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O Planalto achou o homem

Em 2024, 55% dos homens americanos votaram em Donald Trump. No Brasil, em 2022, 50% dos homens votaram em Jair Bolsonaro. Em ambas as eleições, 45% das mulheres votaram nos candidatos de extrema direita. 47% das pessoas de 30 a 44 anos votaram em Trump. 50%, em Bolsonaro. 52% de quem tem renda média, nos Estados Unidos, votou em Trump. 54% votou em Bolsonaro. É neste eleitorado, ali bem no meio, que os dois políticos são particularmente fortes. No Sul e no Sudeste do Brasil, Jair Bolsonaro teve 60% dos votos de quem tem ensino médio. Se incluir o Nordeste na conta, Bolsonaro e Lula até empatam, mas se isolar o Nordeste e colocar o resto do país, essa faixa de educação é pesadamente bolsonarista. Nos Estados Unidos, 56% dos eleitores com ensino médio votaram em Trump.

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Esse é o corte demográfico no qual Trump e Bolsonaro são muito parecidos eleitoralmente. É um eleitorado masculino, de renda média e ensino médio. Não custa definir o que é renda média, aqui. Nos Estados Unidos, quer dizer receber entre 50 e 100 mil dólares por ano. No Brasil é receber entre dois e cinco salários mínimos por mês. Ou seja, entre uns 2.500 reais e 6 mil reais. Em ambos os casos, é uma vida difícil, tá? Uma vida bem puxada, batalhada, de muitas horas de trabalho por dia pra completar renda e, francamente, de pouca esperança em relação ao futuro. Este é o perfil típico do trabalhador da indústria. Do operário.

Eu sei. Vocês já me viram falar sobre isso. Bem, ontem a Malu Gaspar, muito cá entre nós uma das maiores jornalistas da minha geração, contou na sua coluna que o governo Lula está para anunciar um nome para agrupar uma série de políticas do governo. Deve ser Prospera Brasil. Essa palavra aí, “prospera”, não foi escolhida pelo ministro da Comunicação Social, Sidônio Palmeira, à toa. Está lá na Teologia da Prosperidade que muitos pastores evangélicos pregam, a ideia de que prosperar financeiramente é indício de bênção divina.

Prospera Brasil não é uma política pública. É um truque de marketing, um jeito de dar nome a uma penca de políticas diferentes. A isenção de imposto de renda para quem recebe até 5.000 reais é uma delas. O Congresso ainda precisa aprovar, mas é prioridade do Planalto. Entrariam também na lista o Acredita, que facilita o acesso a linhas de créditos a pequenos empreendedores e quem recebe o Bolsa Família, também o Pé-de-Meia, que cria uma poupança para alunos do ensino médio para evitar que deixem a escola.

Quer dizer, o que eles estão fazendo é o seguinte: vão pegar todos os programas que tocam em quem? Programas que tocam em homens, com ensino médio e renda média, e vão passar os próximos dois anos martelando em cima disso. Dizendo o seguinte: o governo Lula pensa em vocês e está construindo uma série de iniciativas que ajudam vocês.

É. Muitos comentaristas de esquerda não gostam muito quando digo que as democracias precisam olhar para este sujeito. É muito fácil olhar para ele como misógino, como retrógrado, como fascista, como alguém que precisa simplesmente se adequar ao mundo que mudou. Bem, o Palácio do Planalto acaba de colocá-lo como sua maior prioridade. E está certíssimo de fazê-lo.

Também ontem, o jornalista Ezra Klein, do New York Times, publicou uma entrevista estupenda com David Shor, um estatístico ligado ao Partido Democrata. É daqueles estudos que muito raramente nós vemos os partidos políticos brasileiros fazendo. O Shor mergulha em todas as pesquisas feitas no entorno da eleição presidencial do ano passado para ir pinçando o que aconteceu. Para tentar explicar por que Donald Trump venceu com tanta facilidade.

Parte da explicação está nesse corte aí. Nesse sujeito. Neste homem que se sente humilhado, rebaixado, nele que foi o grande perdedor das muitas mudanças do mundo nos últimos vinte anos. Ele que, francamente, olha para o futuro com uma profunda desesperança. Que convive com a percepção de que sua vida será pior do que a de seus pais. Ele tem toda razão. Mas renda, escolaridade e idade não são as únicas coisas que podemos falar a respeito dele.

Eu sou Pedro Doria, editor do Meio.

E este aqui? Este é o Ponto de Partida.

Algumas outras informações que Shor fala sobre os americanos desta faixa: é um dos públicos com menor engajamento político. Na verdade, quando menos interessado em política você for nos Estados Unidos, maior a probabilidade de você ser trumpista. O corte não é racial. Não são apenas brancos que votam em Donald Trump. O número de homens negros, homens latinos e mesmo de outras etnias vêm aumentando entre os eleitores republicanos desde 2016. A cada eleição, a proporção aumenta. O problema aqui não é racismo. Nem nos Estados Unidos, nem aqui.

Este baixo engajamento político quer dizer o seguinte: enquanto eleitores democratas se informam por veículos tradicionais de imprensa, eleitores trumpistas criaram todo um sistema alternativo de jornalismo. Ou, ao menos, algo que parece jornalismo mas não é. Um grupo relevante de influenciadores entra nesse jogo. Jordan Peterson, Andrew Tate, Joe Rogan. Não à toa, muitos desses caras têm mensagens com uma autoajuda pesada embutida e um discurso de energia masculina além, claro, de muito comentário sobre como o mundo é injusto com homens. Nem tudo é red pill, mas o movimento red pill está inserido nesse contexto.

O que é um Pablo Marçal se não uma versão brasileira desses tipos americanos? Italo Marsili, um falso-psiquiatra que quer ser candidato ao governo do Rio é a mesma linha. Gusttavo Lima, o cantor sertanejo? Mesma vibração.

Esses paralelos não são à toa. Não é coincidência que a similaridade demográfica existe no Brasil e nos Estados Unidos. Porque não é só aqui e lá. No eleitorado de Javier Milei, na Argentina, vamos encontrar o mesmo corte. No de Marine Le Penn, na França. E por que esse padrão vai se repetindo?

Porque todas as mudanças pelas quais o mundo passou, comportamentais e econômicas e políticas, implicaram em perdas para esses caras. Se não tem mais emprego de qualidade na indústria, o homem com ensino médio é quem deixa de tê-lo. Se a ideia de que a família tem uma hierarquia, o homem é o chefe, e isso se perde, quem perdeu hierarquia foi ele. Se mulheres começam a ter mais anos de educação formal do que homens, e isso jamais ocorreu na história mas hoje ocorre, isso quer dizer que as moças com quem ele convive na vizinhança sabem mais do que ele. Se o valor do homem é dado pela sua capacidade de prover, se ele foi criado numa cultura em que seu valor é como provedor e ele tem dificuldade de fazê-lo, ele se sente menor.

Por que estamos vendo esse gap que nunca existiu, esse gap de gênero? Mulheres progressistas, homens conservadores? Porque estes homens olham para o mundo de hoje, olham para o mundo como eram e concluem com muita clareza: para mim, era melhor antes.

Por que Jordan Petersen e Pablo Marçal estão sempre falando de poder, de força, de coragem, esses adjetivos tão caricaturalmente masculinos? Porque temos, na nossa sociedade, há um contingente grande de homens que estão se sentindo fracos, acuados, e que precisam performar, interpretar, representar essas características para ver se as incorporam.

O Palácio do Planalto está certíssimo no seu diagnóstico. O problema é se vai conseguir levar a mensagem ao público que precisa, a questão é se os programas são construídos com inteligência o suficiente para mudar a vida desses caras. Porque, lembrem, eles não se informam assistindo a Globonews, não leem a Folha de São Paulo. Aliás, tampouco leem o Meio. Eles estão num mundo próprio, um ecossistema muito específico construído para alimentá-los daquilo que este movimento extremista deseja oferecer.

Uma sociedade não sobrevive se um grupo tão grande, dentro dela, se sente alienado. Se sente que está perdendo todas. A esquerda, não só no Brasil, mas no mundo, perdeu por completo o jeito de lidar com aquele que foi um público fiel em todo o século 20. O homem que, um dia, foi operário. O desafio das democracias é ele. Vai continuar sendo ele. Ou as democracias o acolhem ou eles a engolem. O risco não acabou.

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