Edição de Sábado: Liberalismo em tempos de Bolsonaro

É impossível contar a história da semana que passou sem encarar a reação, nas redes sociais, à capa da revista britânica The Economist, que desancou Jair Bolsonaro. Um meme popular da direita brasileira foi desencavado — The Ecommunist. Mas, na bagunça ideológica geral que se formou no Brasil, a piada é séria. Na semana anterior, a revista celebrou 175 anos. Foi fundada em setembro de 1843 por um chapeleiro chamado James Wilson que, embora trabalhasse em Londres, era escocês. As revoluções liberais de EUA e França estavam mais próximas dele do que o fim da Segunda Guerra, de nós.

Em plena revolução digital, enquanto outras revistas semanais foram definhando até morrer — ou quase —, a Economist triplicou sua circulação de papel. Assim como se tornou um dos sites pagos mais rentáveis do jornalismo mundial. Sempre fez, e continua fazendo, um jornalismo pesadamente editorializado. Tem princípios e enxerga o mundo através destes. E são simples: livre comércio, mercados abertos, governo limitado. Simples, porém complexos. A bíblia semanal do liberalismo inglês defendeu coisas distintas ao longo de sua história. Na edição de 175 anos, publicou um ensaio que, em corpo 9, entrelinha 1,5, ocupa dez páginas divididas em duas colunas. Leitura para uma hora. É, ao mesmo tempo, uma definição do que é a ideologia liberal, uma olhada para sua transformação ao longo do tempo, e uma defesa de que precisa ser revolucionada.

Porque poucas ideologias são tão mal definidas quanto o Liberalismo, e porque a política aqui e lá fora tende a um radicalismo que a ninguém ajuda, o Meio dedica esta edição a um resumo do ensaio.

Em princípios dos anos 1990, o cientista político Francis Furkuyama viu o fim da Guerra Fria, a queda das ditaduras latino-americanas, a reunificação europeia e a ascensão dos Tigres Asiáticos e afirmou: a história acabou. Queria dizer: o liberalismo venceu. Donald Trump, nos EUA, e o Movimento Cinco Estrelas, na Itália, são sinais de que não é verdade. Em breve, uma ditadura se tornará a maior economia do mundo. A China. O liberalismo não venceu.

Como ideologia, o liberalismo se baseia em quatro ideias, segundo a Economist. A sociedade é um ambiente no qual há conflitos e uma comunidade saudável transforma estes conflitos numa disputa na qual o melhor argumento vence. Qualquer sociedade, assim, sempre é melhorada. Liberais desconfiam do poder, ainda mais quando concentrado. E, por fim, por isso mesmo, nenhuma estrutura pode se sobrepor a qualquer indivíduo. É daí que nascem os direitos pessoais, políticos e de propriedade.

O marxismo enxerga um futuro utópico. Por acreditar que o conflito é inerente à sociedade, o liberalismo não vê isso. O conservadorismo aposta em tradição e estabilidade. O liberalismo sempre acha que o melhor está à frente.

A Economist nasceu radical. Acreditava, na década de 1840, que o Estado era um mal e que o mercado tudo resolveria. Mas conforme desigualdades sociais se acentuavam, os próprios pensadores do liberalismo cindiram até dois partidos se formarem. Um seguiu o inglês John Maynard Keynes, que entre os anos 1920 e 40 defendeu que havia um papel relevante para os governos interferirem para amenizar as distorções do capitalismo. Outro seguiu o austríaco Friedrich Hayek, que manteve a repulsa à interferência dos governos. A revista seguiu com o bonde de Keynes, sobreviveu à Depressão e à Guerra, e viu explodir a prosperidade dos anos 1950 e 60.

Nos anos 1980, porém, a Economist apostou noutro caminho, aquele apontado por Margaret Thatcher, no Reino Unido, e Ronald Reagan, nos EUA. O mundo keynesiano havia interferido demais nos mercados, seguia o raciocínio. Estas amarras estariam por trás da crise econômica dos anos 1970, que quase assentaram a economia global. Vieram políticas de privatização e desregulamentação.

Segundo os editores, não é filosofia, mas sim pragmatismo — olhar os problemas do tempo e aplicar princípios — que promove cada mudança de visão. Após a crise de 2008, a crença da revista é de que a desregulamentação do mercado financeiro foi longe demais. O liberalismo em sua definição é um constante adequar-se ao momento. Não há utopia ou fórmula, senão um compreender a realidade e adequar-se.

A crítica vai além. Os editores da Economist defendem que a natureza do liberalismo é reformadora e, principalmente, provocadora. E, no entanto, liberais se puseram num lugar complacente. O sucesso do século 20 lhes fez acreditar, como Fukuyama, que o jogo era garantido. O sucesso econômico chinês, numa sociedade sem liberdade, prova o contrário. Há um outro modelo competindo neste jogo.

A família típica de Paris, Hong Kong, Nova York ou Londres gasta 41% de sua renda com aluguel. Era 28% há 30 anos. Ainda assim, 40% do PIB mundial é gerado nas 50 maiores cidades. A concentração de renda impede a mudança de mais pessoas para os centros e, portanto, coíbe a geração de riqueza por muitos e para muitos. É o tipo do problema para o qual não há solução que não a cobrança de imposto baseado no valor real dos imóveis.

Sim. Para o bastião do liberalismo, toda concentração de poder é um problema. Mesmo que seja poder econômico.

Mas é um problema menor perante outra concentração — o poder corporativo de grandes empresas. A revolução digital concentra poder e dinheiro num nível cada vez maior e num número cada vez menor de companhias e executivos.

A reação populista e conservadora que vai de Trump a Bolsonaro, observa a Economist, se dá também porque o liberalismo traiu seus princípios. E um poder que não é estatal, mas é corporativo, começou a se impor sobre a liberdade dos indivíduos.

Só há uma solução que é abraçar o princípio da ousadia reformista. E há alguns pontos que devem ser atacados. Começa com previdência, um problema em todas as economias. Pessoas menos capacitadas também vivem menos; pessoas mais capacitadas, vivem mais. Programas de previdência deveriam levar isto em consideração. E sistemas de previdência precisam ser urgentemente reformados.

Também faz sentido consolidar os inúmeros programas sociais num só. Acabam seguro desemprego, bolsa família e tudo mais. Substitui-se por renda mínima, no qual o Estado envia para todo cidadão um valor mensal. Ou um imposto de renda negativo. Quem ganha menos do que um dado, recebe um complemento.

E é preciso encarar o problema das fronteiras. Elas são porosas e serão cruzadas. É algo que, no Brasil, sentimos apenas de leve. Mas com haitianos e, principalmente, venezuelanos, começamos a sentir. Nos EUA e Europa, é grave. A abertura de fronteiras, do ponto de vista econômico, é boa. Mas é o tipo do tema que líderes em todo o mundo evitam. O argumento, ora, nunca é econômico.

Mas tudo passa pela questão das grandes corporações e os novos monopólios, o maior desafio que liberais terão de enfrentar nos próximos anos. Do detalhe que são executivos em grandes bancos que receberam altos bônus mesmo quando suas empresas foram salvas pelos governos, há dez anos, até o bode no meio da sala. O novo monopólio do Vale do Silício.

O Manifesto Comunista se encerra com o célebre “operários de todo mundo, uni-vos”. O Manifesto pela Reinvenção do Liberalismo da Economist não tem uma frase forte. Argumenta por uma estrutura de sociedade na qual qualquer pessoa possa ter as condições e o direito de dar o melhor de si mesma.

Não chegamos lá.

A reconstrução de Porto Rico com uma nova arquitetura

Um ano atrás, o furacão Maria devastou Porto Rico. A ilha sofreu danos catastróficos em sua rede de energia, comunicações, em seu sistema de água potável, nas estradas, escolas. O número oficial de mortos é de 2.975 pessoas. Mais de 135 mil fugiram para o continente. Pelo menos 160 mil casas foram destruídas. A rede elétrica já estava frágil depois de anos de manutenção atrasada. A escalada de destruição na ilha, aliás, é o subproduto de décadas de desinvestimento, declínio da população e dificuldades econômicas. A província americana nunca se recuperou da recessão nos anos 2000. Agora, a ilha está sendo reconstruída por arquitetos e designers. Voluntários. Desde setembro último, eles vêm repensando as construções. O trabalho inclui planejamento para que as estruturas sejam mais resilientes, além da instalação de sistemas de energia renovável por toda parte.

Pois é. Os jornalistas do New York Times visitaram 163 casas na ilha para verificar o progresso nos últimos 12 meses. Encontraram, em algumas partes, quartos e mobílias novas cheirando a tinta fresca. Mas nos bairros mais pobres havia cozinhas destruídas e fios elétricos soltos por paredes inacabadas. Telhados foram cobertos com madeira compensada ou plástico, muitos perto do colapso. Algumas casas ainda não tinham água corrente. E várias famílias moram em quartos individuais, casas sem mobília, dormem no chão.

Aliás... No The Conversation, Roger Wang, professor da Universidade de Dundee, pergunta: A inteligência artificial poderia nos ajudar a lidar com desastres naturais? Parece que sim, mas apenas até certo ponto.

Para assistir: Em dezembro a Vice produziu um minidoc explicando a complexidade dos reparos na rede elétrica de Porto Rico.

Galeria: Amazônia das FARCs

Galeria: Por quase quatro décadas, uma grande região da Amazônia colombiana se fechou a olhares externos. Área dominada pelas FARC. Pois chegaram os fotógrafos da National Geographic.

Solo, A Star Wars Story

Quem tem criança em casa — ou quem tem memórias de infância vindas dos anos 1980 — vai gostar de saber que chegou aos serviços de streaming Solo, A Star Wars Story. Dublado e legendado. No Google Play, iTunes e Now. Bom cinema-pipoca para a sala de estar no sábado à noite.

E... os links mais clicados da semana, no Meio:

1. El País: 13 séries para você assistir, segundo o Emmy.
2. Poder 360: Pimentel diz que Haddad assinará indulto para Lula
3. Poder 360: O que disseram os economistas dos presidenciáveis no Roda Viva.
4. Ars Technica: Os quatro clusters que agrupam os diferentes tipos de personalidade
5. Folha: Match Eleitoral. Encontre o candidato ao congresso mais adequado ao seu gosto. Para deputado federal em SP, RJ e MG, e em SP também para Senador.

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