Edição de Sábado: Afinal, o que é fascismo?

“Já ouvi chamarem de fascistas fazendeiros, lojistas, o sistema de crédito social, punição corporal, caçadores de raposas, homossexuais e Gandhi”, escreveu George Orwell, em 1944. Adolf Hitler e Benito Mussolini ainda estavam no comando de um bom naco da Europa, e o repórter e escritor já percebia a dificuldade de definir o termo. “Do jeito que a usamos, a palavra não quer dizer nada.” Esta semana que passou, Roger Waters, baixista do Pink Floyd, incluiu Bolsonaro numa lista de políticos que ele afirma serem fascistas e que estão em ascensão. Ao seu lado, Donald Trump e Rodrigo Duterte, das Filipinas. Foi aplaudido, mas principalmente vaiado pelo público que o ouvia no Allianz Parque, de São Paulo. Waters não é o primeiro a sugerir que o candidato do PSL representa a chegada de uma onda fascista ao Planalto. E, inevitavelmente, a pergunta se impõe: o que é fascismo?

A resposta é: depende de a quem se pergunta. O primeiro teórico do fascismo foi o jurista alemão Carl Schmitt, que ainda nos anos 1920 começou a criticar a incapacidade de democracias para lidar com momentos de crise institucional. (PDF.) Naquela época, Schmitt defendia que ditaduras poderiam ser necessárias e legais. Afinal, constituições recebem emendas e, se o Parlamento decide conceder plenos poderes ao chefe do Executivo, a lei foi cumprida. Ele não via este processo como necessariamente um redutor de liberdades. Bastava que fossem criadas instituições através das quais os desejos do povo pudessem chegar ao comando: uma estrutura organizada de imprensa, assembleias populares, sindicatos, com pleno acesso ao partido do governo. O nazismo nasce das teorias de Schmitt, mas o professor já observava o que ocorria na Itália com Mussolini. O fascismo, por esta definição, é um sistema no qual Estado e Partido trocam de lugar. Não há um partido que está no comando do Estado. O Partido é o Estado, e todas as instituições sociais se integram ao partido. Schmitt criou uma proposta de sistema que compatibilizava o liberalismo econômico com o antiliberalsmo político. E esta é a primeira definição de fascismo.

Deu que foi uma vítima do fascismo na Segunda Guerra quem sugeriu, pela primeira vez, que o fascismo é uma categoria pouco relevante. Hanna Arendt sugeriu que havia mais semelhanças entre o nazismo e o stalinismo do que de ambos com o fascismo italiano. E aí é importante esquecer a dicotomia direita-esquerda, que perde importância. Um de extrema-direita, o outro de extrema-esquerda, Hitler e Stalin conduziam regimes totalitários: a população é transformada numa grande massa, pesadamente manipulada por propaganda que molda a realidade, com respeito ao regime imposto por terror. O sistema totalitário, que se impõem em todos os aspectos de vida do cidadão, é diferente do autocrático, é muito mais do que uma ditadura. O autocrata, como Mussolini era aos olhos de Arendt, quer apenas poder.

Outros filósofos, nas décadas seguintes, ampliaram a ideia de totalitarismo para incluir Mussolini e Mao Zedong, na China. Talvez o mais importante deles, o filósofo polonês Zbigniew Brzezinski, considerava o quarteto Hitler, Mussolini, Stalin, Mao equivalentes no totalitarismo, mas observava a diferença entre esquerda e direita: o totalitarismo de direita busca subjugar o mundo perante o domínio imperialista de uma nação ou raça; o de esquerda quer estender o comando aos ‘proletários de todo o mundo’. São mais parecidos entre si do que com quaisquer outros regimes, mas há diferenças fundamentais entre ambos.

Pois é. O estudo do fascismo, como todo estudo histórico, é pesadamente influenciado pela época. Antes da Segunda Guerra, Schmitt o viu como uma solução para a crise que as democracias viviam: a fusão entre um autocrata, as instituições da sociedade, o partido único e o Estado. Tudo a mesma coisa. No pós-guerra e na Guerra Fria, a distinção entre fascismo e comunismo nublou, e a característica totalitária dos dois regimes foi mais atentamente observada. Uma série de autores, neste momento em que uma onda de direita com tons radicais começa a alcançar democraticamente o poder em vários países, propõe nova leitura.

Porque cada tempo apresenta seus próprios dilemas. O problema deste momento em que nos aproximamos dos novos anos 20 não é definir o que foi o fascismo em seu ápice. Mas descobrir como identificar seus sinais no momento em que primeiro aparece. Dois livros tentam encarar este problema: um, ainda não publicado no Brasil, é How Fascism Works (Amazon), de um filósofo de Yale chamado Jason Stanley. O outro é Fascismo: Um Alerta (Amazon), assinado pela ex-secretária de Estado americana Madeleine Albright. Albright, que de formação é cientista política, viveu a Guerra no exílio londrino com o pai, um importante político tcheco. Stanley é filho de refugiados judeus que migraram para os EUA após a Guerra. Ambos chegam a conclusões parecidas.

“O fascismo é um método de fazer política”, diz Stanley. “É uma técnica para chegar ao poder.” Neste sentido, fascismo não é uma ideologia. É um jeito de conduzir candidaturas que se torna viável em momentos de grande ansiedade. Tem um pacote de características. Primeiro, constrói uma narrativa através da qual um pedaço da sociedade pode se enxergar como vítima. “Grande a um tempo, aquela sociedade foi destruída pelo liberalismo, pelo feminismo, pelo marxismo cultural, não importa.” O fascismo de Stanley é baseado na mentira, numa tentativa de obscurecer a verdade. Líderes fascistas mentem e espalham mentiras, porque é fundamental deixar a fronteira entre verdade e mentira a mais nublada possível. E um acordo de todos a respeito de fatos — ou verdades — é essencial para que democracias funcionem. Um passado melhor e perdido faz parte da história contada. E há um último elemento: movimentos fascistas são extremamente masculinizados, carregados de símbolos ligados a hombridade, e muito mobilizados com uma decadência sexual na qual enxergam a cultura se perdendo.

“O fascismo não é uma ideologia”, diz Albright. “É um método.” Oferece soluções simples em tempos de crise. “Fascistas subvertem, desacreditam e eliminam as instituições liberais da sociedade.”

O que é fascismo? Donald Trump, Rodrigo Duterte, o húngaro Viktor Orbán ou Jair Bolsonaro não propõem um estado no qual o partido se torna o Estado e a sociedade civil, simultaneamente. Não são fascistas perante a definição do ideólogo do nazismo. Quando Arendt e seus sucessores observaram que, mais do que o fascismo, era o totalitarismo o marco da tragédia do século 20, descreveram um sistema ainda mais longínquo daquele governado por todos estes líderes de direita. Mas, ao focalizar hoje nos métodos de chegar ao poder, Albright e Stanley encontram várias características destes novos líderes com os fascistas iniciais. A palavra, como dizia George Orwell, é menos importante. O importante é o exercício de observar a história, avaliar similaridades e diferenças, e tentar prever se há risco de repetição. Esta ainda é uma pergunta para a qual ninguém deu uma resposta convincente. Porque, se democracias são de fato mais resilientes do que eram há um século, populistas de direita (ou de esquerda) podem até passar pelo governo, mas passam sem ter modificado o Estado.

Vídeo: Em entrevista esta semana, Jason Stanley explica por que considera Jair Bolsonaro representante do que enxerga como neofascismo.

Outro vídeo: Rob Riemen, fundador do Nexus Institute. “O fascismo nunca vai embora porque ele é o lado sombrio de toda democracia. Naqueles momentos em que a crença nas grandes ideias da democracia se perde, sociedades são dominadas por nossos piores instintos — ganância, medo, ressentimento, ódio, propaganda, estupidez. É nesta hora que os demagogos e os populistas se apresentam.”

A nova versão de 'Imagine'

Yoko Ono divulgou esta semana a nova versão de Imagine (YouTube), canção que compôs com o marido John Lennon. A faixa, que fará parte de seu novo álbum Warzone, conta com um novo arranjo. Vale lembrar que Yoko foi adicionada como coautora da música apenas em 2017. Antes, era creditada apenas a Lennon.

Para assistir com calma: exatamente um mês antes do lançamento de Imagine, em 1971 John Lennon e Yoko Ono deram juntos, pela primeira vez, uma entrevista à TV. Foi no programa de Dick Cavett, da ABC.

Os testes de DNA e a falta de anonimato

Nos últimos anos, mais de 15 milhões de pessoas ofereceram seu DNA — saliva num cotonete ou num tubo de ensaio — a serviços como 23andMe e Ancestry.com em busca de respostas sobre sua herança genética. Mas à medida que esses registros crescem, fica cada vez mais difícil para os indivíduos manterem o anonimato. Segundo um estudo publicado pela revista Science, cerca de 60% dos norte-americanos de descendência do norte da Europa — o principal público desses sites — pode ser identificado por meio desses bancos de dados, independentemente de terem ou não oferecido seu DNA a eles. Pois é. Dentro de dois ou três anos, 90% deles serão identificáveis. O futuro da ficção científica, em que todos são conhecidos, quer queiram ou não, está mais próximo do que a gente imagina. (New York Times)

O Buzzfeed mostra, em vídeo, de maneira divertida, como funciona esse tipo de teste.

E essa semana os links mais clicados no Meio foram:

1. YouTube: Pintura de Banksy se autodestrói instantes após ser leiloada.

2. G1: Ruby Rose aparece pela primeira vez como Batwoman.

3. Gaucha/ZS: Jovem com camisa ‘Ele Não’ teve o corpo marcado com uma suástica a canivete, em Porto Alegre.

4. Facebook: Família Bolsonaro rejeita expressamente apoio ao tucano João Doria.

5. Senado: Todos os senadores eleitos em 2018.

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