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Mais ativismo do que lei: especialistas discutem a onda do PL anti-Oruam

Foto: Divulgação/Instagram

(No complexo, —plexo)
Rolé na favela de nave (de nave)
O som no último volume (volume)
Vou brotar no baile mais tarde (no complexo)
Vou usar um lança perfume (no complexo)
Botar a Glock pra dar um rolé (no complexo)
Pras piranha ver o volume (no complexo)
É que, na selva do urso, sabe que nós é o assunto

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Esse é o começo da letra de Rolê na Favela de Nave, um dos hits do MC de funk Oruam. Se você tem mais de 20 anos é bem capaz que nunca tenha ouvido ou parado para prestar atenção nas letras que o jovem MC entoa, quase sempre ao lado de parceiros do Rio, como Poze do Rodo, ou de São Paulo, como MC Ryan. Mesmo sem conhecer a sua música e sobre o que rima, nas últimas semanas o nome de Oruam atravessou a fronteira dos bailes por conta de um Projeto de Lei de São Paulo, que está sendo replicado Brasil afora e nesta semana chegou à câmara dos deputados.  O Projeto de Lei anti-Oruam, proposto primeiro pela vereadora Amanda Vettorazzo, do União Brasil.

Vinda do Movimento Brasil Livre (MBL), que desde sempre navega bem nas guerras de narrativas, batizou seu projeto de lei de anti-Oruam. Mas por que não Anti-Poze do Rodo ou anti-Brocasito? Pelo espetáculo. Oruam é filho de Marcinho VP, um dos principais líderes do Comando Vermelho. Não importa que as letras do MC de 25 anos falem mais da festa do que do crime e de drogas, só de nascer na favela e na linhagem das facções, ele se torna o bicho papão perfeito.

Em resumo, o PL visa tornar proibida a “expressão, veiculação ou disseminação, no decorrer da apresentação contratada, de apologia ou incentivo ao consumo de drogas, ao crime organizado ou à prática de condutas criminosas” em shows de artistas contratados pela Prefeitura.

“Mais de 100 vereadores já entraram em contato solicitando o PL Anti-Oruam para protocolar em seus municípios. Isso mostra que há uma preocupação real e crescente em todo o país com a normalização do crime organizado na cultura popular. Ver esse projeto ganhando força em outras cidades e até chegando ao Congresso Nacional é um grande avanço. Precisamos acabar com essa romantização do crime, esse PL não é só meu, mas de todo brasileiro consciente e de bem”, disse ao Meio a vereadora de São Paulo.

Nesta semana, Vettorazzo abriu a coautoria para todos os parlamentares da Câmara Municipal, e diz que já conta com o apoio do presidente da Casa, Ricardo Teixeira, que se tornou coautor do projeto. “Isso fortalece ainda mais a tramitação e aumenta significativamente as chances de aprovação. Tenho confiança de que esse PL avançará e será um marco na forma como os recursos públicos são utilizados na cultura.”

Muitas camadas de problemas

Especialistas ouvidos pelo Meio, contudo, apontam uma série de problemas no PL e acreditam que, mesmo ao ser aprovado, não passaria pelo crivo da Justiça.

O criminalista Luís Francisco Carvalho Filho, especialista em liberdade de expressão, começa nossa conversa dizendo que acha a discussão sobre projeto de lei inócua, pois projetos podem mudar até serem aprovados. Ainda assim, defende que mesmo se fosse aprovado o projeto não teria eficácia, dizendo que se for colocado algum impedimento para o artista ser contratado, ele vai assinar o que colocaram na frente dele. “Assina aqui que você não vai fazer apologia ao crime, que não vai assaltar um banco, ele assina”, diz. E, se descumprir, pode levar a discussão jurídica até o Tribunal de Justiça.

Outro ponto que ele levanta é sobre quem vai fazer esse controle, quem vai dizer o que é apologia ou liberdade de expressão? Para ele essa discussão não poderia ser feita por um gestor municipal e sim por um juiz. “O prefeito de São Paulo não pode deixar de contratar o Chico [Buarque] porque ele compôs uma música que diz ‘chame o ladrão'”.

Já Rafael Mafei, professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e pesquisador do Laut (Centro de Análise da Liberdade e do Autoritarismo), elenca quatro pontos problemáticos em relação ao Projeto de Lei.

O primeiro diz respeito à proteção da criança e do adolescente, que aparece já no primeiro parágrafo do PL. Além de argumentar que o Brasil já tem há muito tempo uma legislação e todo um arcabouço institucional estabelecido justamente para esse propósito, como é o caso da classificação indicativa, ele pensa que é curioso o desejo de criar um espaço de intervenção no âmbito da educação parental e da autodeterminação familiar por pessoas que se dizem defensoras da centralidade da família. “Como se o Estado, a prefeitura, pudesse de alguma maneira escolher ou proibir ou desincentivar ou criar obstáculos que, na prática, vão tornar impossível que famílias acessem com seus filhos adolescentes um espaço cultural para ter uma discussão crítica sobre o que está sendo feito ali.”

O segundo ponto diz respeito ao espírito da lei. Ele pondera que, se formos levar a sério a justificativa de que a lei existe para proteger crianças e adolescentes de determinados conteúdos, talvez o foco principal devesse ser eventos culturais patrocinados nos quais há promoção de bebida alcoólica, por exemplo. “Em qualquer festival de sertanejo, uma criança vai sair de lá com a mensagem clara de que o que ela tem que fazer é encher a cara e pegar as novinhas, né?”

O terceiro ponto é técnico, diz respeito ao crime de apologia, uma discussão tradicional do direito penal. “A Constituição fala que a expressão criativa não pode ser objeto de restrição pelo Estado. Eu não posso transpor uma situação real de apologia — como uma quadrilha que faz um churrasco para comemorar um roubo a banco e e posta da rede social o produto do crime empunhando fuzis — com um eu lírico de determinada personagem, que pode ser um traficante ou um ladrão de banco”, argumenta. Para ele, se começarmos a ignorar que existe um eu lírico, as proibições teriam de ir além do funk e do trap, lembrando que Ronda, clássico de Paulo Vanzolini, seria apologia ao crime ao descrever uma mulher que anda pela cidade de bar em bar na clara intenção de encontrar o marido com a amante e matar ambos.

Na interpretação de Mafei, o PL também cairia na figura jurídica da discriminação indireta. “É uma lei escrita em linguagem neutra, ela não fala que fica proibido apoiar evento de rap e de trap — embora nem a autora que a batizou de lei-anti-Ouram disputaria isso —, mas evidentemente é isso que a lei visa. Nos seus efeitos, terá o impacto de limitar a possibilidade de apoio público ao um tipo de música que é ligado à periferia, ao jovem preto, ao jovem da comunidade, ao jovem pobre. Evidentemente essa lei tem um impacto desproporcional sobre uma categoria protegida da anti-discriminação, que é a população negra.”

Esse ponto também surge na conversa com a coordenadora do centro de referência legal do Artigo 19 – Brasil e América do Sul, Raquel Cruz de Lima, que entende o projeto como racista e classista, voltado contra expressões culturais de populações historicamente perseguidas e vulnerabilizadas. “Nesses projetos não estão falando de qualquer tipo de apologia ao crime ou consumo de drogas, elas estão falando falando de um recorte específico, de expressões culturais que sejam ligados ao funk, ao rap.”

Como o Artigo 19 é uma organização transnacional que atua em diretos humanos, traz outros elementos bem interessantes para a discussão, o principal deles gira em torno de que discursos devem ser protegidos pela legislação e quais têm de ser proibidos. Segundo Cruz de Lima, numa perspectiva de direito internacional dos direitos humanos, o tipo de apologia que tem que ser proibida, porque viola tratados internacionais, é ao ódio racial,  aquela que leva à intolerância religiosa e a apologia ao cometimento do crime de genocídio.

De outro lado, argumenta que a liberdade de expressão permite que se discutam e que se façam discursos relativos sim a atividades que podem ser criminalizadas. “As pessoas podem discutir e circular informação sobre o aborto, mesmo ele sendo criminalizado. Então, eu acho que um primeiro problema do projeto é tentar ampliar restrições que se ancorem nessa criminalização do exercício da liberdade de expressão, que é incompatível com o entendimento internacional dos direitos humanos.”, diz, citando os casos dos crimes contra a honra, de desacato e a própria apologia ao crime.

Legislação do espetáculo

Obviamente, a vereadora Amanda Verttlazzo tem um entendimento diferente. Perguntada se essa lei não seria também inócua, já que as prefeituras já teriam o poder discricionário de contratar os artistas que quisessem, ela argumenta: “O poder discricionário é concedido à administração pública pela norma jurídica. É de total competência do vereador fiscalizar o poder executivo, de modo também que é possível colocar freios em suas decisões. Pela lei anti-Oruam, artistas que façam apologia ao crime organizado ou ao uso de drogas serão multados pela administração pública em 100% do valor contratado”.

Independentemente da exequibilidade da lei, os especialistas ouvidos pelo Meio foram unanimes em apontar esse PL como uma peça de comunicação política. Como bem resume Raquel Cruz de Lima, “ela comunica algo que a gente já esperava em alguma medida com a mudança de governo, que era a repetição de uma estratégia de ataque às artes e a cultura, que a gente viu muito no Executivo Federal, de ser encampada a partir de iniciativas legislativas locais, sobretudo municipais.”, diz lembrando que a tática também foi usada, para além da cultura, na promoção de uma agenda conservadora no campo dos direitos reprodutivos sexuais.

Se, de um lado, essa direita conservadora consegue espalhar a mensagem de sua cruzada, mesmo que ela não tenha efetividade no longo prazo, e ganhe capital político com isso, de outro, Oruam também sai ganhando. Seu nome furou a bolha – gigante – dos interessados no tipo de som que ele faz. E agora tem a honra de entrar no rol dos artistas perseguidos, que a história tende a provar ser mais interessantes do que aqueles que os perseguem.

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