nos últimos 21 séculos. O que existem são fragmentos, um quebra-cabeças por montar no qual faltam muitas peças. Neste Natal de 2018, o Meio propõe um caminho diferente: não o Jesus histórico e sim um Jesus histórico. Uma dentre muitas versões possíveis. Porque mais interessante é compreender os caminhos que os estudiosos seguem para construir teorias a respeito de quem pode ter sido o homem.

John Dominic Crossan nasceu na Irlanda, em 1934, filho de uma família profundamente católica. Quando se mudou para os EUA, em 1950, já havia mergulhado na vida religiosa. Formou-se padre ligado à pequena Ordem dos Servos de Maria, estudou teologia, e acadêmico buscou mestrado americano, doutorado irlandês, post-doc em Roma. Aos poucos, já nos anos 1960, a Terra Santa o atraiu e, lá, não uma vida de teologia, mas o fascínio da arqueologia. Tinha quase vinte anos de sacerdócio quando percebeu que a vocação se derretia perante o cientista. Buscava o homem, Jesus, não mais o filho de Deus. Lhe interessava entender quem era aquele carpinteiro, como seus contemporâneos o viam e compreendiam. Em 1969, Crossan deixou a batina, casou pela primeira vez, e tornou-se um dos mais importantes historiadores do cristianismo nascente da segunda metade do século 20. É um dos dois fundadores do Jesus Seminar, um influente grupo de estudos americano dedicado a Jesus, o homem.

Cada historiador tem seu método. A teoria a respeito de Jesus defendida por Crossan nasce da separação entre texto e contexto. Antes de mergulhar nos textos do tempo, aqueles que de fato tratam de Jesus, como os Evangelhos, ele se lançou a compreender o que era possível sobre o período. E contexto, ele explica, se baseia em três camadas de conhecimento humano. Antropologia cultural, História, Arqueologia.

Dadas certas condições, não importa em que época e em que lugar, homens se comportarão seguindo padrões específicos. É o que a antropologia nos ensina. Um império de base agrícola, portanto, se organizará inicialmente com camponeses donos de pequenos nacos de terra, que plantam e revendem o pouco que colhem para uma elite rica. Esta elite junta as pequenas produções e revende no volume. Conforme se desenvolve esta sociedade, ela tende a buscar eficiência econômica: forma latifúndios. Os camponeses, sempre em dificuldades financeiras, fazem empréstimos. Não conseguem pagar, as dívidas são executadas. Num segundo estágio, há uma consolidação destes grandes pedaços de terra. Nesta hora, cidades se formam — é onde moram os latifundiários e de onde controlam o comércio. Invariavelmente, a sequência de dívidas executadas dá forma a rebeliões. Sempre que há este contexto é isso que ocorre. A terra dos judeus em princípios da era cristã era uma sociedade assim.

A partir da compreensão da natureza da sociedade entra a segunda camada: história. O Império Romano era já vasto naquele tempo, e em grande parte pacífico. Mas, por três vezes, as legiões alocadas na Síria precisaram descer à Judeia para interferir. Nos anos 4, 66 e 135. Rebeliões sérias ocorreram, que não eram comuns noutros cantos. Porque, dentre os judeus, havia uma distinção cultural que os mantinha em forte atrito com os romanos: o conceito de posse da terra. A Terra Santa era de Deus, não do homem. Não podia ter dono, não podia ser vendida. Aquele era um princípio cultural básico e, ao mesmo tempo, incompatível com o funcionamento de um império de base agrícola. Se neste tipo de império rebeliões já são comuns, entre judeus e romanos eram frequentes, às vezes tomavam grande vulto, e a tensão nunca se resolveu.

A terceira camada que forma o contexto soma antropologia e história com arqueologia. Herodes, o grande rei judeu cuja morte deu espaço à primeira rebelião, deixou o território para os três filhos. Augusto, o imperador romano, achou por bem concordar. Herodes Archelaus ficou com Judeia, Samaria e Iduméia; Felipe com o norte e o leste do rio Jordão; e Herodes Antipas com Galiléia e Peraea. O governo do primeiro foi um desastre e, assim, Augusto o exilou e decidiu nomear para a região da Judeia um prefeito romano. Pôncio Pilatos foi o quarto a ocupar este cargo. Os outros dois reis permaneceram onde estavam. Mas após a morte do imperador e, tendo assumido Tibério, Antipas começou a se movimentar. Fundou primeiro a cidade de Sephoris, próxima a Nazaré, e depois a de Tibérias, às margens do mar da Galileia. Há vestígios arqueológicos destes dois lugares e por isso sabemos um bocado sobre ambas as cidades. Mostram que não só Antipas está em franco processo de consolidação do poder sobre as terras como fazia uma política de aproximação com o imperador. A ponto de homenageá-lo com uma cidade portuária voltada à exportação.

Há dois movimentos religiosos judaicos importantes nos anos 20. O de João Batista e o de Jesus de Nazaré. Por que surgem nessa década, não dez anos antes, nem depois? Por que tão próximos e não aleatoriamente afastados? Antropologia, história e arqueologia ajudam a explicar: é exatamente neste período que camponeses estão perdendo terras, portanto estão mais aflitos com a violação da lei divina que proíbe a comercialização desta mesma terra. É também um momento político delicado pois, na leitura de Crossan, Antipas está se posicionando para virar rei de todo o mundo judaico.

E aí entra o texto que temos.

Há consenso, entre historiadores, de que o mais antigo dos quatro Evangelhos é o de Marcos. Também concordam que os dois seguintes, de Mateus e de Lucas, usam Marcos como fonte. Quase 40% do conteúdo de ambos tem no texto mais antigo sua origem. Lucas e Mateus têm também aproximadamente um quarto de seus textos com uma segunda fonte comum, pois se repetem. É um texto desconhecido que os historiadores batizaram de Q. O Jesus Seminar, do qual Crossan faz parte, propõe uma leitura conservadora, extremamente rígida destes textos.

Nenhum dos evangelistas conheceu Jesus. Mas havia uma tradição oral de quem o conheceu e, ao longo dos anos, foi sendo fixada em texto. Para este grupo de estudiosos, quanto mais simples as frases, mais passíveis de decorar com pouca distorção. Quanto mais se repetem em textos do tempo, maior a possibilidade de Jesus ter realmente as dito. Pois é vendo e revendo o que há escrito, anotando repetições, que se chega àquilo que é mais provável que tenha sido dito por ele.

Não é muito o que sobra, mas é suficiente. Jesus fala o tempo todo em Reino de Deus. Assim como recomenda a seus seguidores, com frequência, que repitam dois de seus atos: curar e compartilhar refeições. Ele também recomenda que se dispense o cajado e a bolsa de mantimentos nas viagens.

Teólogos terão muitas interpretações. Quem lê as recomendações com foco naquela conturbada década de 20 verá ideias bastante específicas. O Reino de Deus não é o paraíso. É, isto sim, o oposto do Reino do Imperador Romano. No Reino de Deus, que deve ser vivido ali, naquela hora, as terras não se vendem. O ato de curar é um ato de empatia, o de compartilhar refeições, um ato de irmandade. Jesus não recomenda que ninguém fale em seu nome, recomenda que repitam seu jeito de agir. Ou seja: que vivam todos nas regras do Reino de Deus, não nas do de Cesar. Que andem sem cajado — a mais comum arma defensiva do camponês.

Para Crossan, Jesus circula entre dois dos três reinos judaicos pregando resistência passiva a Roma. Este era um ato religioso, assim como político. Após a morte de João Batista, ele radicaliza, viaja mais, prega com frequência, se torna mais atuante e enfático na defesa de suas ideias. Terminaria incomodando alguém. Calhou de ser Pilatos, que o mandou executar.

Esta não é a única visão possível de Jesus Cristo. Mas é uma teoria rigorosa do ponto de vista da ciência. Colhe do texto apenas aquilo que é mais provável ter sido dito pelo homem, este personagem tão fugaz. Leva em consideração o que estava acontecendo em seu mundo naqueles anos e considera que política e religião se encontravam — porque, no mundo judeu, política e religião não se dissociavam.

Outros historiadores veem nele um Zelota — sua resistência não seria passiva, mas ativa. Outros o consideram um profeta apocalíptico — achava que o mundo estava para acabar. São, igualmente, leituras possíveis.

O sentido religioso nasce de séculos de interpretação, com filósofos, teólogos e políticos da igreja moldando como se deve compreender. Com o historiador é diferente. É preciso, antes, achar que era um homem, não mais. Daí compreender que aquilo que ele dizia causou impacto suficiente para que muitos lembrassem suas palavras e alguns tenham achado por bem registrá-las para sempre no papel. Com uns tantos floreios. Então o historiador tenta responder por quê.

O Jesus de Crossan era este: um Gandhi de seu tempo que pregava fraternidade. Um líder político fugaz que não chegou a crescer o suficiente para os romanos deixassem registro. Mas que causou tanto impacto entre os seus que mesmo décadas depois quem o ouviu dele tivesse memória.

Não só décadas. 21 séculos e cá estamos nós, em um quarto do mundo, celebrando esta sua memória.

Veja: John Dominic Crossan dá uma aula.

Leia: O Jesus Seminar publicou uma edição dos Evangelos na qual a cada frase é atribuída uma cor, de acordo com a possibilidade histórica de ela ter sido mesmo dita por Jesus. Na Amazon.

2018 o ano do algoritmo

Este pode ser considerado o ano dos algoritmos, de tanto que se falou deles. Estão por toda parte, escolhendo o que vemos nas redes, na TV, filtrando nossos emails, controlando cada vez mais nossa vida, e até mesmo começando a dirigir carros. Mas não só por isso, 2018 marca também duas grandes efemérides relacionadas ao tema: Donald Knuth, professor emérito da Universidade de Stanford, e considerado o papa dos algoritmos, completou 80 anos. Completam-se ainda os 50 anos da publicação do primeiro volume de sua bíblia: a Arte de Programação de Computadores (Amazon). Já conta com 4 volumes e Knuth diz que ainda precisa de mais uns 25 anos para terminar. Com um de seus ex-alunos, chegou a fazer uma aposta. Quem terminará primeiro: ele, Knuth, o quinto volume? Ou terminará Sergey Brin a tese que largou pelo meio para fundar o Google? É um livro de referência, não para ser lido de cabo a rabo. Numa coluna de 1995, Bill Gates desafiou. Se alguém tivesse lido o livro inteiro deveria mandar seu currículo de presto.

Yoda do Vale do Silício é como o New York Times chamou Knuth em um perfil publicado essa semana. Esse é o tamanho de sua influência na indústria de tecnologia. Cada vez que alguém faz uma busca em um texto, ou o ordena numa lista, certamente vai estar usando um algoritmo, que no mínimo, foi influenciado pelo mestre. Muito antes de Moneyball, Knuth aparece em um segmento do noticiário da CBS, em 1959, usando estatística e computador para melhorar a performance do time de basquete de sua universidade. Knuth é ainda autor de um livro de ficção sobre números surreais (Amazon), e compositor de uma peça para órgão de tubo.

Todo Natal, o mestre Knuth dá uma aula especial em Stanford. A deste ano teve como tema links dançantes, um algoritmo muito útil para situações em que é preciso desfazer algo que foi feito. Pois é: o undo. Assista.

Assista também: Ano passado, convidado para gravar uma aula para posteridade, ele resolveu reencenar, com direito a peruca para parecer mais jovem, sua primeira aula como professor em Stanford. Foi quando apresentou a ideia de que análise de algoritmos forma uma ciência.

E um guia: Como funcionam os algoritmos das principais redes sociais?

Um perfil de LeBron James

LeBron James tem um currículo que rivaliza com qualquer jogador da história da NBA – incluindo Michael Jordan, amplamente considerado o maior da história do esporte. Mas hoje ele é mais do que uma lenda. É um ator, um magnata da mídia, e um ícone cultural. Subiu ao topo ao mesmo tempo em que os Estados Unidos foram forçados a enfrentar sua violência sistemática contra negros, e James assumiu essa causa como um dos jovens negros mais famosos do país. É talvez, o atleta mais influente social e politicamente desde Muhammad Ali. Na Vox, Dylan Scoot conta como o melhor jogador de basquete do mundo se tornou uma força política.

Um vídeo com alguns dos melhores momentos de sua carreira nas quadras da NBA.

Como foi 2018 em gráficos

Na política, na cultura, na economia, no meio ambiente, no esporte e na internet. O Nexo mostra, em gráficos, como foi 2018.

Os mais clicados dessa semana foram:

1. World Economic Forum: Os 10 melhores países para as mulheres.

2. Estadão: Os melhores livros de 2018.

3. O Globo: Deputada Bolsonarista sugere intervenção militar no STF após liminar de Marco Aurelio.

4. UOL TV: Joõo de Deus diz que se entrega para ser preso.

5. Fantástico: Depoimento de advogada que denunciou João de Deus por assédio sexual em 2008. O caso terminou em absolvição por uma juíza de Abadiânia.

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