Cá entre Nós – O figurino de Melania Trump
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Falar da roupa de uma primeira-dama ou de uma presidente no dia em que elas ascendem ao poder pode até gerar alguma acusação de machismo contra os comentaristas. “Ah, do terno dos homens ninguém comenta, por que falar do figurino das mulheres?”.
Bem, pra começar, porque ternos são, em sua maioria, todos muito parecidos e de pouca personalidade. E eu aposto que se um presidente ou primeiro-cavalheiro aparecesse com um terno laranja ou completamente destrambelhado numa cerimônia qualquer isso seria, sim, objeto de comentários mil. Aliás, foi só Barack Obama ousar usar um terno bege que isso virou um verdadeiro escândalo anos atrás, pode pesquisar aí.
Mas, além da insipidez do vestuário masculino, a razão para que se devote tanta atenção aos figurinos de mulheres de poder é a seguinte: justamente por saberem que esses comentários viriam de qualquer maneira, elas, espertamente, usam suas roupas para mandar mensagens. Para definir, além de seu estilo, sua agenda.
E Melania Trump, ex-modelo e fashionista, sabe muito bem fazer isso. Conhece o mundo da moda e é cortejada pela indústria fashion. Claro que não perderia a oportunidade de enviar mil recados com sua escolha num dia tão importante quanto o da volta de seu marido, Donald Trump, à Casa Branca.
Pois sua escolha foi a seguinte: um look escuro, azul-marinho, quase negro, um tanto militaresco, sisudo — e, claro, muitíssimo bem cortado e de caimento irretocável em sua trabalhada silhueta. O adorno que poderia suavizar o look, um chapéu arredondado, notadamente fez o contrário, encobrindo seus olhos, dando a ela um aspecto ainda mais sombrio e pesado.
Os pequenos detalhes em off-white, da camisa e da fita do chapéu, ainda emprestaram alguma leveza pontual. Mas, como qualquer fashionista sabe, a combinação do azul com o branco remete imediatamente ao universo navy, da Marinha, e, portanto, também de linguagem militar em boa medida. O salto fino, como de hábito, a colocam um degrau acima dos outros mortais, olhando todos do alto.
Cá entre nós, essas escolhas revelam tanto de Melania quanto de Trump quanto de nós, do que estamos dispostos a interpretar disso tudo. E, por mais frívolo que possa parecer, te convido a fazer esse exercício aqui comigo — no mínimo, pra gente se divertir.
Melania Trump escolheu um designer nova-iorquino chamado Adam Lippes para vesti-la na posse de seu marido. Sua marca tem coisa de 10 anos. E analistas americanos avaliaram que nessa opção ela reforça a mensagem de Trump de que os americanos consumam sua própria indústria e produtos em detrimento de estrangeiros.
Em 2017, quando Trump assumiu pela primeira vez, ela também usou azul. Mas era um look absolutamente oposto ao de ontem. Era um azul suave, num vestido e casaco bastante femininos, com uma pegada bem Jackie Onassis tanto na cor como no corte. Era uma forma de contar ao mundo que ela estava pronta para assumir o papel de primeira-dama, tendo bebido na fonte da mulher que transformou esse papel num equivalente da realeza com sua graça e elegância altamente fotografáveis.
Ela estava recebendo a incumbência de Michelle Obama, que havia feito escolhas de moda muito mais pragmáticas, embora de muita sofisticação e ousadia.
O designer escolhido em 2017 foi Ralph Lauren, um dos maiores símbolos da moda americana feita para americanos e para espalhar o americanismo pelo mundo.
Mas agora Melania mudou mais que o tom do azul. Mudou o tom de sua conduta diante do segundo mandato do marido. Ela nunca foi uma primeira-dama altamente politizada. Sempre se comportou como a espécie de mulher-troféu que topou ser. Segurou a onda das traições, dos impropérios, dos escândalos e, em troca, se manteve com acesso aos bilhões de Trump e ao seu poder.
Quando Trump se enfraqueceu depois de 2020, quando esteve ameaçado de responder criminalmente por incentivar seus seguidores a invadir o Capitólio, e por vários outros crimes, Melania se recolheu. Saiu de cena. Não o abandonou. Mas se preservou.
Até que no ano passado, conforme foi ficando claro que a Justiça americana não iria punir Trump a ponto de tirá-lo da disputa eleitoral e, mais do que isso, que ele tinha chances reais de ganhar, Melania reapareceu. Nem sempre ao seu lado na campanha. E sim lançando uma autobiografia.
Claro que é uma autobiografia chapa-branca, por assim dizer, se é que existe algum outro tipo. Ela mal menciona outras mulheres, muito menos as traições do marido. Glorifica sua trajetória de ter lutado por independência financeira, sem associar isso ao fato de que se casou com um bilionário. Entre as dezenas de fotos que recheiam o livro, a primeira é do passaporte que carregava quando chegou aos Estados Unidos, em 1996, sublinhando a noção de sua batalha pra vencer na vida.
Aí, no livro, ela faz dois movimentos surpreendentes. O primeiro é o de tomar uma posição incisiva pró-aborto, no sentido oposto ao de Trump e do Partido Republicano. Melania não hesita, usa todas as letras ao defender o direito reprodutivo das mulheres como um todo.
O segundo é o de marcar uma nova postura para sua nova fase. Ao narrar o episódio de plágio de um discurso de Michelle Obama, Melania admite que se inspirou na antecessora em suas falas sobre trabalho duro, integridade e gentileza. Em seguida, joga a culpa pelo plágio quase integralmente em sua equipe à época. Quase.
Ela abre espaço para culpar também Donald Trump. Segue um trecho aqui do livro:
“‘Por que o discurso não foi examinado?’, perguntei frustrada a Donald… A partir daí, percebi a importância de estar intimamente envolvida com cada detalhe da minha vida pública. Eu não delegaria mais tarefas específicas nem confiaria em outros para garantir que minha reputação fosse protegida.”
Vejam, ela inclui o marido na turma dos que não merecem sua confiança.
E o que isso tem a ver com sua roupa?
Na minha interpretação, o que Melania fez com seu figurino foi mandar a mensagem de que, agora, ela está “open for businness”, está pronta para fazer as coisas em seus termos, mantendo-se leal a Donald Trump na medida em que isso ainda a beneficiar, mas não mais sob sua sombra. Aquele chapéu que serviu como um campo de proteção para o beijo do cônjuge deixou claro seu distanciamento, que já era evidente antes, e agora está oficializado.
Tem mais uma camada no look, a meu ver. Melania não é uma exemplar típica daquela pegada Handmaid´s Tale, de mulheres puramente submissas e religiosas. Ao mesmo tempo, ela exala alguns valores de fidelidade, lealdade e conservadorismo mais modernos, que a roupa sustenta. É um status de uma mulher que tem, sim, algum grau de autonomia, de poder, de sucesso financeiro, mas que se mantém devota à família e à tal energia masculina que Zuckerberg quer incentivar. E, acima de tudo, que carrega um marcador de classe muito explícito.
Pensa comigo — e foi o querido Juliano Spyer que me apresentou essa ideia e devo agradecê-lo aqui. Essa tendência das trad wives, naqueles vídeos de mulheres que acordam de madrugada para fazer pão para suas famílias, já altamente maquiadas e produzidas, e que enaltecem as qualidades de seus maridos, provedores, mas possivelmente também têm suas carreiras e tal.
Elas nunca aparecem lavando uma privada, esfregando uma roupa, certo? O que isso sugere é que elas têm funcionárias, empregados. O que elas ostentam ali não é somente seu conservadorismo. O que elas ostentam é o tempo que elas têm de se dedicar às tarefas domésticas que elas escolhem, que as dignificam como esposas.
E só mulheres bem de vida podem ostentar isso, né? Elas ostentam o sucesso financeiro de seus maridos. Os equipamentos para ser uma boa dona de casa que elas têm, e que são caros. São mulheres que escolhem estar naquela vida e que são altamente recompensadas por aquilo, inclusive financeiramente.
Então, aquela roupa elegante, recatada e sisuda atende a várias dessas novas posições de Melania. Ela quer se firmar como dona de si e de sua trajetória, até mesmo de suas ideias, ao mesmo tempo em que permanece num casamento em nome da família e dos valores conservadores.
Ficar de olho na maneira que Melania vai se comportar, e se vestir, pode revelar muito de como a extrema direita e o conservadorismo americano enxergam as mulheres e até onde toleram que elas se apresentem pra jogo. E como as mulheres enxergam suas oportunidades nesse movimento.