Edição Extra: Celso de Mello torna público vídeo de reunião de Bolsonaro
O decano do Supremo Tribunal Federal, ministro Celso de Mello, liberou no fim da tarde de sexta-feira o vídeo com a reunião ministerial de 22 de abril. Exato um mês atrás. Ele faz parte do conjunto de provas no inquérito para averiguar se o presidente Jair Bolsonaro interferiu na Polícia Federal do Rio por motivos pessoais. No momento mais incisivo, Bolsonaro diz que tem seu próprio serviço de inteligência. Particular. “O meu, funciona”, ele afirma. “Os que tem oficialmente, desinforma”, segue. “Tenho as inteligências das Forças Armadas que não tenho informações. ABIN tem seus problemas, aparelhamento, etc.” Não é neste contexto que o presidente se refere à questão do Rio. “É putaria o tempo todo para me atingir, mexendo com a minha família. Já tentei trocar gente da segurança no Rio, oficialmente, e não consegui. Isso acabou. Eu não vou esperar foder a minha família, de sacanagem, os meus amigos, porque não posso trocar alguém da segurança na ponta da linha que pertence a estrutura nossa. Vai trocar. Se não puder trocar, troca o chefe dele. Não pode trocar o chefe dele? Troca o ministro e ponto final.” Em outro ponto, Bolsonaro se queixa dos ministros. “Não dá para trabalhar assim. Por isso, vou interferir” — e neste momento olha para sua esquerda, onde se sentava Sérgio Moro. “E ponto final. Dei os ministérios pros senhores, mudou agora. Tem que mudar, pô. Quero é realmente governar o Brasil.”
Leia a transcrição ou assista aos vídeos.
Falas de outros ministros também chamam a atenção. “Eu, por mim, botava esses vagabundos todos na cadeia. Começando no STF”, diz Abraham Weintraub. “Estamos nesse momento de tranquilidade no aspecto de cobertura de imprensa, porque só fala de Covid, e ir passando a boiada e mudando todo o regramento e simplificando normas”, sugere Ricardo Salles, querendo eliminar regulamentações ambientais. (Globo)
O próprio presidente, diga-se, tem também outros momentos fortes. “O que esses caras fizeram com o vírus, esse bosta desse governador de São Paulo, esse estrume do Rio de Janeiro, entre outros, é exatamente isso. Aproveitaram o vírus, tá um bosta de um prefeito lá de Manaus agora, abrindo covas coletivas. Um bosta.” Referia-se a João Doria, Wilson Witzel e Arthur Virgílio Neto. A ministra Damares Alves o endossou. “A pandemia vai passar, mas governadores e prefeitos responderão processos e nós vamos pedir inclusive a prisão de governadores e prefeitos. E nós tamo subindo o tom e discursos tão chegando. Nosso ministério vai começar a pegar pesado com governadores e prefeitos.” (Folha)
Um dos poucos trechos que o decano escolheu não divulgar trata da China. “O presidente, ao reclamar da falta de informações do serviço de inteligência da Polícia Federal, revela que o presidente Trump havia lhe dado acesso a relatórios de inteligência relacionados à China”, conta Merval Pereira. “O temor de assessores do presidente Bolsonaro é que o presidente Trump tenha que desmentir a informação, mesmo que ela seja verdadeira. Mas a desconfiança é de que seja mais uma bazófia de Bolsonaro.” (Globo)
Vera Magalhães: “A longa e destemperada fala de Jair Bolsonaro na reunião ministerial pode até ajudar a melhorar a imagem do presidente junto ao seu público, mas agrava em muitos tons a crise institucional entre os Poderes. Além disso, expõe muitos ministros, mostrando que são passivos diante da determinação expressa de Bolsonaro de intervir em todas as pastas para defender os interesses próprios e da sua família e a ordem unida que todos façam o enfrentamento com os Poderes, com governadores e prefeitos e com a imprensa para defender politicamente o governo. A ajuda para a imagem junto ao público bolsonarista mais radical é dada pelas falas demonstrando preocupação com o povo, com o desemprego, com a fome, mas sempre em contraposição com a recomendação das autoridades sanitárias do Brasil e internacionais. Mas esse eventual ganho de popularidade não deve ser suficiente para salvar a popularidade de Bolsonaro diante do agravamento diário da pandemia e da insuficiência técnica do governo.” (BR Político)
Igor Gielow: “Se o objeto do acesso da Justiça à peça, o inquérito sobre a acusação do ex-ministro Sergio Moro de que o presidente quis interferir na Polícia Federal, ganha densidade com as falas reveladas, o panorama que a gravação desleva é único na história republicana. O governo paranoico e em ritmo de guerra que se mostra na gravação crua vai desagradar apoiadores, detratores e os neoaliados arregimentados à base de cargos para evitar a progressão de um processo de impeachment na Câmara contra o presidente. Claro, os palavrões abundantes, a linguagem chula e desencontrada de Bolsonaro e de alguns ministros podem agradar a parcelas mais fiéis do eleitorado do presidente. É coisa de macho, diriam, coerentes ao ideário da turma. A mães e pais de família Brasil afora, talvez seja um pouco demais. De forma preocupante, mantém o morde e assopra no sensível tema da intervenção militar. Diz que é contra, mas lembra com insistência do artigo 142 da Constituição, que permite a Poderes convocarem os fardados a retomar a ordem pública. Para Bolsonaro, ‘todo mundo quer o 142’. A isso se soma a lembrança de 1964, cujo golpe livrou o país ‘dessa cambada’ que faria a todos ‘plantar cana’. Mais grave, contudo, é a parte da conversa em que Bolsonaro faz basicamente a defesa da insurreição armada no país contra governadores e prefeitos que impõem a quarentena devido à Covid-19, uma obsessão do presidente. ‘Quero que todo mundo se arme contra a ditadura’, diz, seguindo a leitura do porte de armas enraizado na fundação dos EUA, seu país-modelo.” (Folha)
Christian Lynch, da Uerj: “A essa altura, já dá para ter uma impressão geral do vídeo e tirar algumas conclusões objetivas. O governo é de direita radical, e o presidente é convicto em seu projeto, não aceitará "moderação" de general nenhum. O discurso é de guerra permanente, e ele se comporta como se fosse um John Wayne acuado, cercado de índios comunistas, em um bangue bangue da década de 1950. O projeto de Bolsonaro, como tenho repetido aqui, é a utopia regressiva de retorno à sociedade colonial do século 17, pré-iluminista, com milícias armadas religiosas, chefiadas por chefes de família patriarcais e ausência de Estado regulador ou protetor das minorias. Estado de natureza hobbesiano, antiliberal e antirrepublicano. Tudo o que é moderno — pluralismo, tolerância, Estado de direito moderno, laicidade — é rechaçado enfaticamente. Bolsonaro tem o projeto dele e não está nem aí pra Constituição. A Constituição não existe, é um amontoado de palavras que nada valem, porque não passa de um breviário comunista ou subversivo. Só não pode haver corrupção. As instituições podem existir, desde que não contrariem o governo. Contrariedade é sinônimo de sabotagem. Então o livre funcionamento das instituições não é tolerado; há uma percepção de que são também inimigas ou subversivas. E ele tem razão: seu projeto é inconstitucional de ponta a ponta.” (Facebook)
Não foi a única ação do decano do Supremo, hoje. Ele também encaminhou à Procuradoria Geral da República três notícias-crime relacionadas com a possível interferência de Bolsonaro na PF. Três partidos de esquerda desejam que os celulares do ex-diretor-geral da PF, Maurício Valeixo, do ex-ministro Sérgio Moro, da deputada federal Carla Zambelli, do vereador carioca Carlos Bolsonaro e do próprio presidente da República sejam alvo de busca e apreensão. Querem perícia dos aparelhos. O movimento, por parte do ministro do STF, é praxe: sempre que algo assim envolve o presidente, é preciso que a PGR seja consultada. Não há prazo para resposta. (Poder 360)
Ainda assim, o ministro-general Augusto Heleno partiu para a ofensiva. “O pedido de apreensão do celular do presidente é inconcebível e, até certo ponto, inacreditável”, escreveu em nota pública que destinou vagamente ‘à nação brasileira’. O tom é de ameaça, embora sem destinatário. “Seria uma afronta à autoridade máxima do Poder Executivo e uma interferência inadmissível de outro Poder. O Gabinete de Segurança Institucional alerta as autoridades que tal atitude é uma evidente tentativa de comprometer e a harmonia entre os poderes e poderá ter consequências imprevisíveis para a estabilidade nacional.” (Twitter)
O presidente da OAB, Felipe Santa Cruz, respondeu em cima. “General Heleno, as instituições democráticas rechaçam o anacronismo de sua nota”, escreveu na mesma rede. “Saia de 64 e tente contribuir com 2020, se puder. Se não puder, #ficaemcasa.” (Twitter)
Robson Bonin: “Augusto Heleno revelou nesta sexta-feira a vocação autoritária de suas funções. Vestido com o pijama de batalha, Heleno nomeou-se no cargo de ameaçador geral da União. A nota do general é mais uma dessas firulas golpistas alimentadas pelo palácio. Vem poucas horas antes de o STF divulgar o vídeo que deixará Bolsonaro e seu governo nu em imagem e som. Daí a necessidade de se criar mais uma crise.” (Veja)