A jornalista, o editor e os identitários
Não é com todo mundo, não, tá? Mas se você for homem, de um determinado grupo da esquerda, você tem um alvo na sua cabeça. Não é todo mundo na esquerda que está a perigo. Sindicalistas não estão. O risco é com uma esquerda urbana, de classe média. Jornalistas, professores universitários, artistas. Se uma mulher de esquerda acusa um homem deste ambiente de comportamento misógino o efeito pode ser de colapso total da vida, da carreira. Ostracismo. O assunto, claro, é o episódio da semana passada do Rádio Novelo Apresenta que foi um ataque desferido contra o editor André Conti, da editora Todavia.
Quero ser muito cuidadoso, aqui, porque o objetivo é ser claro com a natureza da crítica que vou fazer. Estamos vivendo um novo macarthismo. Como todo macarthismo, ele é movido a histeria coletiva, é puritano, e é principalmente intimidador. Todo mundo tem medo de ser acusado. Claro que tem. No momento em que se é acusado, a pessoa terá certeza de três coisas. Não há defesa possível. A acusação já é, por si, um veredito. Por quê? Porque não se pode questionar o acusador. Número dois, que ninguém ouse defender o acusado. Um ou outro até tem a coragem de erguer a cabeça para dizer “peraí”, mas precisa de muita coragem. O ato de defesa atrai pra si todas as culpas do acusado. E, por fim, a acusação de um delito moral dura pra vida toda e isto quer dizer que pode se tornar um sepultamento em vida.
Como sempre acontece com macarthismos, esta é uma história que tem de um lado a democracia, os valores do Iluminismo, a ideia de que todos somos iguais em nossos direitos. De que toda história tem pelo menos dois lados. De que todos somos capazes de crescer, de aprender, de melhorar. De que não somos definidos pelas bobagens que fizemos no passado. De que a vida é complexa, de que as pessoas são complexas. De que todos somos inocentes até que se prove o contrário. Do outro lado está a rejeição de tudo isso. De que o grito da massa se sobrepõe à pessoa. A direita não tem nada a ver com isso. Este macarthismo é de esquerda e se restringe à esquerda. Ninguém da direita pode ser destruído por ele, só gente intelectualizada de esquerda. O que, cá entre nós, é inacreditável. A barbárie vem de quem se diz progressista e lê livros.
E é aqui que quero ser muito, muito cuidadoso. O Rádio Novello Apresenta é, de longe, um dos meus podcasts brasileiros favoritos. A equipe que o faz é incrível. São capazes de contar uma história com uma sofisticação ímpar. E não é à toa porque sua gênese está no melhor podcast serial já feito no Brasil, o Praia dos Ossos. Não existe um produto de narrativa em áudio melhor do que Praia dos Ossos. Não tem. Não em português. E, do Apresenta, tem alguns episódios que já ouvi mais de uma vez. O da origem do Chester. Aquele, da Perdigão. A história da arquiteta Lota de Macedo Soares. A morte do brasileiro Augusto Ruschi, com seu tratamento com o cacique Raoni. Cara, eu poderia ir aqui muito longe. Eu gosto das histórias que eles escolhem, da delicadeza com que pinçam detalhes, da sofisticação narrativa. É um produto muito especial.
Só que a segunda história do episódio da semana passada, narrado pela jornalista Vanessa Bárbara, não tem nada disso. É um ataque covarde. Em inglês o nome deste tipo de jornalismo é hit piece. Uma peça de ataque direto contra uma pessoa. O episódio é puritano, moralista, maniqueísta, e já tem um impacto devastador sobre as vidas do editor André Conti, da sua mulher e filhas. Talvez de sua editora, a Todavia. Vanessa e André foram casados, André teve um caso, quando descoberto negou, falou com amigos o tipo de bobagem que homens de 30 anos falam com amigos. Vanessa leu as mensagens porque instalou um software espião no computador do marido. Se sentiu profundamente humilhada. Foi há catorze anos. Não superou até hoje.
O que essa história tem de excepcional? Com franqueza? Nada. O nome disso é vida. A gente trai, a gente é traído. A gente tem tesão, quem está conosco também tem. A gente espera uma coisa o outro espera outra. A gente se pinta do melhor jeito, pros nossos amigos. Quem está conosco explica outra, pros seus amigos. Do melhor jeito. Claro que dói. Viver é muito perigoso, não contaram pra vocês não? E a gente é neurótico, sabe? Porque a alternativa a ser neurótico é pior. É, eu sei. Sou do tempo em que, na esquerda e no mundo dos jornalistas e escritores, a gente lidava com as dores via Freud. Hoje a ferramenta é outra. É o identitarismo. É na base da disputa de virtudes e opressões. Suco de moralismo. Mas que derrota, hein?
Vocês sabem a quantas anda a investigação a respeito do assédio sexual do ex-ministro Silvio de Almeida? Eu conto. O depoimento da ministra Anielle Franco não foi anexado ainda ao inquérito. Por quê? Não tem explicação oficial. Mas as acusações contra Silvio não estão se concretizando ali onde importa. Não estão ficando de pé na investigação policial. O ministro era uma das maiores estrelas do movimento negro. Uma estrela política da esquerda em ascensão. Foi destruído como pessoa em uma semana. Foi dado direito a defesa? Não. Foi provado alguma coisa? Não.
A regra é clara: se uma mulher acusa um homem de assédio sexual, ele é culpado. Se alguém tenta defendê-lo, bate-se e bate-se duro porque é conivente. Esta é a lógica do identitarismo. Gente, tentaram cancelar como racista duas vezes a historiadora Lilia Schwarcz, uma das intelectuais mais importantes no desenho da compreensão do papel dos negros no Brasil.
E, aliás, alguém sabe aí como está o processo contra o ator Marcius Melhem? Está caindo um após o outro. Uma das conclusões às quais a Justiça já chegou é que há combinação das testemunhas. As mulheres que o acusam combinaram o jogo do que iam falar.
Se você acusa uma pessoa pública de misoginia, de homofobia, de racismo na internet, a acusação é por natureza um veredito. Se o acusado for homem, as chances de escapar da acusação são mínimas. Este pedaço intelectualizado da esquerda está num surto autofágico, tem expectativas irreais a respeito de como seres humanos são, e tomou a decisão de privilegiar a perversidade. Falam em justiça, em garantido, não praticam nada disso.
A vida adulta é boa. Mas, olha, dói. Vai acontecer alguma coisa, em algum momento, que vai fazer doer. É com todos nós. E quanto mais tempo a gente vive, mais momentos de dor vão acontecer. Sabe uma coisa estranhíssima a respeito de dor? É que a gente se apega a ela. Ai fica ruminando aquela coisa. A vida fica pior? Fica. Mas a gente faz. Todos nós, em algum momento da vida, fazemos isso. Mas aí que tem uma arte que é difícil. Me permitam ser muito liberal aqui. É a arte de perceber que é contigo. Se você vai remoer aquela dor o resto da vida ou se você vai se libertar. Se libertar não é fácil, não. Porque a liberdade em relação à dor inclui assumir a responsabilidade de que a vida é sua. Reconhecer a sua parte na criação da dor. Aí desapegar. Então todos nós precisamos, em algum momento, assumir o que está na nossa conta. Decidir se o plano é se apegar à dor, ao que passou, ou deixar ir embora. Se expor a viver algo novo. Deixar o passado ficar pequeno e construir a própria felicidade. É muito liberal isso. Responsabilidade individual. É também budista. É também freudiano. Eu sou do tempo que a gente se sentava num divã pra assumir a responsabilidade pela própria vida. Entre a inteligência brasileira progressista, parece que a prática foi abandonada.
Mas, olha, é bom ser adulto. Mas para ser bom precisa de coragem para assumir o tranco, enfrentar a dor, e deixá-la ir embora. Não ensinamos mais isso. Neste mundo de microagressões, espaços seguros e de considerar que toda mulher, toda pessoa negra, todos na comunidade LGBTQIA+ são vítimas eternas, incapazes de defesa, incapazes de ação, sem agência a respeito de suas próprias histórias, isso se perdeu. Ninguém amadurece mais.
Simone de Beauvoir, Martin Luther King, eles não eram identitários. A coisa pela qual lutavam são os ideais iluministas, a coisa que exigiam, com ação, com ideias, com força, com disposição era o cumprimento das promessas feitas mas não entregues da democracia liberal. Queriam um mundo onde todos são realmente iguais em seus direitos. Um mundo onde as oportunidades são iguais. Betty Friedan, Gloria Steinem.
O identitarismo não luta por isso. Ele se disfarça da mesma luta, só que na prática é outra coisa. O que ele propõe não é uma sociedade igualitária. É o contrário disso. O que ele constrói é uma sociedade fragmentada. Tribalizada. Dividida em grupos organizados por identidade e na qual um grupo disputa com o outro os espaços que existem. A moeda desta disputa vem na forma das opressões sentidas ou percebidas.
O resultado prático é o que estamos assistindo. Tribunais do Santo Ofício puritanos, só que de esquerda. Esses surtos já ocorreram antes na história. É o Terror na Revolução Francesa. Vai-se acusando a todo mundo do grupo interno de anti-revolucionário até a última guilhotina. É o macarthismo americano. Todo mundo é comunista e ai de quem quiser defender. Toda acusação é por natureza veredito. Os identitários não só alimentam a impressão que os eleitores de direita constróem da esquerda. Eles têm também o dom da autodestruição. O problema é o seguinte. Com esta lógica dos cancelamentos, a recusa em amadurecer, ainda vão terminar por criar um clima político que faça vitórias importantes das minorias retrocederem. E isto é imperdoável.