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O problema identitário

Olha, eu entendi perfeitamente que muita gente não gosta quando falo sobre identitarismo. Ouvi em alto e bom tom: “você não sabe do que está falando.” Mas a gente precisa continuar a conversar sobre isso. Pegamos, como sociedade, um caminho errado. Um caminho que leva a mais opressão, não menos.

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O último grande avanço de direitos civis foi a possibilidade do casamento homoafetivo. Começou na Holanda, em 2001. No Brasil veio em 2013, por uma decisão do Supremo. Nos Estados Unidos foi em 2015. Aí os avanços pararam. Desde a década de 1940 vínhamos num lento processo de avanços continuados. Progresso real. O século vinte foi um século progressista. Estamos numa fase de retrocesso de direitos. Os americanos tinham aborto legalizado fazia cinquenta anos. Deixaram de ter. O movimento em quase todos os países do Ocidente, nos últimos dez anos, é o de retrocesso. Fazia décadas que o caminho era de avanço constante. Aí parou e começaram forças intensas no sentido contrário. Será que é apenas coincidência que o pensamento dominante na esquerda sobre raça, sobre gênero e sobre sexualidade também mudou nos últimos dez anos?

Eu entendi perfeitamente que muita gente não gosta quando falo sobre identitarismo. Ouvi em alto e bom tom: “você não sabe do que está falando.” Mas a gente precisa continuar a conversar sobre isso. Pegamos, como sociedade, um caminho errado. Um caminho que leva a mais opressão, não menos. Sei que a impressão das pessoas é o contrário, de que estão lutando. A gente tem milênios de história para estudar. Já vivemos isso antes. Vamos começar conversando sobre gaslighting por um ângulo diferente?

Platão, lá atrás, dividia a alma humana em três partes. Uma era Logos. A razão. Aí vinha Eros. A paixão, o desejo, essa pulsão louca que há dentro de nós. E havia Thumos. A gente não tem uma boa palavra para traduzir essa ideia, mas está faltando. Thumos parte do desejo que todos temos de sermos reconhecidos enquanto pessoas, enquanto seres humanos. De sermos reconhecidos e, a partir deste reconhecimento, respeitados. Um elogio sincero, às vezes, vale mais que dinheiro. Quando a gente se percebe respeitado, isso preenche a vida. E tem quando não acontece, né? Quando quem somos neste sentido mais profundo não é reconhecido, não é percebido, é maltratado. É desrespeitado. Dá uma ira. Thumos é o espírito que nos dá essa gana nos defendermos.

Recebi uma tonelada e meia de respostas ao Ponto de Partida da última quarta. Foi aquele sobre editores e escritores de Santa Cecília, em São Paulo. Sobre identitarismo. De longe a maioria das respostas de mulheres. Não fiz a conta, até porque não li tudo, mas muito mais do que a metade foi contra o vídeo. Estou processando esse volume desde então. A resposta mais comum foi o envio pra mim de um vídeo da colega jornalista Milly Lacombe, do UOL, sobre o mesmo caso. Algumas dessas respostas vieram de amigas de quem gosto imensamente. Que respeito muito. Algumas de mulheres que, embora não as conheça, sei quem são, acompanho o que falam nas redes. De novo, que respeito. Mas, na maioria, mulheres que não conheço e, em geral, me respondendo de forma agressivíssima. Teve uma de uma senhora com cara de anjo, cabelo cacheadinho, terapeuta holística segundo o perfil, constelação familiar. Essa onda. Me mandou só um emoji de vômito. Isso eu nunca tinha recebido.

Fosse indiretamente, por conta do vídeo da Milly, fosse diretamente me contando histórias suas, as respostas no conjunto me levaram a essa palavra grega. Thumos. Gaslighting é isso. Chamar uma mulher que está desconfiando com razão de que estão aprontando contra ela de louca, de tudo o mais. No conjunto, o que essas mulheres estavam dizendo é que todas têm essa experiência de serem não enxergadas. Desrespeitadas no que são. A questão toda da objetificação da mulher é, em essência, também essa. Você enxerga valor na carne, na pele, na forma, mas não em quem a pessoa é. Você agride o desejo que todos temos de sermos reconhecidos e respeitados por quem somos. Mas não foi por conta de Platão que lembrei de Thumos. Não sou um leitor profundo de filosofia. Foi por conta de Francis Fukuyama. É, de longe, um dos maiores cientistas políticos vivos. Um dos caras mais importantes no estudo do declínio das democracias. Ele vem falando muito, muito de thumos. Desde 2016.

Olha, eu não saí convencido de que minha leitura está errada. Um dos motivos é que praticamente não recebi contra-argumento. A reação em geral não foi ouvir o que eu disse e responder a partir dali. A reação habitual foi “você não sabe do que está falando”. Foi “você não entendeu”. No fundo estavam dizendo, como uma pessoa escreveu literalmente, “você é homem, não entende, não sabe como ajudar, mas não atrapalha”. Ou seja, cala boca, ninguém pediu sua opinião. E é claro que não sei como é a experiência de uma mulher. Mas existe um motivo para quase ninguém ter entrado no mérito dos meus argumentos.

Antes do Iluminismo, a âncora da organização política era thumos. Você organiza a sociedade em grupos a partir da identidade. Podem ser clãs. Sabe aquela coisa Velho Testamento? Se você mata alguém, estupra uma mulher, seu clã precisa reparar a injustiça com o outro clã. Pode ser uma indenização, pode ser uma pena de morte. Estamos falando da antiguidade, mas isso se estendeu até bem recentemente. Na Europa, Protestantes contra Católicos. As guerras religiosas. Tudo estava rondando este problema humano essencial: como um grupo, organizado por identidade, repara a injustiça cometida por um dos seus contra um dos outros. A natureza da identidade muda, o que define ser do grupo ou ser de fora do grupo, muda. Mas a lógica está sempre nesta injustiça fundamental que se dá pelo não reconhecimento do outro, pelo desrespeito. Gaslighting é isso.

O iluminismo rompeu com isso da seguinte forma: vamos nos agrupar por uma identidade que nos reconheça a todos. A humanidade. Somos todos iguais em nosso direitos. Como não dá para ter um grande governo global, vamos dividir o mundo em Estados Nações e cada Estado Nação tratará seus cidadãos, todos, como cidadãos iguais em seus direitos. Se um for injustiçado, temos um sistema de Justiça que trata a todos de forma igual. Se há desigualdades na sociedade decorrentes de toda história que nos trouxe até aqui, juntos discutimos, reconhecemos essas desigualdades, e fazemos políticas públicas para reduzir o problema. Este é o princípio da democracia liberal. É fazer política de uma forma diferente.

O que está acontecendo agora, e este é o principal alerta do Fukuyama, é que estamos abandonando este princípio para voltar a nos organizar por identidades e seguindo o princípio de que, quando um do meu grupo é ferido, todos se juntam para atacar os outros. Sabe qual o problema desse modelo? Quem ganha é o mais forte. Por que será que pararam de avançar os direitos civis?
A academia de esquerda, faz algumas décadas, parou de olhar para os trabalhadores, para as classes médias baixas, para os pobres, e começou a se concentrar nos temas identitários. Isto levou os partidos de esquerda a tirar o olho dos trabalhadores, das classes médias baixas, dos pobres. Aí, usando a linguagem da opressão, a linguagem do thumos, a direita foi lá e radicalizou quem antes era o núcleo da preocupação da esquerda.

Esta é uma briga que, lutada deste jeito, vai levar à redução de direitos de mulheres, à redução de direitos de negros, redução de direitos da comunidade LGBTQIA+. Porque é o outro lado que arregimenta grupos, divididos por identidades, em maior número. Eles são maioria.
Deixa eu contar outra coisa. Eu não fui o único que precisou ouvir por conta do que eu, e apenas eu, falei. Algumas das mulheres que trabalham comigo, aqui no Meio, foram coagidas a se posicionar. Pressionadas. Sou chefe delas. Elas não têm qualquer responsabilidade sobre o que falo. Não precisam concordar comigo e discordam com frequência, tá? Por que a pressão pelas redes e via mensagens sobrou pra elas?

Algumas pessoas dizem “sou contra cancelamentos, mas isso, mas aquilo.” Esta é uma das razões pelas quais trato este movimento como um macarthismo. Porque é sempre assim. Localizou-se alguém que destoa do discurso: cerque por todos os lados, incluindo as pessoas ao redor. Ameace, ofenda, no limite trabalhe pela aniquilação profissional daquela pessoa. Não é a primeira vez na história que vemos movimentos políticos agindo assim. E é sempre assim. Não importa se é um conflito de clãs na Antiguidade, se é uma guerra religiosa da Idade Moderna, ou se são feministas gritando gaslighting. O processo natural é ninguém do grupo larga a mão de ninguém, vamos partir contra os outros. É um tipo de política de não construir aliados e sempre desconfiar de quem está no grupo de fora. Não são todos os homens, mas é sempre um homem.
Não adianta dizer que é contra cancelamentos. O pacote é um só. O movimento identitário sempre cancela. Sempre pressiona. Sempre vem com uma torrente de ódio. Porque a política que parte do não reconhecimento da pessoa se organiza tribalmente, não se organiza por um sistema universalista de Justiça.

O ponto principal que tentei fazer naquele episódio é que cancelamentos não são um exagero de algumas pessoas. Ataques em massa na internet, sejam de esquerda, sejam da direita, são consequências diretas de formas de um jeito de pensar e reagir a determinadas situações. Existe uma ideologia de esquerda, o identitarismo. Isto não é demérito. Somos pessoas com ideologias, com jeitos de olhar que trazem junto um modelo de sistematizar, de organizar a sociedade. Sempre que eu estou falando aqui, tem um pouco de Locke, tem um pouco de Mill, tem um pouco de Rawls, tem um pouco de Friedman. Tem um pouco de Fukuyama. Meu jeito de olhar é liberal. Mas, vejam, a democracia é liberal. Existe um motivo para considerarmos a democracia liberal o melhor sistema perante todos os outros. Porque ele é o sistema que busca diminuir e punir a violência dentro da sociedade tratando a todos da mesma forma e sem botar um tirano no poder. Nenhuma outra ideologia oferece isso. Mas ela tem algumas pré-condições pra funcionar. Uma delas é deixar o thumos de lado. É sair da tribo e abraçar a humanidade que todos temos em comum.

O identitarismo não leva a uma sociedade melhor. Quem acha que pode ser identitarista e e ser contra cancelamentos está se iludindo. O pacote é um só. Muita gente está convencida de que este caminho levará ao fim das injustiças. Não vai. Justiça em democracia é difícil, mas é uma conquista. É uma conquista maior para as minorias. Ideologias baseadas na correção imediata de tudo que ofende o thumos acirram conflitos. Dividem a sociedade. Estimulam que os outros se organizem também em grupos por identidade. E, de novo, nessa briga quem leva a melhor são os Trumps e são os Bolsonaros.

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