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‘Dahomey’ de Mati Diop joga luz sobre saqueamento de artefatos culturais

Em novembro de 2021, 26 tesouros do reino de Daomé foram devolvidos à atual República do Benim pelo governo francês. Os artefatos foram saqueados com outras milhares de peças pelas tropas coloniais francesas durante a invasão de 1892. O processo de devolução foi registrado em Dahomey, vencedor do Urso de Ouro no Festival de Berlim 2024 e, mais recentemente, do prêmio Lumière, nesta segunda-feira, na categoria de melhor documentário. O longa está disponível na plataforma Mubi.

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Escrito e dirigido pela franco-senegalesa Mati Diop, vencedora do Grand Prix no Festival de Cannes 2019, o longa mostra o processo de devolução das esculturas, da saída de Paris à chegada no Benim, mesclando a curiosidade da população em conhecer parte de sua história por meio das peças culturais, enquanto estudantes debatem a validade de receber a pequena fração dos artigos. Com um olhar perspicaz, a diretora consegue trazer com detalhes os bastidores dessa transição, colocando o espectador literalmente dentro das cenas, como na hora da embalagem das esculturas em caixotes e o voo de volta para casa.

O close é usado como recurso para revelar a beleza particular dos objetos ou mesmo trazer mais informações quanto ao ambiente. Por meio de sons diegéticos e bons enquadramentos, o filme de 68 minutos é construído de maneira a explicitar detalhes do cenário ou a reação contida dos personagens. A luz — ou mesmo a falta dela — é trabalhada para compor a narrativa. O silêncio no filme também ajuda a dar destaque às cenas, auxiliando na imersão do espectador.

O processo de retratar o momento histórico em Dahomey chega a lembrar o olhar do longa brasileiro Entreatos, de João Moreira Salles, que revela os bastidores da campanha eleitoral que deu a Luiz Inácio Lula da Silva seu primeiro mandato presidencial. A câmera que registra o ambiente, como se fosse uma mosca observando os bastidores de uma história que se faz diante das lentes, está presente em ambos os filmes.

Um personagem que ganha vida nessa narrativa, ainda que seja fictícia, é o artefato classificado com o número 26, que revela o tom do documentário logo nas primeiras frases, quando conta que foi escolhido como a melhor vítima do saque feito pelos europeus. Essa ênfase na escolha de números em vez dos nomes originais das peças, feita pelos franceses ao catalogar, denota a tentativa de desumanização e desvalorização das culturas africanas, particularmente beninense pelos colonizadores/invasores.

A parte observativa do documentário traz mais emoção do que o lado poético também presente. As pequenas demonstrações de satisfação em ter as peças de volta podem ser vistas na dança de um homem com roupas tradicionais assistindo ao cortejo das esculturas pelas ruas de Cotonou, desde o aeroporto até o Palais de la Marina, onde ocorre a exposição; ou em um canto sussurrado de um dos trabalhadores do museu, enquanto olha para uma das peças. São esses pequenos detalhes que trazem o sentimento de orgulho e alegria de um povo que volta a reconhecer seu passado e ancestralidade com o repatriamento.

O texto recitado pela voz do artefato 26 permeia as cenas ao longo do filme, cumprindo um papel de crítica ao saque das obras culturais pelos invasores franceses, de maneira poética. Mas, em diversos momentos, soa de uma maneira pejorativamente militante, dispensável na produção, que para trazer o tema do roubo das obras já conta com intensos e produtivos debates dos estudantes da Universidade Abomey-Calavi. Outro recurso que poderia ter sido explorado seriam curtos textos, dando mais informações e importância ao retorno, semelhante ao que foi feito logo no início do filme.

A obra de Mati Diop resgata a necessária discussão sobre reintegrar peças culturais saqueadas de países explorados por colonizadores europeus. Muitas vezes, o debate passa pela alegação das nações saqueadoras de que muitos desses países não têm condições de repatriá-los com o cuidado necessário, seja por falta de infraestrutura adequada ou por questão de segurança, estando em regiões de conflito armado. Mas o resgate desses itens históricos tem sua importância sustentada na restituição da identidade cultural dos povos. “Nenhum de nós será livre espiritual, política e emocionalmente até que essas obras sejam liberadas, até que retornem ao seu devido local de origem. Isso é o mais importante nessas obras. Elas nos dão força e poder”, reflete uma haitiana que visitou a exposição no Benim, referindo-se à necessidade de que os países recebam de volta seus tesouros culturais saqueados.

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