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A casa de ‘Ainda Estou Aqui’

Três operários conversam enquanto trabalham nos últimos detalhes de uma longa reforma que, entre outras coisas, restaurou a fachada com as cores originais e instalou um elevador externo. “Pode fotografar”, adianta-se um deles. “É por causa do filme, né?”, pergunta, acostumado ao movimento recente. Na varanda do segundo andar, uma placa onde se lê “vende-se”.

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A casa tem dois andares, paredes brancas e janelas verdes que guardam seis quartos e 700 metros quadrados. Mais de 2,5 milhões de brasileiros já viram Ainda Estou Aqui, filme nacional mais assistido no pós-pandemia. Além de Eunice Paiva, de Rubens, seus filhos, amigos e os agentes da repressão, o longa de Walter Salles tem mais um personagem marcante: o endereço onde se passa quase toda a história.

Mais do que cenário, é o lugar onde Salles leva os espectadores, onde a trama se desenrola, onde os Paiva são felizes antes de Rubens desaparecer para sempre nas mãos dos militares. Em um momento do filme, a casa aparece vazia.

“É uma das cenas mais emocionantes para mim, depois que a família se muda para São Paulo”, comenta Kennedy Fernandes, que foi duas vezes ao cinema. “Tem também a cena em que o cachorro é enterrado no jardim central. E, no fim, a gente vê uma tomada sem os móveis do salão até a garagem. É curioso: enquanto assistia, eu me sentia parte do filme.”

Faz todo sentido. Se não fosse ele e sua mulher, Lúcia Freitas, não haveria aquela casa – haveria uma, mas não seria aquela. Kennedy e Lúcia são os donos da residência na esquina da Rua Roquete Pinto com Avenida João Luiz Alves, de frente para o Cristo e de costas para o vizinho Pão de Açúcar, na Urca, Rio de Janeiro.

Logo que a compraram de um amigo, em 2021, foram procurados por Camila Leal Ferreira, coordenadora de produção executiva da produtora VideoFilmes, que já havia percorrido meia cidade atrás de um imóvel parecido com aquele no qual os Paiva viveram na praia do Leblon, que virou um restaurante francês antes de ser demolido e abrigar, desde 1981, um edifício chamado Saint Paul de Vence – nome de uma velha cidadezinha no sul da França, amada por Matisse e Chagall, que em nada se assemelha ao bairro carioca.

Pode-se dizer que foi uma procura de sete anos, tempo que durou o desenvolvimento do projeto. Outros produtores de locação mapearam, em épocas distintas, opções até em outras cidades, até Salles decidir, em 2021, que a filmagem seria no Rio e que precisavam de um lugar perto do mar.

“Comecei a investigação por informações sobre o imóvel original, planta, projeto e a única foto que tínhamos, quando já era o restaurante Cave Aux Fromage, além de um desenho feito a lápis por Nalu Paiva, que se lembrava muito bem da organização dos cômodos”, conta Camila citando Ana Lúcia, filha do casal.

À esquerda, foto da revista ‘Manchete’; ao lado, imagem de uma das cenas mais lembradas do filme

À esquerda, foto da revista ‘Manchete’; à direita, uma das cenas mais lembradas do filme

O primeiro passo foi procurar mais fotos. Para isso, ela visitou várias vezes o prédio de apenas cinco apartamentos que ocupa o endereço no Leblon, procurando alguém que pudesse ter registros.

“Descobri o nome da construtora do prédio e o endereço do antigo engenheiro responsável pela obra. Panfletei pelas ruas do Leblon, vasculhei grupos de WhatsApp do bairro. Contamos desde o início com Antonio Venancio, pesquisador de imagens reconhecido, e ele conseguiu encontrar mais fotografias. E com isso em mãos eu andei a cidade, da Zona Sul até o Recreio dos Bandeirantes”, lembra.

Só que não há muitas casas de frente para o mar no Rio, e menos ainda que pudessem virar locação. Foram diversas idas à Urca até a equipe selecionar seis endereços. Camila falou com os proprietários e visitou cada um – foram três idas à Rua Roquete Pinto. “A pessoa que atendia o interfone não queria muita conversa, primeiro disse que estava com Covid-19, depois que o dono não estava, e na terceira tentativa descobri que a família estava de mudança, pois a casa havia sido vendida”, diz Camila.

Ela se refere à família Savini. Um vídeo postado há poucos dias nas redes sociais pela estudante de direito Lívia Savini, com imagens do tempo em que ela e seus familiares viveram no local, viralizou com milhares de curtidas – inclusive da atriz Fernanda Torres, que reagiu com um emoji de coração. A legenda do post: Não estou mais aqui. Se você chorou muito vendo esse filme, imagine a gente que morou na casa antes da gravação”.

Dias depois, Camila conheceu Lúcia e Kennedy. “Eles foram muito gentis, abraçaram o projeto e aí deu tudo certo. Carlos Conti, o produtor de arte do filme, veio ao Brasil conhecer a casa e, quando pisou nela pela primeira vez, soube que era ali”, lembra.

“A impressionante semelhança entre a casa original e a da Urca foi resultado da pesquisa, e só conseguimos chegar a isso porque Antonio Venancio encontrou mais fotos, o que norteou minha procura. Quanto à disposição interna dos cômodos, foi uma coincidência, as casas são espacialmente parecidas. Em Veneza, na estreia do filme, eu me sentei ao lado da Babiu Paiva (Maria Beatriz, caçula dos cinco irmãos). Quando a casa apareceu na tela, ela disse emocionadíssima: Nossa! Igualzinha!’”

Coproprietários do Teatro dos 4, no Shopping da Gávea, o casal está junto há 13 anos. Resistiram inicialmente porque queriam se mudar para a casa, mas acabaram cedendo e a alugando para a produção de Ainda Estou Aqui por pouco mais de um ano. “Somos de arte e o amor pela arte falou mais alto”, conta.

A principal modificação no interior do imóvel feita pela equipe de Salles foi na sala: no filme, ela foi dividida em dois ambientes (sala e biblioteca). A fachada foi envelhecida, ganhando um tom meio sépia, e as grades sobre o muro foram tiradas. Também houve troca do portão e uma obra na varanda. Kennedy fala com emoção sobre o filme ter sido gravado lá. Conta que o diretor gostou tanto dela que pensaram que ele iria comprá-la. Até hoje, Kennedy e Lúcia não dormiram sequer uma noite no local. Eles moram em outra residência a poucos metros de distância.

Os dois não têm e nem terão filhos. Compraram o imóvel e, após a gravação do filme, instalaram o elevador pensando em viver nele com dona Célia, mãe de Lúcia. Mas ela morreu há poucos meses aos 94 anos de idade. “Depois disso, Lúcia perdeu a vontade. Foi sua mãe quem escolheu as plantas, quem sou tudo, estava feliz com a mudança. Por isso colocamos à venda, mas não acho uma maravilha fazer isso”, diz, explicando a placa que desperta interesse dos vizinhos e fãs do filme.

Eles, que pagaram R$ 14 milhões no imóvel, não definiram um valor para revendê-lo. Kennedy afirma que ainda pensa em mantê-lo, agora que a reforma está chegando ao fim. “Penso muito em curtir esse lugar. Temos que entrar sempre em acordo, então cedi à Lúcia, mas a verdade é que gostaria de morar lá nem que seja por seis meses”, confessa. “Quero apreciar a casa com os fantasmas de Ainda Estou Aqui.”

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