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Sidarta, um encontro com o propósito

Foto: Philipp Lavra/Divulgação

Há uma frase atribuída ao dramaturgo inglês William Shakespeare que diz “todas as graças da mente e do coração se escapam quando o propósito não é firme”. Ou seja, sem propósito, estamos esvaziados, certo? Não dá pra ser feliz, é isso? É o que ele diz. E então vai cada um atrás do seu propósito — ou fugindo da cobrança interna de tê-lo. Logo vêm as frases motivacionais de coaches de internet, e há quem responda com ideais de família, religião, sonhos de viagens, realizações profissionais. Mas, olha, uma coisa é certa: essa ansiedade que vem quando pensamos “a que viemos” é tão velha quanto o mundo em si.

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O que a gente esquece é que o propósito é um caminhar, não vem como uma resposta seca e direta em um dia de chuva (ou vem!?). Para o personagem Sidarta, protagonista do romance escrito por Hermann Hesse, vencedor do Prêmio Nobel de Literatura em 1946, sua busca se finca na espiritualidade e, ao deixar de digladiar-se contra o fluxo da vida, ele nos traz cada vez mais perguntas — e talvez menos respostas do que nós, imediatistas incuráveis do século 21, gostaríamos.

Fato é: todo mundo é acometido pela “necessidade de propósito”, cedo ou tarde. Alguns acabam até criando, dirigindo e atuando em uma peça teatral sobre essa incansável busca. Assim foi com o artista Angel Ferreira, que está em cartaz com a peça Sidarta, no Teatro Poeirinha, no Rio de Janeiro, até 27 de abril. Espetáculo, aliás, finalista do Prêmio Shell de Teatro 2025 pela iluminação.

Nesta entrevista, Angel conta sobre o processo imersivo e não convencional para a criação da peça, da sua conexão com a obra Sidarta, passando pelo (spoiler) desafio da nudez em cena e o que ele gostaria que cada um levasse consigo como reflexão.

A peça Sidarta é “livremente inspirada na obra de Hermann Hesse”, um autor que é cheio de interesse pela espiritualidade oriental. Isso por si só é denso pra caramba. O despertar para criar esse espetáculo tão profundo veio durante a pandemia, certo? Como foi gestar essa ideia?

Eu viajei pelo Brasil durante os últimos anos e senti muita falta de ter uma peça debaixo do braço, de estar numa cidadezinha, chamar as pessoas para uma sexta-feira à noite nos fundos da casa de não sei quem. Era um desejo radical de autonomia como artista, sobretudo, durante a pandemia, num momento em que muitos incentivos à cultura foram colocados em cheque, o Ministério da Cultura acabou, depois foi refeito, e tudo isso tem ainda uma repercussão na vida dos artistas. Já reparou como tem muitos monólogos em cartaz? É reflexo disso, fica mais fácil do que sustentar um elenco maior. Na verdade, eu criei essa peça quando estava sem esperança na arte, na existência, triste mesmo. Para o artista, nosso trabalho só se completa na interação com o público, e a partir do momento em que, para uma parte do país, artistas se tornaram figuras ameaçadoras, o que a gente vai fazer? Ser artista é um sacerdócio, a gente está ali, o tempo inteiro, procurando criar um espelho para a sociedade, para que a gente possa pensar sobre outros caminhos. E a história do Sidarta chegou para mim como uma lufada de esperança, para me lembrar de que a vida pode ser amorosa, sabe? A minha realização conversa com o mundo material, a sociedade, mas não pode depender disso. Não posso depender de o mundo estar em harmonia para encontrar a minha. Se não, ferrou.

Vai esperar sentado. (risos)

Pois é! Apesar de tudo, todo caos que a gente vive, é preciso ir e fazer. E Sidarta tem a força de um personagem que assume essa auto-responsabilidade radical de bem-viver. De se compreender e que continua em contato com o mundo, não se isola numa caverna.

Mas não teve um desafio na adaptação do contexto da peça para o Brasil?

Acho que chegar num estado de não resistir ao que é e deixar que as coisas se revelem para você foi o maior desafio. Eu achava o tempo inteiro que precisava escrever uma peça para poder decorar esse texto, e aí ensaiar — como tradicionalmente acontece. Só que não era assim que o trabalho se revelava para mim. Ele aconteceu fora do meu controle, ou seja, eu estava lendo e relendo o livro, passei quatro anos nesse processo. Ia para beira do rio, e ouvia o rio. E depois eu simplesmente comecei a contar essa história para as pessoas, através daquilo que a minha memória dava conta, sem ter ensaiado nada. Pedi para minha mãe ler o livro para mim, por exemplo, e ficava desenhando enquanto ela lia. Enfim, duvidei muito desse processo.

Enquanto eu me preparava para esse nosso papo, acabei de me deparando com uma tese chamada Arte Censurada: Teatro e Ditadura no Estado da Paraíba, da Rosa Maria Carlos, e tem uma hora em que ela fala sobre amadorismo no teatro com algo que sempre é vinculado ao que é de baixa qualidade, menor, sendo que ele é, na verdade, experimental, empírico. Então, talvez seja mais por aí o seu processo. Amador não deveria ser o contrário de profissional.

Muito interessante porque você trouxe a palavra empírico e isso, no prefácio do livro, ressoa muito. É um livro sobre a experiência direta, onde o Herman Hesse problematiza a teologia, questiona seguirmos doutrinas em detrimento da própria vivência.

Na sinopse do espetáculo, está escrito que a peça destaca as dramaturgias de aprisionamento e libertação. Parece algo muito do plano das ideias, você consegue explicar como isso se reflete na sua atuação e no seu preparo para viver o Sidarta?

Que pergunta bonita. Te agradeço por ela… Aprisionamento é quando temos excesso de pensamento, que a gente não consegue silenciar. A mente é muito curiosa e está muito a serviço dos nossos condicionamentos sociais. Todos eles são muito tóxicos e nos levam a muitos estados de neurose, de insegurança. O que já me aprisionou em outros momentos da minha carreira foi ser um ator com o corpo mental fortíssimo, imenso. E agora percebo que essa libertação é estar em cena com esse corpo mental um pouco mais equilibrado com os meus corpos etéreo, espiritual, físico, e em conexão com a plateia. Então é preciso silenciar essa fala interna e testemunhar o que esse movimento tá dizendo. Na peça, essa linguagem vem por meio da expressão com o corpo, que tento explorar ao máximo.

Nos últimos anos, me expus a uma série de sabedorias ancestrais que mudaram muito a minha maneira de estar em cena. O Tantra, como filosofia de aceitação; a dança, o forró, uma coisa tão da cultura popular, e que me ajuda muito a estar em cena porque tem um lugar de fruição e fluxo não mental; chá de Ayahuasca também, com plantas antigas, fruto da sabedoria do povo da América Latina; a meditação, nesse lugar a gente não é pego e levado pelo pensamento e quando vê, tá numa guerra interna, brigando com, sei lá, o seu vizinho, sobre algo que nem aconteceu. Todos esses elementos foram catalisadores de um corpo que hoje consegue brincar com a peça, não está rígido, nem querendo provar nada. Não sei se estou sendo muito ‘jovem místico’ (risos), é que toda essa experiência é muito subjetiva. Mas tô com os dois pés no presente.

E a nudez? É muito corajosa essa escolha que você faz. Tem um momento do espetáculo em que Sidarta erotiza o seu melhor amigo, Govinda, em sonho. E tá lá você, nu, falando sobre isso e eu tive o privilégio de ver, pela minha diagonal, nessa sala escura do teatro, vários senhores, grisalhos, com um sorriso discreto, mas empático, quase como se dissesse “quem nunca , né?”.

Nossa, fiquei surpreso! Ninguém nunca tinha me relatado sobre isso, da reação dos homens. E você pôde testemunhar eles nesse ambiente íntimo, relaxado, e vulnerável. Não é uma hora em que eu olho para a plateia, porque estou no meio de uma ação física, então, você me trouxe um vislumbre do que acontece. Como a nudez pode ser medicinal, né? Para quem assiste e para mim também. E olha que a nudez não era uma coisa que vinha na minha cabeça a princípio, mas eu queria ter quase elemento nenhum para viabilizar a peça. Quando estamos vestidos, não pensamos necessariamente sobre a roupa delas, é natural, a gente dialoga, a vida segue. Mas quando existe a nudez, parece que a vida para por aquilo ser tabu. É muito bonito pensar que podemos esquecer que a pessoa está nua — não por um bloqueio ou negação — mas porque aquilo se torna natural e focamos no que ela diz, nas nossas reflexões. Isso é uma das coisas curativas que a peça promove, essa naturalização. A gente nasce pelado, né?

Como criador da peça e intérprete do Sidarta, qual aspecto dessa jornada do personagem mais te impactou? Quais são as virtudes do Sidarta que te cativaram?

Quando você me pergunta, me vem a capacidade dele de queimar os seus navios. Essa imagem de você se deslocar até um lugar e queimar a possibilidade de voltar para onde quer que seja. Ele segue, ele vai seguindo, sempre muito inteiro, abraçando o desconhecido, que é justamente esse desafio que a gente chamaria de “sair da zona de conforto”. Ele faz isso de uma maneira ininterrupta. E isso não é pouca coisa. E Sidarta busca essa iluminação estando em contato com o mundo. Ele não se retira, está a serviço, em uma balsa, para quem precisa atravessar de uma margem a outra. Essa metáfora é bonita. O que me toca no Sidarta é essa radicalidade, que para mim tem a ver não com extremismo, mas com ir ao encontro do radical, das raízes.

O que você espera que o público leve depois de assistir ao espetáculo?

Essa peça é uma oração, porque promove um encontro com aquilo que é essencial — e me lembra disso. No final, Sidarta fala ao Govinda: “não existe nada mais importante do que o amor”. E essa simplicidade é o que me toca profundamente no trabalho e que eu gostaria que as pessoas levassem com elas. Quando está pra começar, eu visualizo que, do meu chacra cardíaco, parte uma série de linhas energéticas para o público, como sementes, operando num campo do invisível o tempo inteiro. É um convite para que as pessoas assumam a responsabilidade sobre a própria vida num mundo tão hiperestimulante e cheio de condicionamentos, que o tempo inteiro estão dizendo como que a gente deve ver o que nos falta. É devolver a gente para a gente mesmo num lugar de amor, para construir um outro mundo de fato.

Sidarta fica em cartaz até 27 de abril, às quintas, sextas e sábados, às 20h; domingos, às 19h, no Teatro Poeirinha. Os ingressos custam R$80 e estão disponíveis no Sympla ou na bilheteria do teatro. A classificação etária é 18 anos, e a peça dura aproximadamente 100 minutos.

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