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O papel central da comunicação no golpe

Foto: Nelson Almeida/AFP

Cola que uniu as diferentes operações golpistas, foi arma para moldar a percepção pública e ferramenta de pressão

A comunicação não foi um elemento coadjuvante, mas a cola que uniu as diferentes operações golpistas, a arma para moldar a percepção pública e a ferramenta para pressionar as instituições. Essa é a principal conclusão do relatório de quase 900 páginas produzido pelo departamento de inteligência da Polícia Federal sobre o planejamento do golpe de Estado bolsonarista de 2022, parcialmente executado.

Obviamente, um golpe não se concretiza apenas com comunicação. Além da sofisticada operação comunicacional, os golpistas colocaram em marcha uma série de outras iniciativas para criar condições favoráveis ao golpe de Estado e, posteriormente, consolidar o governo. Entre essas iniciativas, emergiram revelações estarrecedoras, como a "Operação Copa 2022“, envolvendo militares das Forças Especiais (”Kids Pretos“) em um plano para sequestrar ou assassinar o Ministro Alexandre de Moraes. Também veio à tona o planejamento de um "Gabinete de Crise", projetado para ser implementado após a consumação do golpe, com o objetivo de consolidar o poder e instituir medidas autoritárias.

Nesse conjunto, entretanto, a comunicação desempenhou um papel central sob diversos aspectos. A análise dos relatórios da Polícia Federal permite traçar um panorama do lugar reservado à comunicação no planejamento, execução e legitimação do golpe bolsonarista. A construção de uma narrativa fraudulenta sobre as eleições, a disseminação de desinformação, a manipulação da opinião pública e os ataques sistemáticos a opositores foram elementos fundamentais da estratégia golpista.

É a primeira vez que um relato sobre a estratégia de comunicação bolsonarista não provém de jornalistas ou pesquisadores, mas de uma investigação policial.

Embora nada disso seja novidade para especialistas em comunicação e política ou leitores atentos de jornais, três aspectos dessa história merecem atenção. Primeiro, é a primeira vez que um relato sobre a estratégia de comunicação bolsonarista não provém de jornalistas ou pesquisadores, mas de uma investigação policial, baseada em uma vasta coleção de provas documentais e depoimentos autenticados pela própria polícia. Segundo, o relatório fornece um desenho detalhado do papel atribuído à comunicação numa operação militar, visto pela perspectiva de seus planejadores e executores. Terceiro, é a primeira vez que se revela o papel planejado para a comunicação no “dia seguinte” ao golpe, caso tivesse sido bem-sucedido.
Afinal, qual foi o papel da comunicação na estratégia bolsonarista de construção, execução e legitimação de um golpe de Estado?

A importância da narrativa da fraude eleitoral

Em primeiro lugar, a estratégia comunicacional buscava justificar todas as ações em curso. A tentativa de golpe se apoiou na construção e disseminação de uma "narrativa de fraude eleitoral", forjada com base em alegações sabidamente falsas ou sem qualquer lastro na realidade, e no esforço para dotá-la de plausibilidade. Sem essa narrativa, ações como a pressão sobre os militares, a mobilização de apoiadores e as operações clandestinas teriam sido ineficazes.

Essa narrativa tornou-se o principal motor da mobilização, da deslegitimação do processo eleitoral e da incitação à ruptura institucional. A comunicação foi instrumental para convencer parte da população de que as eleições haviam sido fraudadas e que uma intervenção militar seria necessária para ”restaurar a ordem”. Tal narrativa serviu de justificativa para a adoção de medidas antidemocráticas, como atacar instituições, censurar opositores, perseguir críticos e tentar tomar o poder à força.

Os relatórios da PF apontam para ações coordenadas destinadas a desacreditar o sistema eleitoral brasileiro, semeando dúvidas sobre a lisura e segurança das urnas eletrônicas. Além disso, revelam que a estrutura do Estado foi mobilizada para esse propósito. O então presidente Jair Bolsonaro, ministros, assessores e servidores públicos usaram seus cargos para disseminar informações falsas, cooptar apoiadores e pressionar instituições.

Manipulação da opinião pública e mobilização de apoiadores

A desinformação foi utilizada sistematicamente para manipular a opinião pública e criar um clima de incerteza eleitoral e angústia. A investigação da Polícia Federal identificou a participação de influenciadores digitais na disseminação das narrativas que fomentavam angústia, raiva e medo, além de criar uma expectativa por uma intervenção que pudesse “virar a mesa”. Esses indivíduos, com grande alcance nas redes sociais, amplificaram a desinformação e ajudaram a construir um clima de polarização e extremismo. Essa rede utilizava diferentes canais de comunicação — aplicativos de mensagens, redes sociais, vídeos, entrevistas — para atingir um público amplo e potencializar o impacto das informações falsas.

A comunicação também foi usada como arma para atacar e deslegitimar opositores, principalmente ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Acusações infundadas, ataques pessoais e campanhas de difamação buscavam silenciar vozes críticas, intimidar o Judiciário e enfraquecer a democracia. A estratégia golpista fundamentava-se na erosão da confiança nas instituições democráticas. Assim, a desinformação, os ataques e a narrativa de fraude visavam minar a credibilidade do Judiciário, do processo eleitoral e da imprensa, pavimentando o caminho para a ruptura institucional.

Em alguns casos, a comunicação foi usada para incitar a violência contra opositores e instituições. Figuras como Paulo Figueiredo, com forte influência no meio militar, foram empregadas para amplificar a narrativa golpista, incitar a população e atacar críticos do governo. Discursos e mensagens, como o áudio da deputada Carla Zambelli, convocavam a população para manifestações em defesa da “liberdade de expressão”, disfarçando a real intenção de pressionar as instituições e promover a ruptura democrática.

Por fim, a comunicação teve um papel determinante na mobilização dos apoiadores do golpe para a ação. Convocações para manifestações, instruções para atos violentos e a disseminação de um clima de urgência e “guerra” culminaram na invasão do Congresso Nacional, do STF e do Palácio do Planalto em 8 de janeiro de 2023.

Pressão sobre militares e vínculo com militantes

Além disso, como demonstrado no episódio da carta ao comandante do Exército, a comunicação funcionou como catalisador para pressionar o Alto Comando e mobilizar apoiadores. A divulgação de uma carta supostamente escrita por oficiais do Exército, expressando descontentamento com o processo eleitoral, tinha o objetivo de criar a falsa impressão de um racha dentro das Forças Armadas e alimentar a narrativa de um golpe iminente. A análise revela que a carta foi elaborada e divulgada de forma coordenada pelos golpistas, usando a comunicação estratégica para manipular a percepção pública. Além de influenciar a opinião pública, a carta buscava pressionar o Alto Comando do Exército, simulando amplo apoio ao golpe dentro das Forças Armadas.

A comunicação também foi utilizada para atacar comandantes que se recusavam a aderir ao golpe, tentando isolá-los e enfraquecê-los dentro das Forças Armadas. Mensagens difamatórias, notícias falsas e ataques pessoais visaram minar a reputação de comandantes legalistas, como o General Freire Gomes, e silenciar sua oposição.

Simultaneamente, a comunicação foi essencial para estabelecer um vínculo entre os golpistas e os manifestantes, convocando os primeiros à ação, disseminando instruções e incitando a radicalização. A presença constante de militares em grupos de WhatsApp de manifestantes comprova a centralidade da comunicação na mobilização e na manutenção de um estado de prontidão para “fazer alguma coisa”.

Além disso, a comunicação foi usada para criar a imagem de um movimento popular massivo e espontâneo, com ampla penetração social em apoio ao golpe. Essa construção servia para pressionar os militares, tranquilizar financiadores e intimidar opositores.

O papel da comunicação quando o golpe foi descoberto

Os documentos apreendidos e os depoimentos obtidos revelam que a comunicação continuou a desempenhar um papel importante mesmo após o golpe ser desmascarado, concentrando-se em três estratégias principais: controle de danos, ataque à credibilidade das investigações e manutenção da base mobilizada.

Após a falha da tentativa de golpe em 15 de dezembro de 2022, o grupo se preocupou em minimizar os danos e evitar a responsabilização pelos atos praticados. A supressão de provas, como a exclusão de mensagens, e a preocupação com a narrativa midiática tornaram-se prioridades. Além disso, os golpistas buscaram desacreditar a investigação da Polícia Federal e o processo judicial, questionando a legalidade das prisões dos envolvidos nos atos golpistas de 8 de janeiro. Documentos com “aparência de legalidade” foram elaborados, e narrativas culpando opositores, como o então Ministro da Justiça Flávio Dino, foram disseminadas para tentar anular as medidas cautelares e influenciar a opinião pública, segundo a PF.

Por fim, mesmo com o fracasso inicial, os golpistas continuaram a se comunicar com seus apoiadores, mantendo a base mobilizada e alimentando a esperança de uma nova ruptura institucional. As mensagens e documentos apreendidos mostram que o grupo ainda esperava que o então presidente Jair Bolsonaro assinasse o decreto golpista, contando com o apoio das Forças Armadas.

Previsões sobre a comunicação pós-golpe

Alguns elementos presentes no relatório sugerem que os golpistas planejavam exercer um rígido controle da informação e suprimir vozes dissidentes na fase pós-golpe. A minuta de um “Gabinete Institucional de Gestão da Crise”, encontrada nos arquivos de Mario Fernandes, indica a intenção de centralizar a comunicação e coordenar as ações de inteligência e contrainteligência. Esse gabinete, composto majoritariamente por militares, teria como função assessorar o então presidente Jair Bolsonaro na implementação das medidas previstas no decreto golpista, incluindo a gestão da comunicação com a sociedade e a comunidade internacional.

O documento “Desenho Op Luneta”, elaborado por Hélio Ferreira Lima, prevê ações no “campo informacional” como parte integrante do plano golpista. Embora essas ações não sejam detalhadas, o texto aponta para uma intenção clara de controlar a narrativa pública e influenciar a opinião da sociedade. Além disso, o mesmo documento menciona a necessidade de “neutralizar a capacidade de atuação do MIN AM”, uma referência direta ao Ministro Alexandre de Moraes. Esse objetivo revela a intenção de silenciar vozes críticas e exercer domínio sobre o fluxo de informações no cenário pós-golpe.

É plausível inferir que, em um cenário pós-golpe, essa estrutura de comunicação seria utilizada para reforçar a narrativa do novo regime e censurar qualquer oposição.

A investigação identificou a participação de diversos militares na disseminação de desinformação e ataques direcionados a opositores do governo Bolsonaro. É plausível inferir que, em um cenário pós-golpe, essa estrutura de comunicação seria utilizada para reforçar a narrativa do novo regime e censurar qualquer oposição.

Nesse contexto, é possível deduzir que a comunicação pós-golpe seria central para legitimar o novo regime e obter apoio, tanto da população quanto da comunidade internacional. A narrativa golpista estava ancorada na ideia de que o Brasil enfrentava uma suposta ameaça de conspiração comunista, o que justificaria uma intervenção militar para “salvar a nação”. Após a consolidação do golpe, essa narrativa provavelmente seria intensificada, a fim de justificar a tomada de poder e apresentar a nova ordem como necessária e legítima.

O Gabinete de Crise e os militares envolvidos na comunicação desempenhariam um papel estratégico na propagação dessa narrativa, utilizando todos os meios disponíveis, incluindo a mídia tradicional, as redes sociais e eventos públicos.

A comunicação estratégica, portanto, foi uma ferramenta essencial na tentativa de golpe, presente em todas as suas etapas: da construção de uma narrativa fraudulenta à mobilização dos apoiadores, passando pela tentativa de silenciar opositores e consolidar o poder. A análise das fontes revela a sofisticação dessa estratégia, que se apropriou de conceitos militares e adaptou táticas da milícia digital para manipular a opinião pública, incitar violência e pressionar as instituições democráticas. Embora a investigação sobre a comunicação golpista ainda esteja em andamento, as evidências já destacam a relevância desse recurso como arma para subverter a democracia.


*Wilson Gomes é doutor em filosofia, professor titular da Universidade Federal da Bahia e autor de "Crônica de uma Tragédia Anunciada".

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