A Implosão dos Smartphones
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Valentina acorda e ainda deitada, como todo adolescente da sua geração, coloca imediatamente seus óculos. “Feed me”, fala com voz pastosa de sono. Imediatamente começam a pular em suas lentes as novidades do dia, fofocas dos amigos, spoilers de séries, memes infames e as inevitáveis propagandas que ela prontamente elimina piscando o olho esquerdo. Um pequeno círculo azul pulsante na periferia de sua visão alerta que há um compromisso muito importante que, obviamente, ela já esqueceu. Abanando a mão, ela arrasta para o centro a bolinha, que se desdobra em um vídeo da sua banda favorita. “Gente! O show é hoje, quem vai?”. Joinhas pipocam pelo teto do quarto. Claro que todo mundo vai. Valentina pula da cama. As imagens imediatamente somem e ela caminha pelo corredor até a mesa da cozinha para o café da manhã. Ninguém na mesa. Nem pais. Nem café.
Amélia, onde estão as unidades parentais?
Bom dia, Valentina — responde uma voz incorpórea, sutilmente pedagógica.
Bom dia, Amélia — responde a adolescente entediada. — Cadê os velhos?
Dormindo — diz a casa. Uma lista sobe pelas lentes de Valentina.
“STATUS PAI/MÃE:
Local: quarto principal, desde 3:00AM
Ritmo Circadiano: Fase NÃO-REM. 60/80 BPM
Último check-in: Evento RV ‘Os Loucos Anos 10 Estão de Volta’ com 573 participantes.
Soundtrack: Músicas armazenadas na playlist ‘TRASH 10’. Pisque para ouvir.
Consumo: Nachos, guacamole, 1,4 litros de bebidas diversas, 120 mg de..”
A menina pisca duas vezes e a lista some da sua frente. “A balada foi forte”, pensa.
“Valentina, o robô da limpeza precisa de auxílio manual com uma substância não identificada no chão da sala” — avisa Amélia.
“Antes do café? De jeito nenhum!” — Vou ter que me virar, conclui Val, a fome batendo.
Amélia, temos leite?
Sei lá. Pergunte para a geladeira.
Bem-vindos ao maravilhoso mundo transformado pelo 5G. Como vimos no capítulo de introdução desta série, essa nova tecnologia de rede celular vai permitir muito mais que uma internet mais rápida. Com largura de banda vinte vezes maior e latência dez vezes menor que o 4G, ela vai permitir inúmeras aplicações de conexão em tempo real. Algumas até já existem hoje, mas não exploramos todo seu potencial devido às limitações do 4G. Outras nem imaginamos.
Pausa didática: a velocidade em uma rede digital é baseada em dois conceitos. O mais conhecido é a largura de banda, medida em gigabytes por segundo. É aquele número que você contrata junto ao provedor mas que seu modem nunca alcança. Outro fator tão importante quanto é a latência. Imagine sua conexão como uma auto estrada. A banda é quantos carros (pacotes de informação) conseguem andar ao mesmo tempo na estrada. A latência, medida em milissegundos, é quanto tempo demora para um carro ir do ponto A ao ponto B. No 4G, a latência fica ao redor de 20-30 milissegundos. No 5G vai ficar bem abaixo dos 10 milissegundos, podendo em alguns casos chegar a 1 milissegundo. Alguns chamam isso de latência zero.
Essa conexão em tempo real vai permitir uma nova classe de aparelhos, mais leves, mais baratos e muito mais poderosos que os atuais smartphones e computadores. Isso vai acontecer porque boa parte do processamento não será mais feito em um chip embutido no aparelho, mas na nuvem. Liberados da necessidade de fazer cálculos complexos, armazenar aplicativos e gerar gráficos rebuscados, nossos aparelhos inteligentes vão poder tomar formas mais amigáveis. Seu computador poderá ser uma folha dobrável. Seu console de videogame poderá ter o tamanho de um cinzeiro. Seu smartphone poderá ser um óculos, um relógio ou um fone de ouvido. Mas será que ainda vão existir smartphones?
O fim do smartphone
“Acredito que o celular tende a se dividir em mil pedacinhos. Ele vai estar nas lentes dos nossos óculos, no relógio, no anel, na roupa que a gente vai vestir”, diz Nagib Nassif Filho, CEO da Bolha e CTO da Questtonó, empresas que desenvolvem projetos de inovação, muitas vezes unindo hardware e software. “A tela tende a desaparecer porque vai estar de outra forma implementada na nossa vida. Os wearables, ou computadores vestíveis, junto com o poder da conectividade do 5G, vão fazer com que a gente consiga de fato vestir uma plataforma de comunicação.”
Leo Xavier, Co-founder da Môre e autor de diversos livros sobre marketing digital, discorda um pouco dessa visão. “O smartphone vai perder sua hegemonia mas não deve desaparecer. O que vai acontecer é uma fragmentação, vamos ter muito mais objetos conectados e mais interfaces para nos conectar com eles. Os óculos certamente têm um grande apelo, mas só para quem já usa óculos. Vai ter gente que ainda vai preferir utilizar o smartphone. A mesma coisa com os smartwatches. Tem pessoas que odeiam usar relógio. Existem uma série de elementos humanos e sociais que vão nos levar a esse cenário de uma enorme pluralidade de dispositivos.”
Novas Realidades
Com a popularização de outras categorias de aparelhos, poderemos finalmente nos ver livres das indefectíveis telas, graças a novos tipos de interface para interagirmos digitalmente. Rumores apontam que a Apple está desenvolvendo um óculos de Realidade Aumentada (AR, na sigla em inglês). A Microsoft já está na segunda geração do seu Hololens, um óculos de Realidade Mista (MR, que permite a interação entre objetos virtuais e reais). O aparelho da Microsoft inclusive já foi utilizado por médicos brasileiros em uma cirurgia. Já existe até um termo para abrigar Realidade, Virtual, Aumentada, Mista ou qualquer outra realidade que apareça no futuro: XR, a Realidade Estendida, onde o X equivale a qualquer tecnologia que una o mundo digital e o real.
Para Nassif, com o 5G a Realidade Estendida vai finalmente (aham) virar realidade. “Estamos à beira de uma era onde todo mundo vai usar óculos, não por problemas de visão, mas como forma de aplicar ao mundo real uma camada sintética de interatividade. A nossa tela do celular vai para a lente do óculos e iremos controlá-la utilizando a voz, gestos e, em um futuro mais distante, nosso cérebro.”
Nova etiqueta
É isso, então? No futuro próximo iremos conversar com nossos botões e eles irão responder? Vamos tropeçar distraídos em objetos virtuais que as crianças espalharam pela sala? Para Xavier, toda essa conectividade pode gerar um movimento oposto, das pessoas procurarem fugir da hiperconexão o tempo inteiro.
“Minha impressão é de que a coisa vai piorar, pelo menos em um primeiro momento. Quanto mais coisas conectadas, aumenta a percepção de disponibilidade daquela pessoa. Se hoje reclamamos de passar muito tempo diante de telas, imagine que loucura vai ser ficar vendo uma série de mensagens pulando na lente do seu óculos, no seu relógio, no seu ouvido, no pára-brisa de seu carro, na geladeira, na máquina de lavar… Uma nova etiqueta digital terá que ser criada para dar conta de tudo isso. Temos que levar em conta também a privacidade, uma coisa super importante na comunicação pessoa-a-pessoa. Quem mora em família não vai querer conversar através da tela da geladeira.”
Ficou asustado? Deu vontade de fugir para as montanhas e viver ordenhando as vacas e cuidando das galinhas? Ou não vê a hora de colocar um AppleSpectacle© ou um GoogleEye® no rosto e viver com um pé no real e o outro no digital? Calma que é só o começo. Semana que vem voltamos com mais um capítulo mostrando como o mundo será transformado pelo 5G.