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Edição de Sábado: Trump e as cortinas de fumaça

Foto: Kamil Krzaczynski/AFP

Quando tomar posse para seu segundo mandato na Casa Branca, na próxima segunda-feira, dia 20, Donald Trump promete fazer as “cabeças girarem”. Bastante afeito a bravatas, disse ao longo dos últimos meses que nas primeiras horas de governo irá anunciar mais de cem ordens executivas. Nos Estados Unidos, essas ordens não exigem aprovação do Congresso, têm força de lei e permanecem em vigor até serem canceladas, revogadas, interrompidas ou expirarem. Essas diretivas presidenciais para agências federais podem afetar tudo, desde imigração e política de fronteira até ação climática, energia e criptomoedas.

Trump prometeu “lançar o maior programa de deportação da história americana.” O pacote de ações prometido representa uma mudança dramática na política de imigração que afetará imigrantes já residentes nos Estados Unidos e migrantes que buscam asilo na fronteira entre os EUA e o México.

O planejamento inclui operações do Serviço de Imigração e Controle de Alfândega dos EUA (ICE) em grandes áreas metropolitanas, o envio de mais recursos do Pentágono para a fronteira sul dos EUA, a imposição de restrições adicionais sobre quem é elegível para entrar nos EUA, além da revogação de políticas da era Biden.

Outro ponto que deve estar entre os primeiros alvos é a questão econômica. Trump prometeu “acabar com a inflação” e parte de seu plano para tornar os Estados Unidos grandes novamente é dar prioridade aos produtos fabricados internamente, tarifando produtos estrangeiros. Em suas falas nos últimos meses, defendeu impor tarifas de 60% sobre importações da China e tarifas de 10-25% sobre produtos de países como México e Canadá, entre outras medidas, alegando que essas ações podem gerar empregos adicionais em fábricas, reduzir o déficit federal e diminuir os preços de produtos fabricados nos EUA ao aumentar o custo de bens estrangeiros. Além de aplicar cortes amplos de impostos, estendendo sua reforma de 2017. Entre as propostas estão tornar as gorjetas isentas de impostos, abolir o imposto sobre pagamentos da previdência social e reduzir o imposto corporativo.

Ainda na seara econômica, espera-se uma mudança em relação às políticas de Estado para as criptomoedas, incluindo a possibilidade de os Estados Unidos criarem uma reserva federal em bitcoin.

O último ponto que deve ocupar a caneta do presidente empossado diz respeito às mudanças climáticas. Trump prometeu interromper os gastos sob a Lei de Redução da Inflação de 2022, a legislação histórica sobre o clima que aumentou dramaticamente o apoio federal para tecnologia de energia limpa e veículos elétricos. E o presidente eleito se comprometeu a retirar os Estados Unidos do Acordo de Paris sobre o clima, reverter uma regulamentação chave destinada a reduzir as emissões de usinas de energia, e revogar uma série de regras importantes destinadas a combater as mudanças climáticas e a poluição do ar e da água. Usando como slogan “perfurar, perfurar, perfurar”, disse que irá a aumentar a produção de combustíveis fósseis nos EUA e ainda quer abrir áreas como o deserto do Ártico para a perfuração de petróleo, o que, segundo ele, reduziria os custos de energia.

Se essas são medidas plausíveis, aos longo do último mês, Trump também lançou ao vento algumas ideias expansionistas que parecem ser pouco exequíveis no curto prazo, como o desejo de tomar o Canal do Panamá, anexar o Canadá, comprar a Groenlândia da Dinamarca e rebatizar o Golfo do México para “Golfo da América”.

Verdades e narrativas

O quanto tudo isso tem de verdadeiro e é possível de ser realizado, só saberemos ao certo depois da posse. Mas o que é possível saber, até pela experiência de ter vivido o primeiro governo Trump, é que muito do que é dito e no tom que é falado, serve para cortina de fumaça para que ele atinja seus objetivos, muitas vezes pessoais. E aí vem a pergunta. Em tempos de guerra de narrativa e de desinformação, como olhar objetivamente para o que o presidente eleito fala e o que realmente faz? A imprensa está preparada para cobrir um novo mandato de Trump sem ser refém de suas narrativas e factóides?

Rosental Calmon Alves, diretor fundador do Knight Center for Journalism in the Americas, lembra que a relação de Trump com a imprensa é conflituosa desde o seu primeiro mandato, quando começa a atacar os jornalistas, e enxerga nisso um grande paradoxo por que os meios de comunicação foram o seu instrumento de ascensão, quando ele era uma celebridade que cavava notas na imprensa nos anos1980, fingindo ser outra pessoa para passar notícias para os tablóides.

“Cobrir o Trump não é como cobrir qualquer presidente, nem como cobrir qualquer maluco, porque há uma desigualdade, uma falta de equilíbrio entre as duas forças, similar à que há no sistema jurídico e político americano, que não é preparado para lidar com um radical, antidemocrático. Isso por que ele é baseado na confiança, em que as pessoas falam a verdade e a mentira é uma anomalia, e, no caso de Trump, ele é um mitômano, a mentira é a normalidade, e não existem proteções para isso”, argumenta.

Alves vê uma ansiedade e um temor grande por parte da imprensa nesses momentos que antecedem a posse na segunda-feira."Isso é importante porque Trump vem com muita força, uma vez que, entre a centena de ordens executivas que ele promete para o início de seu mandato, um dos alvos importantes é a liberdade de imprensa e o ataque direto para intimidar os jornalistas, o chamado chilling effect.

“O que ele aprendeu durante o primeiro mandato com as coisas que não conseguiu fazer, nessas últimas semanas e meses, ele está se organizando para fazer. É muito sério, porque ele disse abertamente que vai tentar caçar licenças de redes de televisão. E há anos ele fala sobre tentar modificar os princípios da primeira emenda [que garante a liberdade de imprensa], mas agora ele tem instrumentos para fazê-lo.”

Alves diz também que a imprensa está mais bem preparada do que no primeiro mandato. Por outro lado, não tem muita fé de que ela tenha aprendido o suficiente para enfrentar essa manipulação midiática que Trump se especializou em fazer. E que faz "não apenas com mucho gusto, mas também com uma habilidade notável de jogar cortinas de fumaça, inventar factóides, etc.".

Outro ponto de atenção que Alves destaca é a relação entre a imprensa tradicional e as big techs, como é o caso recente da Meta, que, segundo ele, deu um cavalo de pau à direita, criando uma tempestade perfeita a favor da mentira e da manipulação dos fatos. "Não é à toa que em seu discurso de despedida o presidente Biden falou claramente sobre os Estados Unidos virando um país dominado por uma oligarquia", recorda, dizendo que o discurso foi muito importante porque remete ao discurso de despedida do presidente Dwight Eisenhower, em 1961, que falava do complexo militar da época, fazendo uma equivalência com o complexo industrial tecnológico de hoje.

Mangueira de mentiras

A opinião de que a junção de Trump com as big techs vai nublar a cobertura jornalística é compartilhada por Cristina Tardáguila, sócia fundadora da agência de checagem de fatos Lupa, que mora em Washington D.C., onde atua como  diretora sênior de programas do International Center for Journalists (ICFJ).

Durante a campanha, ela empreendeu algumas pesquisas sobre desinformação e o público latino e chegou à conclusão de que o tempo da ingenuidade acabou. Quem votou em Trump sabia em quem estava escolhendo e sabia também identificar as fake news.

“A gente chega na eleição de 2024 e agora na posse de 2025 com um eleitorado do Trump que não é enganado pela desinformação. Ele sabe que aquela informação pode não estar de toda correta. Ele tem acesso à informação. Ele sabe que não teve gato sendo comido em Ohio. Ele sabe que o trem de Aragua da Venezuela não está invadindo Washington. O voto no Trump não é um voto de engambelados. Eu não sei nem como é que você pode falar isso de forma mais gritante. Foi um voto consciente”, defende, dizendo que de acordo com a sua pesquisa 62% dos latinos sabiam identificar as notícias falsas.

O que muda em relação ao cenário do primeiro governo Trump, com uso exaustivo de notícias falsas, é que agora o que vinga em relação às teorias da conspiração é muito menos uma frase solta e muito mais uma narrativa. “Quando você submete o eleitor americano a um 2+2=5, ele rejeita, mas quando você diz que existe um deep state que controla o planeta e as elites estão todas conectadas contra os interesses da população, a pessoa tende a acreditar.”

Segundo ela, as grandes narrativas encontradas durante a campanha são o deep state está controlando as grandes figuras políticas dos EUA, existe uma agenda da esquerda para ruir os valores tradicionais da família,` as corporações americanas, incluindo big techs e a imprensa, estão juntas para diminuir a voz do povo, em uma espécie de pacto de censura, e existe uma interferência internacional nos EUA, sobretudo da Rússia.

Independentemente dessas grandes narrativas, Tardáguila defende que "o Trump é o Trump e ele vai fazer o que fez em 2016, que é a tática do firehosing. Ele vai abrir uma mangueira de bosta em cima das pessoas para chamar a atenção para lá enquanto ele está agindo aqui“. Dessa mangueira saem os discursos que ecoaram na campanha, anti-imigrantes, o expansionismo, o ultranacionalismo e a questão dos costumes. ”Enquanto isso, ele vai trabalhar na área econômica, mexer nas tarifas. Aqui a Receita Federal é o Internal Revenue Services (IRS) e ele está anunciando o External Revenue Services, uma nova organização só para trabalhar em impostos, tarifação de produtos externos. Isso é uma coisa que o povo que votou não tem a menor ideia", diz, ressaltando que na área econômica ele deve privilegiar os grandes, com um movimento para a ultraconcentração de renda.

Mas os seus dois maiores temores em relação ao novo governo estão na área de saúde com o Robert Kennedy Jr., “um antivacina louco, conspirador, acobertado por um manto de proteção às crianças” e, de outro lado, a diplomacia com Marco Rubio, “que tem ódio no coração e não sabe o que é o mundo da Venezuela para baixo.”

Glória pessoal

Vivendo em Washington D.C. desde 1980 como correspondente, o jornalista aposentado Paulo Sotero já atravessou muitos governos americanos na ativa, inclusive o primeiro mandato de Trump. Agora aposentado, mais dedicado a curtir os netos, ele cético em relação a quanto o presidente eleito irá de fato conseguir desmantelar o Estado americano, como rezam os planos no Project 2025, um documento de mais de 900 páginas organizado pela Heritage Foundation, um think tank conservador fundado na década de 1970, que traz os alicerces das promessas de campanha trumpistas.

“Como quase tudo em que o Trump mexe, o objetivo é primeiro a glória pessoal dele. Não existe propriamente um objetivo político que você defina como tal. O que vale é o que alimenta o ego dele. Outra coisa é o que alimenta o bolso dele“, defende Sotero.

Mas a sua visão, ao final, é mais otimista. A despeito da retórica, Sotero acredita que nos próximos quatro anos vá haver muita resistência interna nos Estados Unidos, principalmente na questão da imigração. ”Ele não vai conseguir levar seus planos a cabo de uma maneira muito profunda porque a economia para. Esse é um país de imigrantes e, a cada geração, vem um novo contingente de imigrantes e a economia depende disso”, completa.

Sobre a retórica trumpista, Sotero diz que “essas maluquices que ele está anunciando terão consequências. Eu acho que os Estados Unidos saem mais vulneráveis e mais fracos desse período adiante”, arrematando que, apesar de serem ainda muito poderosos, grandes e ricos, o caminho que ele enxerga à frente é de uma lenta decadência.

De olho em 2026, Lula pode admitir Centrão no Planalto

A rasgação de elogios na cerimônia de sanção da reforma tributária tinha propósitos bem definidos. E Lula não economizou nas qualificações ao se referir ao presidente do Congresso, Rodrigo Pacheco (PSD), mostrando, em uma semana na qual o governo teve sua credibilidade testada por conta da crise do Pix, com quem pretende caminhar em 2025, com vistas às eleições de 2026.

Os elogios a Pacheco ocorreram no mesmo dia em que Lula deu ordens ao ministro de Relações Institucionais, Alexandre Padilha (PT-SP), para que deslanchasse as conversas com partidos para um novo desenho da Esplanada dos Ministérios, a ser decidido em fevereiro, após definição das mesas diretoras da Câmara e do Senado. “Eu, até agora, não tive nenhum problema em conviver com um Congresso que parecia adverso”, disse o presidente. “Só pode ser força da democracia o Reginaldo elogiando o Pacheco. Era impossível imaginar um petista elogiando o Pacheco”, disse Lula, referindo-se ao discurso do petista mineiro Reginaldo Lopes, minutos antes, e arrancando risadas da plateia formada, em sua maioria, por ministros e parlamentares. “Você conquistou isso na sua relação com o governo federal”, disse Lula se voltando para Pacheco. “Você, zangado ou sorrindo, a gente consegue aprovar tudo com você”, enfatizou.

Pacheco faz parte do PSD, sigla que tem três ministros e que deve aumentar sua participação no governo neste ano. O partido fez o maior número de prefeituras na última eleição. Lula já disse ao presidente do PSD, Gilberto Kassab, que quer a legenda no apoio à sua candidatura à reeleição no ano que vem. Até dar a Kassab a vaga de vice no lugar de Geraldo Alckmin (PSB-SP) é uma possibilidade.

E é esse clima — com Lula tentando um mar mais sereno no Congresso em 2025 e costurando seu leque de alianças para 2026 — que o Centrão quer aproveitar para fincar bandeira no Palácio do Planalto. O grupo político, formado em sua maioria por deputados e senadores do PSD, União Brasil, MDB, PP e Republicanos, teve sob o comando de Arthur Lira (PP-AL) o controle das emendas parlamentares no governo de Jair Bolsonaro (PL-RJ) e se acostumou a isso. Agora, com o “orçamento secreto” desmantelado principalmente por decisões do ministro Flávio Dino, do Supremo Tribunal Federal (STF), vislumbra a Secretaria de Relações Institucionais (SRI), comandada hoje por Padilha, como a porta mais evidente de entrada na “cozinha” de Lula. Justamente a pasta responsável por coordenar o fluxo do pagamento das emendas em cada votação de interesse do governo no Congresso.

Para a posição, várias possibilidades já foram pensadas, e nenhuma foi descartada até o momento. Só no PSD de Kassab figuram Antônio Britto (BA) e o atual ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira (MG) como nomes possíveis. Silveira, que conta com a amizade de Lula, mas não tem o apoio da sigla para continuar como ministro, abriria espaço para acomodar Pacheco, de saída da Presidência do Senado, em uma pasta que tem tudo a ver com Minas Gerais, estado onde a atividade mineradora é forte. Mas Lula quer de Pacheco mais que os dois anos dedicados à pasta. Quer o compromisso de que ele será candidato do governo. Lula não pode desistir de ter um palanque forte em Minas para fazer frente ao bolsonarismo de Romeu Zema e enxerga Pacheco como o político mais capaz de montar esse palco. O PSD da Câmara reclama uma pasta no governo e, nas conversas informais, tem levado ao Planalto apoio ao nome de Padilha para o Ministério da Saúde e, assim, desocupando a SRI.

Kassab tem encontro marcado com Lula para a próxima quinta-feira, em Brasília. No PT e no Planalto, a ideia de entregar a articulação política para o Centrão tem sido mais aceita, principalmente pelo entendimento de que o governo está cada vez mais dependente de composições. É claro que há reclamações generalizadas de que o governo Lula 3 não tem uma marca forte, fator que motivou a vinda do publicitário Sidônio Palmeira para a Secom. Mas o pragmatismo da governabilidade está introjetado no partido e no governo. Os dois não querem embates fortes com o Centrão em 2025.  “Nada contra o Padilha, mas colocar no Planalto alguém que não seja do PT é uma forma de evitar o antigo chavão que persiste na Câmara de que o PT não aceita nada que não seja petista”, disse ao Meio um membro histórico do partido.

Além do PSD, outras siglas do Centrão apresentam nomes que podem assumir a SRI. No caso do Republicanos, a opção seria o atual ministro de Portos e Aeroportos, o pernambucano Silvio Costa Filho. Ele conta com a simpatia de congressistas e de Lula, por ser filho de um amigo do presidente: o ex-deputado Silvio Costa. No MDB, Isnaldo Bulhões (AL) também é um nome ventilado para a pasta. Ele tem um trânsito excelente entre parlamentares, mas existe entre interlocutores do presidente a avaliação de que, das legendas que integram o Centrão, somente o PSD é sub-representado no governo e, portanto, deve ser o único partido a ganhar mais cargos com a reforma.

Trio

Lula terá que cumprir outras missões com a reforma ministerial, mas, entre as principais estão as acomodações de três personagens importantes: Pacheco, Lira, que entregará a Presidência da Câmara em fevereiro, e da presidente do PT, a deputada catarinense Gleisi Hoffmann, que era cotada para ser ministra no início do governo, mas teve que encarar mais dois anos no comando da legenda a mando de Lula.

Lira queria o Ministério da Saúde, mas já sabe que não terá. Diante disso, pode levar a pasta da Agricultura, hoje comandada por Carlos Fávaro (PSD-MT). Lira quer ser candidato ao Senado, com apoio de Lula, em 2026. Para isso, terá que dividir a chapa alagoana com seu arqui-inimigo político, Renan Calheiros (MDB-AL). Lula já topou o palanque duplo. Lira também. Restará a Renan apenas aceitar a condição.

Gleisi já avisou que quer ser ministra. Primeiramente, ela queria a pasta do Desenvolvimento Social, que toca a principal marca do PT, o programa Bolsa Família, mas Lula resistiu em tirar do posto o atual ministro Wellington Dias (PT-PI). Ela também não quer a pasta de Mulheres, hoje na mão de Cida Gonçalves. Gleisi é um nome cotado para assumir a Secretaria Geral, no lugar de Marcio Macedo (PT-SE). Uma vez no Planalto, Gleisi seria uma das pessoas mais próximas do presidente, ocupando um cargo com interlocução diária. Ela não falaria só sobre a questão social, mas sobre qualquer assunto do governo. E é por isso que seu nome encontra resistências vindas do seu próprio partido. Não é do agrado dos petistas palacianos, Rui Costa e Padilha, a chegada de Gleisi ao Planalto. Nem agrada ao ministro da Fazenda, Fernando Haddad, que já protagonizou com Gleisi embates públicos relacionados ao arcabouço fiscal.

Diante dessas e de muitas outras peças do quebra-cabeças, Lula espera anunciar a reforma em fevereiro, depois de definidos os cargos na direção da Câmara e do Senado. Ele sabe que é um xadrez complexo que dependerá de habilidade para não comprometer sua saúde política em 2026.

No Brasil não há homem para mim

“Eu também tô cansada.”

Essa foi a resposta de uma amiga ao desabafo de outra, sem paciência para lidar com mais uma atitude enquadrada como “tipicamente masculina”.

Era um papo cotidiano num bar qualquer, mas o cansaço de homens — consideremos aqui o recorte homem cis, classe média e alta, heterossexual — pareceu ter se instaurado em várias conversas daquele núcleo de amigas.
O algoritmo das redes sociais – claramente influenciado pelo histórico daqueles papos – resolveu sugerir conteúdos que mostravam mulheres, das mais variadas idades e com os mais diversos perfis, contando suas desventuras amorosas. No meio disso, surge um termo, ou melhor, um fenômeno: o boysober.

Assim nasceu essa matéria, caros leitores.

Mas antes de avançar, um desenho sobre quem escreve esse texto: duas mulheres cis, hétero e brancas. Uma de 36 anos, paulista do ABC, vivendo no Rio de Janeiro há sete anos. Outra de 32 anos, nascida no subúrbio carioca, que passou a adolescência na Barra da Tijuca e é atual moradora da Zona Sul.

Ambas estão solteiras, mas já viveram relacionamentos sérios — que para uma se traduz em um casamento de sete anos e, para a outra, em um namoro de três. As duas já passaram por desilusões amorosas, comportamentos abusivos, relações medianas e encontros frustrantes (mas que rendem entretenimento de qualidade para o grupo de amigas). E mesmo sem aderirem ao boysober, não foi nada difícil entender o motivo da existência do movimento de “estar sóbria de garotos”.

É preciso esclarecer que a premissa da corrente, muito mais que evitar relacionamentos, é não priorizá-los. E isso é um direito recente na vida das mulheres, condicionadas, desde a infância, a procurar um “príncipe”. Um final feliz só seria possível com um parceiro, um amor, um homem.  Entre as adeptas do boysober estão principalmente aquelas que decidiram romper com essa ideia e investir em outras necessidades.

“Eu prefiro ficar na minha. Se aparecer alguém maneiro, beleza, estou aberta. Mas não fico procurando, sabe?”, resume Maria Martha*, 40 anos. De uma família de classe média do sul fluminense, ela conta que sua criação nunca foi voltada ao casamento. “Sempre fui muito mais incentivada a olhar para as coisas que eu gosto, para as quais eu tenho talento. E sempre tive grandes paixões, como cinema e música. Então acho que isso se reflete na forma como eu me relaciono hoje”, completa.

Primeiro motivo posto, vamos a outros, que podem causar uma certa preguiça de um relacionamento: falta de comunicação, imaturidade, dificuldade em dividir tarefas e até algumas que interrompem o que ainda é “quase algo”, como o comportamento que hoje é chamado de love bombing, mas que é o famoso “papo furado”, e o ghosting, antes conhecido como “chá de sumiço”.Quase sempre, um vem seguido do outro.

Insatisfação coletiva

A intenção desse texto não é demonizar homens, mas convidá-los à leitura. E nem é nossa ideia tentar simplificar e pasteurizar dinâmicas relacionais, que de perto nunca terão nada de simples. Mas de onde vem essa insatisfação coletiva com a classe masculina, hein?

Ao ser perguntado se o boysober é percebido no consultório, o psicanalista e professor da Universidade de São Paulo (USP) Christian Dunker diz que o fenômeno têm mais de uma década. E o associa a diferentes movimentos, desde a mudança do lugar social da mulher, à conquista de posições mais hierarquicamente elevadas e à maior participação em plataformas de transformação organizadas, como o feminismo. "Houve uma transformação das mulheres, e já há muito tempo também tem um diagnóstico de que essa transformação não tem encontrado um correlato à altura do lado dos homens”, diz.

Não foi à toa que o feminismo e o novo papel social da mulher foram parar no divã. Quando pesquisadores começaram a se perguntar como a geração Z podia ser hiper progressista em certas questões, mas surpreendentemente conservadora em outras, descobriram a resposta no recorte de gênero. No Reino Unido, as mulheres com idades entre 18 e 30 anos são 25 pontos percentuais mais progressistas do que os homens da mesma faixa etária. Na Alemanha e nos Estados Unidos, a diferença sobe para 30 pontos.

“O homem hoje em dia se sente perdido”, diz Gabriel Paiva* ao ser perguntado sobre como acha que os amigos lidam com flertes, namoros e casamentos. Aos 42 anos, ele é engenheiro e policial de um grupo de operações especiais, e está em um relacionamento heterossexual. “O comportamento da mulher mudou. Quando o homem vê uma mulher batendo de frente, com espontaneidade e sem submissão, o cara que foi criado num ambiente muito machista acha que está tudo de cabeça para baixo. Ele pensa: na minha vez deu ruim. Por conta desse contexto, hoje em dia é mais difícil se relacionar”, diz.

“Mas então é a política que está acabando com os relacionamentos?”, você, leitor, pode perguntar. A resposta é: não. “No amor, a nossa experiência muitas vezes depõe contra nós. Ao invés de elaborar as coisas que não foram legais, as relações que podem ter sido tóxicas ou abusivas, os lutos, a gente carrega essas histórias como gabaritos para tentar se poupar de possíveis novas histórias que nos façam mal”, explica a psicanalista, pesquisadora de relacionamentos e fundadora do podcast Amores Possíveis, Carol Tilkian, que alerta para algumas “armadilhas”.

“O perigo é que nada une as pessoas tão rápido quanto um inimigo comum. Quando a gente fala de boysober, a gente coloca o homem como se ele fosse o grande componente tóxico da relação, assim como o álcool. Quando colocamos o outro como vilão, estamos tirando nossa responsabilidade da construção do vínculo. Vivemos numa sociedade machista, patriarcal, mas isso está em nós, mulheres, também. E, se colocar contra os homens, sendo você uma mulher heterossexual, não vai resolver a sua vontade de se vincular”, conclui.

Mas por onde passa o calcanhar de Aquiles do vínculo hoje? Dentre vários possíveis fatores, um que se destaca é a comunicação. Ou a falta dela. “O maior problema dos relacionamentos com homens heterossexuais atualmente é a falta de diálogo. Os caras são muito imaturos, não sabem dizer o que sentem, o que querem. Eles basicamente só dizem o que a gente quer ouvir, ou melhor, o que acham que a gente quer ouvir. E depois agem como se a gente fosse maluca”, diz Verônica Pereira, de 32 anos e solteira há dois, depois de 11 anos de namoro.

Do outro lado da corda, vemos que essa percepção é real. Perguntado se costuma desabafar com os amigos, Gabriel* respondeu que “nunca faz isso”. A forma como lida com os sentimentos, segundo ele, é: “pensando, analisando e oprimindo. Mas eu não acho isso tão ruim. Acho que me torna mais firme”.

“Com os meus amigos eu não falo sobre as minhas angústias, os meus conflitos, meus paradoxos de vida. Homem costuma falar sobre coisas mais palpáveis, preocupações do dia a dia, trabalho, família”, faz coro Vicente Ximenes*, ator e empresário de 32 anos.

Além da dificuldade de comunicação, um outro fator — bastante relevante — influencia fundamentalmente as relações hoje: a internet. Para Carol, as fórmulas mágicas para manutenção do bem estar e da nossa saúde mental promovidas no Instagram geram um grande dano. “Tem um hiper diagnóstico da internet que é muito nocivo. E eu já recebi alguns pacientes homens que vêm completamente implicados em saber se são narcisistas ou tóxicos porque as companheiras disseram isso. E muitas vezes a base é um carrossel no Instagram. Porque agora todo mundo virou psicólogo, psiquiatra, psicanalista e os diagnósticos são feitos com reels e vídeos no TikTok”, diz.

Relacionar-se não é uma ciência exata, mas um terreno onde se entrelaçam desejos, expectativas, frustrações e aprendizados. No fim das contas, o amor é um projeto em constante construção, e, como tal, demanda esforço e entrega. Como bem pontuou Carol Tilkian: “Um convite que sempre faço às pessoas é se permitir ter relações que são mais sentidas e menos entendidas. Porque o nosso grande problema é querer resolver, ao invés de aprender a conviver.” Talvez o segredo esteja aí: menos respostas prontas, mais escuta e presença. Topa o desafio?

*Nomes fictícios em respeito ao anonimato

O vai e vem do governo com a regulamentação das transações via Pix, depois de o vídeo do deputado Nikolas Ferreira (PL-MG) com críticas à medida viralizar, dominou as conversas nos últimos dias. Mas os incêndios de Los Angeles e lugares inusitados para viajar também tiveram seu momento. Confira os mais clicados da semana:

1. BBC: Vídeo mostra o antes e o depois de quarteirões inteiros destruídos pelo fogo em Los Angeles.

2. Globo: Os mitos e as verdades a respeito da fiscalização sobre transações via Pix acima de R$ 5 mil por mês feitas por pessoas físicas.

3. Meio: No Ponto de Partida, Pedro Doria explica as mudanças propostas pelo governo de acompanhamento das transações pelas fintechs e a relação dessas transformações com nosso mercado informal.

4. BBC: Os 25 melhores lugares para se viajar em 2025, de lagos cor de chiclete na Austrália a um acampamento de safári movido a energia solar em Botsuana.

5. Meio: Também no Ponto de Partida, Pedro Doria argumenta que o vídeo de Nikolas Ferreira sobre o Pix traz exageros retóricos, mas que a questão principal talvez seja a de que a sociedade não gostou da decisão do governo.

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