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Os cinco que evitaram o golpe

Quem salvou o Brasil?

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A coragem de cinco generais e a covardia de Jair Bolsonaro salvaram o Brasil.

São ao todo oitocentas e oitenta e quatro páginas no relatório completo da Polícia Federal. Tem muito detalhe e não é escrito como um romance policial nem como uma reportagem. Nem é um mistério que vai se desvendando a cada página virada, nem é aquela coisa estruturada e organizada em que as informações mais importantes já são logo entregues de cara para que o essencial seja compreendido. Não. Mas, para quem tem paciência de montar o quebra-cabeças, algumas coisas começam a fazer sentido.

Uma: o quanto o AI-5, o ato institucional de número cinco, pesava fundo na imaginação dos golpistas. Outra que a gente entende rápido. Foi por pouco. Poderia ter acontecido e a gente deu sorte. Deixa eu começar por isso.

Vocês sabem como se organiza o Exército? É fundamental entender essa organização para compreender como chegamos perto de um golpe de Estado. O maior agrupamento que temos de soldados é uma divisão. O Exército brasileiro é formado por seis divisões. Quem tem soldado em quantidade é quem manda em cada uma dessas divisões. Uma está na estrutura do Comando Militar do Nordeste e fica no Recife. Outra, no Rio de Janeiro. Comando Militar do Leste. A terceira, em São Paulo. Comando Militar do Sudeste. Todas as três restantes estão sob o Comando Militar do Sul.

O alto-comando do Exército, em 2022, era formado por dezesseis generais quatro estrelas. Cada comando destes tinha, na cabeça, um destes generais. Em um dos muitos Zaps que a Polícia Federal encontrou, tem lá um dos coronéis golpistas, Reginaldo Vieira de Abreu, se queixando. “Cinco não querem, três querem muito e os outros na zona de conforto.” Esse era o desenho que ele fazia do Alto Comando.

Quem eram estes cinco generais que não queriam de jeito nenhum?

Na Jovem Pan, no programa Pingo nos Is, Paulo Figueiredo, um dos indiciados pela Polícia Federal, se queixou ao vivo de três generais que estavam resistindo ativamente dentro do alto comando. Quem eram?

O atual comandante do Exército, Tomás Paiva, que era comandante do Leste. Uma divisão. O segundo era o general Richard Nunes, comandante do Nordeste. Outra divisão. E aí é engraçado, porque o Figueiredo erra. Ele atribui o comando do Sul ao general Valério Stumpf. Era outro. Stumpf de fato era legalista. Mas quem estava no comando do Sul era o general Fernando Soares. Tinha, embaixo dele, três divisões do Exército. Nessas divisões, Soares tinha mais da metade dos tanques brasileiros.

Nós não sabemos quem era o quinto general legalista. Mas o fato de que cinco das seis divisões do Exército brasileiro estivessem nas mãos dos homens que se fecharam e não arredaram para defender a Constituição perante a pressão do presidente da República, perante a pressão de incontáveis pessoas pedindo intervenção militar na porta de cada quartel brasileiro, este é um registro que precisa ser feito. Calhou de que, quando Jair Bolsonaro quis dar um golpe, os generais de Exército que tinham nas mãos tanques e soldados a rodo eram todos legalistas.

Poderia ter sido diferente. Não foi. Pra nossa sorte.

Eu conversei, ontem, com um general que fazia parte do alto comando naquela época. Ele me disse que uma de suas maiores preocupações era com um impasse institucional. Se, por exemplo, um 8 de Janeiro acontecesse ainda com Bolsonaro presidente. O Supremo Tribunal Federal ou o Tribunal Superior Eleitoral são invadidos. Aquelas pessoas todas acampadas tomam as ruas, a PM do Distrito Federal não faz nada, o Supremo é tomado. Ministros lá dentro. O presidente da Corte pede reforços ao Exército. O presidente da República, Jair Bolsonaro, não autoriza. O que faz o Exército brasileiro numa situação destas?

Não aconteceu. Poderia ter acontecido.

O que de fato aconteceu foi o seguinte. No dia 7 de dezembro, Bolsonaro convocou para o Palácio da Alvorada o ministro da Defesa, Paulo Sérgio, que era ex-comandante do Exército, e os três comandantes. Almirante Almir Garnier, brigadeiro Baptista Júnior e general Freire Gomes. Apresentou a eles um decreto no qual punha a sede do TSE em Estado de Defesa. Ou seja, uma intervenção militar. O comandante da Marinha topou na hora. Os comandantes da Aeronáutica e do Exército disseram não. O general Freire Gomes chegou a ameaçar Bolsonaro de prisão, caso insistisse.

Dois dias depois, Bolsonaro chamou outro membro do alto comando do Exército, o general Estevam Theóphilo. Se queixou de Freire Gomes. Theophilo comandava o Comando de Operações Terrestres. Este não era um general que comandava soldados, este comandava uma mesa. Calhou de ser assim, porque eles rodam por vários cargos. Mas comandava uma mesa e era um dos entusiastas do golpe. Theophilo afirmou que, se Bolsonaro assinasse o decreto, ele comandaria o golpe. Bolsonaro não assinou. Teve medo.

Isso é importante de entender sobre Bolsonaro, para quem não tem claro. Ele atuava e atua desse jeito. Quer que os outros façam para ele. Mas ele, ele próprio, ele não assume nada. É sempre culpa dos outros. Ele não teve coragem de assinar o decreto e assumir a responsabilidade por disparar o golpe. Queria que fizessem por ele. Theophilo disse: assina que faço. Ele não assinou.

No dia 14 de dezembro, véspera da data marcada para o sequestro e assassinato do ministro Alexandre de Moraes, presidente do TSE, o ministro da Defesa convocou para seu gabinete, novamente, os comandantes das três forças. Tinha uma nova versão do decreto.

Nós não temos cópia deste texto final, mas sabemos como era sua estrutura. Começava com uma série de “considerandos”.

Considerando tais e tais interferências do Poder Judiciário nas atribuições do Presidente da República; considerando a interferência do TSE nas redes sociais; considerando a fraude nas eleições daquele ano. Considerando isso, considerando aquilo, o presidente da República decreta.

Era assim a estrutura do decreto que romperia a democracia brasileira. Era assim a estrutura do Ato Institucional de número cinco, aquele que rompeu de vez com a Constituição de 1945 e fechou a ditadura militar em 1968. Eles queriam dar um golpe de Estado citando o AI-5. É uma cultura doentia de cultivo do passado.

O ministro Paulo Sérgio tinha este documento à mesa quando os três comandantes entraram. O brigadeiro Baptista Júnior não o deixou falar. “Esse documento prevê a não assunção do
cargo pelo novo presidente eleito?” Perguntou direto ao ministro. Esse documento aí vai impedir que o presidente eleito pelos brasileiros tome posse, ele estava perguntando. O ministro, ex-comandante do Exército, se calou. Se este documento for assim, ele disse, eu nem recebo. O silêncio foi o suficiente para o brigadeiro. Ele se levantou e deixou a sala.

Aquela reunião era uma tentativa final de convencer os líderes das três forças a darem um golpe militar. Dois a um, e só com o almirante Garnier eles não teriam soldados. Não teriam tanques, não teriam garanti de vitória. O golpe estava marcado para o dia seguinte, 15 de dezembro de 2022. Ele chegou a ser posto em marcha, agentes chegaram a se movimentar para executar a prisão de Alexandre de Moraes. Mas aí foi tudo abortado. O Exército não apoiaria.

O general com quem conversei me disse o seguinte: militares podem ter cometido crimes mas as Forças Armadas não fizeram nada. Da maneira como lê a história, houve três pontos delicados institucionalmente desde o fim da Ditadura. O impeachment do presidente Fernando Collor, o período entre 2013 e o impeachment da presidente Dilma Rousseff e, por fim, a transição de Bolsonaro para Lula. Para ele, as Forças Armadas não fizeram rigorosamente nada nestes momentos. Ficaram nos quartéis, não agiram. Militares podem ter agido, mas as Forças não.

É verdade. As Forças Armadas não fizeram. Mas nós conhecemos estes detalhes sobre a trama do golpe porque a Polícia ouviu as mensagens de voz e leu as mensagens de texto trocadas entre militares. Porque ouviu da própria boca o depoimento dos comandantes da Aeronáutica e do Exército. Porque tem nas mãos uma das versões do decreto do golpe. De um ato institucional número um para uma nova ditadura, um ato que em essência revogava a Constituição.

A nossa Constituição. O que separa a instituição dos indivíduos que a formam? E se, naquele longo mês de dezembro, o general Estevam Theophilo comandasse o Sul e o general Fernando Soares comandasse uma mesa? Se um golpista tivesse na ponta da caneta mais de metade dos tanques de guerra do Brasil?

Cinco generais dentre dezesseis entenderam que seu papel era servir ao Brasil. Que servir ao Brasil era seguir a Constituição. A cada quatro anos fazemos eleições. Quem perde sai, quem ganha sobe. Aí muda de novo quatro anos depois.

Vamos passar os próximos doze meses lendo na lupa este documento. Nós, aqui no Meio, estamos apenas começando. É nosso trabalho. Não só nosso. De todo o Brasil. E podemos fazê-lo porque vivemos numa democracia.

 

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