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Quatro cancelamentos

Eu não tomava um cancelamento como o da semana passada fazia uns anos. O último neste nível foi lá pelo meio do governo Bolsonaro. Tudo certo, é isso mesmo. Estar no debate público, hoje em dia, quer dizer que de tempos em tempos você vai falar algo que um conjunto organizado de pessoas acha que não pode ser dito. Este ano foram quatro cancelamentos. É um bocado, nesse ritmo não é normal, não.

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Mas acho que é importante a gente parar pra pensar um pouco no rito do cancelamento. Porque é um rito, né? É uma das formas modernas de demonstração em nome de uma causa. Vamos destrinchar um pouco essa coisa que se tornou parte do nosso debate público. A gente precisa pensar com mais profundidade sobre o papel dos cancelamentos na grande conversa sobre as questões da sociedade.

Vamos falar com franqueza: as redes sociais não são um lugar para conversas originais. Raramente entramos em contato com uma tese nova, um argumento que surpreenda, algo que de alguma forma transforme a maneira como pensamos sobre um assunto. Esta não é a vocação das redes. Acontece, claro, mas é muito raro. A função das redes no debate público é outra. É agrupar as pessoas que militam em favor de uma determinada causa e uniformizar o discurso.

A gente percebe a uniformização do discurso. Dê um tema que seja caro àquele grupo e as pessoas conhecem as três ou quatro informações que têm de repetir sempre. Quando a gente conversa, nas redes sociais, aquilo é mais a repetição de um mantra, as palavras que devem ser ditas e repetidas e repetidas quando o tema A aparece, do que o engajamento num diálogo.

A característica fundamental de um diálogo é que exista reflexão. Alguém lança um argumento, a pessoa pensa, junta as informações que tem na cabeça, talvez até consulte um dado ou outro num livro, num site, e construa uma resposta. Se todo mundo está engajado em diálogo sobre os grandes temas, a toda hora ideias novas surgem, são peças novas no debate. É assim que a democracia constrói consensos.

Mas quando todo mundo está sempre repetindo as mesmas três ideias, quando a reflexão é substituída por repetição, aquilo toma uma outra dimensão. É um ritual. Quando o adversário aparece, o grupo se organiza para, em conjunto, recitar seus mantras. Como em todo ritual, a sensação de pertencimento ao grupo é reforçada. A repetição deste mantra é que lança para todo mundo esta mensagem que é muito gostosa, muito envolvente, a de que estamos juntos nesta mesma luta.

Um cancelamento, em geral, começa com uma convocação. Um influenciador, alguém que tenha autoridade nas redes perante uma determinada tribo, se vira e diz: “alguém está errado na internet”. O dedo é lançado sobre o inimigo. Aquilo é um convite ao início do ritual, em que as pessoas têm a oportunidade de reafirmar sua identidade, seu pertencimento àquela comunidade.

Você faz isso atacando o inimigo. O que faz de um cancelamento maior ou menor é a quantidade de pessoas que se engajam no ataque. Como é o ataque? De novo: a repetição do mantra. Ninguém diz algo realmente novo. Aquilo que foi afirmado pelo influenciador é repetido. Dez vezes. Cem vezes. Mil. Quantas forem.

Então o que acontece aqui? Qual é a mensagem que realmente é passada? Uns poderão dizer: é indignação. Justo. O sentimento da indignação está ali. Muito da deterioração democrática que vivemos vem justamente disso, aliás. Estamos fazendo política em que indignação é o sentimento predominante faz quase quinze anos. É exatamente o tipo da política que trata quem discorda como inimigo. Que trata a discordância como inaceitável.

Mas é só isso? Uma demonstração de indignação? Não. É mais do que isso. O termo que se usa, na internet, para o resultado de um cancelamento é flood. A palavra em inglês pra enchente. Já foi abrasileirado, de tão corriqueiro que o termo é. Vou floodar suas redes. Para quem cancela, são uns segundos de trabalho e sua parte no ritual está cumprida.

Para o cancelado, é receber a onda de indignação. É ser exposto ao ódio das pessoas. E, às vezes, é bem difícil. Porque não se trata de conversar uma conversa difícil. É receber ódio. Acreditem. Ninguém sai incólume emocionalmente de uma onda de ódio. A gente, nós humanos, não somos programados para isso. Mesmo quando você já enfrenta cancelamentos de esquerda e de direita faz vários anos, quando o cancelamento é muito intenso, ninguém sai bem. Dos quatro cancelamentos que recebi este ano, o da semana passada foi o mais pesado.

Para quem é cancelado, a coisa funciona assim: você abre o Twitter, o X, o Instagram, o BlueSky, e é só o que vem. Todas as mensagens diretas que você recebe, todos os comentários em tudo o que você publicou, são a repetição de duas ou três ideias. O mantra. Uma após a outra. Dezenas. Centenas. Milhares. É a torrente.

Não importa o assunto que você trate, se tem a ver com a razão do cancelamento ou não tem, a massa se impõe a todos os outros comentaristas. Se alguém tenta te defender, porque concorda com você ou porque percebe a violência e não gosta, essa pessoa apanha também. E isso faz, também, parte da lógica do cancelamento. As pessoas que partem com ódio por sua opinião são justiceiras. Se sentem no lado dos justos contra aquele que representa o mal. Elas não veem o que fazem como ódio. Veem como justiça. Justiça e turba não deviam se misturar nunca, mas se apegar a ideais da democracia liberal não é coisa que esteja na ordem do dia. Então a lógica é agredir ao cancelado e dissuadir, pela agressão, qualquer um que se manifeste contra o cancelado. E as pessoas se intimidam.

E aí chegamos ao efeito real de um cancelamento. A gente some das redes. Quem concorda conosco se cala. O efeito real de um cancelamento é o de censura. Ou a gente sai das redes por um tempo, ou apanha. Como as pessoas não costumam gostar de apanhar, cedemos. Nossa voz é cassada enquanto o cancelamento dura. O segundo efeito é de intimidação. Se você repetir aquela ideia de novo, sabe que o que vai acontecer. Muita gente se intimida. Acreditem. Muitos colegas meus se intimidam e se calam. E eu entendo.

As pessoas não gostam quando a gente coloca desse jeito. Que o objetivo de um cancelamento é censura e intimidação. Ocorre que é isso mesmo. O objetivo do cancelamento é justamente o de que aquela opinião, aquele ponto de vista, não tenha espaço no debate público. E, para expurgar aquela ideia, não se usa argumentos. Se usa a fúrias das massas. É para calar. É para bloquear.

Cancelamentos funcionam. Acho que vale comparar os quatro cancelamentos que vivi este ano. Por quê? Porque vale para perceber como são todos iguais. O primeiro foi feito por bolsonaristas. O segundo por feministas. O terceiro pelo MBL e, o quarto, pela esquerda anti-Israel.

Eu sou Pedro Doria, editor do Meio.

Sabe, a vida da gente ia ser muito mais fácil se a gente simplesmente abraçasse o governo Lula. Os algoritmos das redes gostam da polarização. Se você está de um dos lados e cumpre a cartilha, repete sempre as mesmas ideias, não diz pra pessoas daquele time nada que vai perturbar os mantras, as redes vão entregar milhões de seguidores. E ainda tem uma grana da Secom. Agora, se você é bolsonarista, mesmo estando fora do governo, se fica bradando contra o Supremo, pedindo anistia, também aí as redes entregam muito seguidor e uma boa grana. A gente não escolheu o caminho do Meio porque é fácil. Não é. A gente escolheu porque entre a ameaça à democracia representada pelo bolsonarismo e uma esquerda que nas redes se mostra intransigente, a gente acredita em pluralidade. A gente acredita em conversa. Se você acredita no caminho do meio, precisamos da sua assinatura. Vocês são os únicos com quem podemos contar.

E este aqui? Este é o Ponto de Partida.

Os bolsonaristas vieram primeiro. Alguém fez uma montagem com um vídeo antigo meu sobre o uso do cartão corporativo pelo Bolsonaro e comparou com uma fala minha, num dos programas do Central Meio, sobre o uso pelo Lula. A edição foi manipulada, mas é assim mesmo que as hordas fazem, às vezes. Tiram do contexto e mandam ver. Foi o menor dos cancelamentos deste ano. Fiquei um fim de semana recebendo mensagem desaforada. O bolsonarismo é bom de rede social mas é ruim de cancelamento, porque é mais rústico, sabe? Qualquer lustre de erudição, que a esquerda bem ou mal cultiva, a turba bolsonarista não tem. Aí é só um xingar de vendido pra baixo. É só ofensa literal, mesmo, só palavrão.

O segundo foi por conta de um vídeo, justamente, sobre onde está a justiça num linchamento virtual. Meu ponto ali, sobre aquele episódio da Rádio Novelo, era que estamos criando uma cultura na qual, se alguém de uma das categorias protegidas pelo identitarismo faz uma acusação, o acusado não tem qualquer direito à defesa. Apanhei bem. Tudo certo. Quando gravei já sabia como ia ser a reação.

E, de novo, este é um ponto muito importante: a gente sabe quando vai escrever, quando vai falar, e aquilo vai virar um cancelamento. A gente sempre sabe porque sabemos quais são os temas tabus. É por isso que cancelamentos funcionam como arma de intimidação. É assim que dificultam que certos temas sejam debatidos de forma mais ampla na sociedade. E, de novo. Funcionam. Intimidam. Muitos colegas pensam coisas que não falam em suas colunas. Que evitam. Porque não estão a fim da carga de ódio. E eu entendo. Porque às vezes é barra, mesmo.

Aí veio o terceiro, puxado pelo Arthur do Val, o Mamãe Falei do MBL. Ele estava reclamando que o questionei quando ele fez uma viagem à Ucrânia posando publicamente de visita de humanitária mas gravou mensagem dizendo que as mulheres ucranianas eram bonitas e eram fáceis por serem pobres. O ex-deputado não entendeu três coisas. A primeira é que o comportamento de pessoas em cargos públicos, eletivos, é sim medido com um padrão diferente de pessoas privadas. Em segundo, se ele não entende que olhar para mulheres que são refugiadas de guerra e pensar em turismo sexual é completamente abjeto, sinto muito. Acabo de voltar de uma viagem na qual estive com vítimas de guerra. É o terror. Quem não tem bússola moral quando chega à idade adulta, não chegará a ter. O terceiro ponto é o seguinte. Mamãe Falei acha que foi cassado da Alesp por conta da estupidez que falou pros amigos sobre as mulheres da Ucrânia. Não foi. Foi cassado porque é um moralista. Porque o método do MBL é cancelador. Porque ataca de forma inclemente qualquer um pelo mínimo desvio. Em parlamento, políticos constróem alianças, não posam de algozes de todos os seus pares. Na primeira oportunidade que seus pares tiveram, puseram-no pra fora. O MBL não tem futuro político porque não sabe cultivar alianças. Mas aí foi o que foi, uma onda de ataque do MBL. Foi grandinha, tá? Mas essa foi a que menos incomodou porque era absurda.

Aí veio o quarto cancelamento, na semana passada, de nova pela esquerda. Desta vez pela esquerda anti-Israel. Fui para o país a convite do IBI, o Instituto Brasil-Israel. Uma viagem dessas tem imenso valor não só pelo valor da passagem e do quarto de hotel. É pelo acesso. Eu não chegaria em Israel e poderia conversar com a quantidade de pessoas com as quais pude conversar sem essa ajuda. O melhor do nosso trabalho, como jornalistas, está diretamente ligado à qualidade das pessoas com quem conversamos. À qualidade como testemunhas, como especialistas, como gente em posições que permitam fazer diferença. Conversei com muita gente, com palestinos, com israelenses judeus. Políticos de esquerda, de direita e de extrema-direita. Com ativistas, com especialistas, com colegas jornalistas.

Escrevi um texto mais longe sobre a visita pro Meio de Sábado, estou preparando um Ponto de Partida especial para o streaming do Meio sobre a visita. Com imagens das conversas que tivemos, com o que aprendi. Escrevo sobre o conflito entre Israel e Palestina há vinte e cinco anos. O que aprendi, na semana passada, é muito, muito mais do que esperava aprender. Não voltei otimista, voltei na verdade bem triste. Bem pessimista em relação à paz, em relação à solução de dois Estados. Mas aprendi. A gente só aprende certas coisas indo, vendo, conversando. E tendo a ajuda de quem facilita conversas.

Sei que tem gente que acha que nós jornalistas não devíamos visitar certos lugares, não devíamos falar com certas pessoas. Tudo bem. Fiquei uma semana e pouca sem visitar as redes sociais. Foi até bom para me concentrar mais.

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