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A normalização secular-católica

Decisão do STF sobre o uso de símbolos religiosos em espaços públicos reafirma nosso sincretismo de matriz católica

A recente notícia de que o Supremo Tribunal Federal formou maioria pela manutenção da presença de crucifixos na parede de tribunais e outras instalações do Estado reabriu o debate sobre laicidade e Estado laico no Brasil e sobre como se regula a religião no espaço público no país. O julgamento se deu em ação movida pelo Ministério Público Federal, a partir da petição de um cidadão contra a presença de crucifixo no plenário do Tribunal Regional Eleitoral do Estado de São Paulo.

Com essa decisão, ficou claro que as mudanças no campo religioso estão redesenhando a cara do Brasil, mas as instituições insistem em nos lembrar que, no fundo, seríamos um país de cristãos. E especialmente seguem posicionando o catolicismo como cultura e reforçando o Brasil como uma sociedade católica. É como se disséssemos que, do ponto de vista religioso, temos um Estado que aceita que as religiões convivam e reconhece a liberdade de crença e culto a todos, mas afirma que, como cultura ou identidade nacional, o Brasil segue sendo católico.

Entender o catolicismo como marco dessa identidade brasileira requer olhar historicamente como o Estado reconheceu o religioso e definiu e gerenciou a religião no espaço público. Para isso, são fundamentais os trabalhos dos antropólogos Emerson Giumbelli e Paula Montero.

Recorro às palavras de Giumbelli, em seu estudo sobre a presença do religioso no espaço público brasileiro: “As relações entre Estado e religião no Brasil ficam mais inteligíveis se adotamos essa perspectiva histórica capaz de constatar as operações que produzem modos de presença”. O que poderia ser considerada, ou aceita, como uma religião no espaço público? Como? Por que? Segundo quem?

Há pelo menos quase três décadas essas questões recebem a atenção da antropologia e da sociologia.

A partir do princípio da laicidade, ou “apesar dele” (segundo Giumbelli no seu trabalho A presença do religioso no espaço público: modalidades no Brasil), a resposta a isso esteve e está sempre condicionada aos dispositivos estatais. E, no Brasil, o início da República é o principal marco disso, com o reconhecimento e a formalização do princípio da separação entre Estado e igrejas, mais especificamente da separação entre Estado e a Igreja Católica, configuração vigente até o momento da promulgação da Constituição de 1889.

A partir de então o Estado foi legitimando a presença do religioso no espaço público de diferentes maneiras. “No caso da Igreja Católica”, segue Giumbelli, “isso ocorreu inicialmente por meio de uma aliança simbólica e material e com a ajuda de um regime jurídico de baixo controle estatal. No caso do espiritismo, ocorreu em meio a uma batalha pela legitimidade de práticas com algum sentido terapêutico. No caso dos cultos afros, envolveu a aceitação de um argumento culturalista.” E no caso dos evangélicos, os novos atores em cena, na disputa por reconhecimento em leis e mecanismos infra-jurídicos das especificidades de sua identidade, organização institucional, representação e como organizações, também deste campo religioso, poderiam firmar parcerias formais com o Estado.

A religião está no espaço público, e não está apenas no âmbito privado. Nunca houve essa separação clara que a modernidade quis produzir. Dito isso, há um cenário de pluralização e transição religiosa no Brasil, que saiu da condição de país de esmagadora maioria católica até os anos 1980 para um cenário de mudança significativa: 50% católicos, 30-35% evangélicos e 10% sem religião, com o percentual restante dividido entre outras religiões, agnósticos e ateus.

Esse contexto muito acelerado de transição religiosa — estamos falando de um intervalo de apenas 30 anos — resulta em novo cenário e impõe novos desafios. Por um lado, mudou o espaço público brasileiro — espaço público que abrange também lugares de ocorrência do religioso: outros interlocutores se fazem presentes, interpelam os poderes constituídos, discutem políticas e projetos culturais e amplificam a visibilidade do que seria o “religioso” na sociedade.

Portanto, neste país de tradição, história e presença totalmente naturalizada da Igreja Católica, vemos movimentos de afirmação religiosa que se intensificam, por meio de outros segmentos, especialmente evangélicos em geral e evangélicos pentecostais.

Ser ao mesmo tempo católico e brasileiro era uma equação natural no Brasil até muito pouco tempo atrás. A moral e as práticas religiosas católicas foram, por muito tempo, o principal guia da cidadania brasileira, influenciando desde a educação familiar até a pública. As históricas parcerias do Estado com a Igreja Católica e suas entidades beneficentes no alcance das políticas de assistência social de toda ordem são um outro bom exemplo dessa capilaridade, penetração e ação conjunta Estado-sociedade civil.

A ascensão do pentecostalismo criou uma competição por identidade, por espaço e por poder, de forma legítima, especialmente nas periferias e nas classes populares.

Mas isso vem mudando. Cresceu a “concorrência”, por assim dizer, provocando disputas pela cultura, pela identidade nacional, por representação política, por orientação e influência de instituições. A ascensão do pentecostalismo criou uma competição por identidade, por espaço e por poder, de forma legítima, especialmente nas periferias e nas classes populares. É importante dizer que essa concorrência segue subjugando religiões de matriz africana e as reposiciona — uma vez que elas também reagem se reposicionam no espaço público e político institucional a partir de seus vínculos históricos, culturais e de fé — resultando em tensões crescentes com essas tradições nos territórios.

Os campos se movem, claro, existe ação e reação, mas ainda nessa matriz cristã que, por um lado, produz uma indexação do catolicismo como “cultura”, na esteira da produção desse espaço público brasileiro imaginado como secular e, por outro, tem o “pluralismo religioso” reconhecido a partir da Constituição de 1988 como uma “doutrina político jurídica”, segundo a antropóloga Paula Montero. Esse reconhecimento organizou as relações entre as diferenças num horizonte mais igualitário, mas não no horizonte do sincretismo, uma vez que o sincretismo brasileiro historicamente acomodou uma matriz católica.

O pluralismo religioso, dessa forma, produz a igualdade de outra maneira. Como afirma Paula Montero em seu trabalho Syncretism and Pluralism in the Configuration of Religious Diversity in Brazil, o “secularismo brasileiro” é construído em função da Igreja Católica, ou seja, é um pluralismo religioso que tem na Igreja Católica seu ator principal. Desde a primeira Constituição republicana do país, de 1891, a “diversidade religiosa” foi legalmente construída como uma forma de alocar, no campo da religião, práticas populares percebidas como perigosas ou supersticiosas. O que leva a antropóloga a defender a ideia de que essa diversidade religiosa, no fundo, pelo menos até a Constituição de 1988, não significava pluralismo, posto que organizada com base na predominância do catolicismo.

A Constituinte de 1988 foi um ponto de inflexão na forma de tratar a diversidade religiosa. Com um fator adicional a partir dali: o declínio da hegemonia da Igreja Católica. Essa soma de fatores resultou numa competição entre organizações religiosas por influência social e primazia na sua relação com o Estado. O princípio da liberdade religiosa, lembra Paula Montero, tornou-se naturalizado no discurso público como uma condição indispensável para a paz. A Constituição pluralista de 1988 ampliou o reconhecimento da liberdade de culto, estabelecido quase um século antes, na Constituição de 1891.

A permanência e a naturalização do uso de símbolos marcadamente católicos nos espaços públicos são parte dessa relação do catolicismo com o pluralismo religioso do país.

As tensões decorrentes da concorrência entre religiões, no entanto, ainda fazem parte desse pluralismo, bem como a primazia do catolicismo como parte da cultura, da tradição e da identidade do Brasil. A permanência e a naturalização do uso de símbolos marcadamente católicos nos espaços públicos são parte dessa relação do catolicismo com o pluralismo religioso do país.

A decisão do STF, como se viu, reforça o peso dessa tradição histórica e da reafirmação de traços católico como parte dessa identidade. Além do estranhamento que essa decisão inevitavelmente provoca sobre a ideia de um Estado laico e do pluralismo religioso que marca, ou deveria marcar, a sociedade, resta uma curiosidade: nenhuma matéria publicada sobre o julgamento destacou o fato de o ministro relator ser um “terrivelmente católico” — no caso, o ministro Cristiano Zanin. Não deixa de ser notável e pedagógico o fato de que o aposto costumeiramente usado para outros ministros que têm suas identidades religiosas conhecidas não se aplicou ao católico Zanin. Esse dado não pareceu relevante de nota para o jornalismo brasileiro.

E assim as instituições tentam seguir com o velho normal: o espaço secular-católico normalizado, mas por outro lado, a própria interpelação perante os tribunais evidencia um outro Brasil mais entrecortado pelo pluralismo religioso e menos disposto a aceitar alguma, ou apenas essa, presença do religioso nas instituições.


*Ana Carolina Evangelista é cientista política com mestrado em relações internacionais pela PUC-SP e em gestão pública pela FGV-SP. É pesquisadora e diretora-executiva do Instituto de Estudos da Religião (Iser). Faz cobertura eleitoral desde 2018 com colunas na 'piauí' e no 'UOL'.

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