Edição de Sábado: O presidente, o general e o juiz
A descrição da Polícia Federal sobre a tocaia feita por militares ao ministro Alexandre de Moraes reavivou histórias de tempos sombrios na cabeça do ministro Celso de Mello, aposentado do Supremo Tribunal Federal (STF). Caso a intentona, que incluía a caçada e até o assassinato do magistrado, não tivesse sido abortada pelos “kids pretos” do Exército, Moraes não seria o primeiro ministro da Corte a sofrer um sequestro de militares. E Mello fez questão de relembrar a história num artigo publicado na página do STF. Era necessário demonstrar o grave significado dos fatos identificados pela PF após a derrota de Jair Bolsonaro nas urnas. Uma história cheia de pontos comuns.
Em 1963, no dia 12 de setembro, o alvo foi o então ministro Victor Nunes Leal. Pela manhã, quando se dirigia ao STF, Leal foi sequestrado por militares de baixa patente. Levado para a Base Aérea de Brasília, o ministro ficou detido por uma hora e meia, perdendo o encontro que tinha com o presidente do STF, à época, o ministro Lafayette de Andrada. Até a motivação da revolta dos sargentos se liga aos tempos atuais. O Supremo, na época, havia decidido que esses militares não podiam concorrer a cargos de deputados, como pregava a Constituição de 1946.
O presidente capitão
Como se vê, a tentativa de misturar a carreira militar com a política não é novidade. Foi dentro desse arcabouço que o ex-capitão Jair Bolsonaro desenvolveu toda a sua vida política e, numa tentativa de emular seus heróis, gestou o golpe para continuar no poder. Como em 1964, recorreu à lógica do “inimigo interno”. Se antes, pessoas consideradas “subversivas e comunistas” representavam a ameaça à “segurança nacional”, para Bolsonaro a subversão era, além de ilusórios comunistas, Moraes e a condução dos processos capazes de limitar seus delírios autocráticos.
Muito antes das movimentações golpistas, o alvo estava claro. No 7 de setembro de 2021, em plena Avenida Paulista, o presidente incitava seus seguidores: “Dizer a vocês que qualquer decisão do senhor Alexandre de Moraes esse presidente não mais cumprirá. A paciência do nosso povo já se esgotou, ele tem tempo ainda de pedir o seu boné e ir cuidar da sua vida. Ele, para nós, não existe mais”, vociferou, do alto do carro de som montado para aglomerar pessoas no dia da Independência, em plena pandemia. “Ou esse ministro se enquadra ou ele pede para sair. Não se pode admitir que uma pessoa apenas, um homem apenas, turve a nossa liberdade. Dizer a esse ministro que ele tem tempo ainda para se redimir, tem tempo ainda de arquivar seus inquéritos. Sai, Alexandre de Moraes. Deixa de ser canalha. Deixa de oprimir o povo brasileiro, deixe de censurar o seu povo. Mais do que isso, nós devemos, sim, porque eu falo em nome de vocês, determinar que todos os presos políticos sejam postos em liberdade.”
Na época, Moraes já era o relator dos inquéritos sobre as fake news e dos ataques a instituições democráticas. Um dia antes do ato na Paulista, havia atendido a um pedido da Procuradoria-Geral da República e colocado na cadeia algumas pessoas responsáveis por financiar e organizar um dos primeiros atos contra o STF. Eram bolsonaristas que ameaçaram Moraes pelas redes sociais e tinham lançado fogos contra o prédio do Supremo. Entre eles, policiais e membros de associações de produtores de soja.
Agora a PF coloca Bolsonaro como chefe da trama golpista e seu indiciamento, segundo investigadores, é embasado por provas robustas. De acordo com a polícia, Bolsonaro está ligado ao rascunho encontrado na casa do ex-secretário de Segurança do Distrito Federal e ex-ministro da Justiça, Anderson Torres. Era o esboço para um decreto que previa uma intervenção no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), presidido por Moraes, após as eleições de 2022. Bolsonaro teria pedido modificações no texto que previa a prisão de ministros do STF e do presidente do Congresso, Rodrigo Pacheco, além da realização de novas eleições no fim de 2022. O documento estava em nome de Bolsonaro, mas sem sua assinatura. Convenientemente, o espaço reservado para a data do decreto havia sido deixado em branco.
A polícia sabe que Bolsonaro realizou pelo menos duas reuniões com o comando das três Forças Armadas, ministros e assessores para discutir o golpe. Sabe também que o plano não se concretizou porque não houve o endosso de dois comandantes da época: o general Marco Antônio Freire Gomes, do Exército, e o brigadeiro Carlos de Almeira Baptista Júnior, da Aeronáutica, que contou à PF ter ameaçado prender Bolsonaro caso ele tentasse executar o plano. Essas reuniões já haviam sido informadas pelo ex-ajudante de ordens do presidente, tenente-coronel Mauro Cid, em delação premiada. Cid confirmou também uma reunião com a cúpula das Forças Armadas logo após a derrota para Lula. O assunto: discutir uma minuta que anularia o pleito e resultaria em uma intervenção militar.
Mais, a arquitetura do golpe também se interliga com outros dois inquéritos, o de fraude do certificado de vacinação para que Bolsonaro pudesse viajar aos Estados Unidos, de onde supostamente voltaria nos braços do povo, e o das vendas das joias, garantindo dinheiro vivo no bolso caso tivesse de ficar mais tempo fora do Brasil.
O general vice
“Quando a política entra no quartel por uma porta, a disciplina sai pela outra”. Se a máxima usada pelo general Peri Bevilacqua, em 1968, para criticar o AI-5 realmente orientasse os quartéis, o general de quatro estrelas Walter Braga Netto teria a metade da sua vida militar inviabilizada. Concorrer como vice na chapa em 2022 era uma novidade, já que ele sempre esteve na política, mas nunca pela vontade popular.
Braga Netto esteve regularmente perto do poder. No governo de Fernando Henrique Cardoso, foi assessor da Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República, depois, chefe do grupo de observadores militares nas forças das Nações Unidas no Timor Leste, em 2000. No governo Lula, foi adido militar nas embaixadas de Varsóvia, na Polônia, e de Washington, nos Estados Unidos. Em 2009, chegou ao posto de general. No governo de Dilma Rousseff, foi secretário de segurança presidencial e chefe da Casa Militar da Presidência da República, além de coordenar a Assessoria Especial dos Jogos Olímpicos e Paraolímpicos Rio 2016.
Quando Bolsonaro assumiu, Braga Netto se tornou chefe do Estado Maior do Exército, segundo posto mais importante da Força. Ficou um ano no cargo até se mudar para a Casa Civil, em fevereiro de 2020, quando Onix Lorenzoni saiu para se candidatar ao governo do Rio Grande do Sul. No Planalto, exerceu o clássico nepotismo, conseguindo a nomeação de sua filha Isabela para um cargo na Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). Em março de 2021, assumiu o Ministério da Defesa no lugar do colega Fernando Azevedo e Silva, até que, um anos depois, passou ao cargo de assessor especial da Presidência, que ocupou por quatro meses até deixar o governo, em julho de 2022, para ser candidato a vice na chapa de Bolsonaro.
Para a PF, enquanto Bolsonaro figura como chefe do plano, Braga Netto seria o verdadeiro arquiteto, a cabeça pensante da trama que incluiu o plano de assassinato do presidente Lula, do vice Geraldo Alckmin e de Alexandre de Moraes pelos seus “kids pretos”. O general seria também um dos que mais se beneficiariam da ação, já que o plano previa a formação de um “Gabinete Institucional de Gestão da Crise”, logo após os assassinatos. Esse órgão ficaria sob o comando de Braga Netto e do general Augusto Heleno, ex-chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) de Bolsonaro. E é apontado pela PF como um dos responsáveis por incitar outros membros das Forças Armadas a aderir ao golpe. Era com ele também boa parte da interlocução do Planalto e da Alvorada com os acampamentos golpistas.
O relatório apresentado pela polícia indica que os militares iniciaram o monitoramento de Moraes “logo após a reunião” realizada na casa de Braga Netto, um apartamento na Asa Sul, em Brasília, no dia 12 de novembro de 2022. O plano, denominado “Punhal Verde e Amarelo”, segundo a polícia, teve o aval do ex-presidente. O comando, porém, teria sido escolhido por Braga Netto: o general de brigada Mario Fernandes, ex-secretário executivo da Secretaria Geral da Presidência, que chegou a ser ministro interino da pasta. A polícia identificou que o plano teve seis cópias impressas dentro do Palácio do Planalto para serem discutidas em reunião. No dia seguinte às impressões, Fernandes foi para a reunião com Bolsonaro no Palácio da Alvorada, residência oficial da Presidência da República.
Três meses antes das eleições de 2022, Mario Fernandes havia defendido uma antecipação do golpe em uma reunião com Bolsonaro e todo primeiro escalão do governo Bolsonaro e todos os militares que o rodeavam recorrentemente se colocavam na missão de atacar o sistema eleitoral para justificar uma intervenção. A eloquência da defesa feita por Mario Fernandes durante uma reunião com Bolsonaro e com os demais ministros chamou a atenção da polícia. Havia no discurso uma boa dose de indignação com o fato de o comandante do Exército, Freire Gomes, não ter concordado com o plano. ”É importante avaliar essa possibilidade, mas principalmente, para que uma alternativa seja tomada, como o senhor mesmo disse, antes que aconteça“, dizia, se dirigindo a Bolsonaro. “Porque no momento que acontecer, é 64 de novo? É uma junta de governo? É um governo militar?”
Fernandes, muito próximo de Braga Netto, confirmou a Cid numa mensagem que Bolsonaro havia aceitado o “assessoramento” do grupo golpista. E que vinha do ex-presidente o aval para que o golpe fosse efetivado até dia 31 de dezembro.
O juiz
O ministro Alexandre de Moraes, como presidente do TSE e relator de praticamente todas as dores de cabeça de Bolsonaro e de seu clã, era o alvo principal. Dentro dessa lógica, não é difícil imaginar que o maior “inimigo interno” passaria a ter sua cabeça na mira do grupo golpista. Moraes iniciou sua carreira no Ministério Público. Foi promotor de Justiça do Estado de São Paulo por 11 anos, de 1991 a 2002. Dali, pulou direto para a carreira política. Foi secretário de Justiça de São Paulo, acumulando a presidência da Fundação Casa, e secretário de Segurança Pública. Depois, foi ministro da Justiça e Segurança Pública de Michel Temer. Em todos esses cargos, comandou forças policiais. Entende a lógica investigativa e tem cabeça de acusador. Ele tem delegados fiéis nas polícias Civil e Federal.
Seu entendimento sobre Bolsonaro começou a se formar na condução de dois inquéritos: o que apurava os ataques às instituições e à democracia e o das fake news, aberto de ofício pelo então presidente do STF, Dias Toffoli, em 2019. Ter seu nome como um alvo a ser eliminado não foi exatamente uma novidade. Alexandre seguia experimentando a sanha bolsonarista, ainda mais quando, após o 8 de janeiro, passou a julgar os perpretadores dos ataques. Em junho de 2023, foi atacado por bolsonaristas em Roma, que o chamaram “bandido, comunista e comprado”. Lutador de boxe tailandês, o ministro não reagiu, nem ao ver seu filho levar um empurrão e um tapa no rosto que lhe fez voar os óculos.
Hoje, a defesa de Bolsonaro quer impedi-lo de julgar o processo que virá em decorrência da operação Contragolpe, alegando que ele seria uma potencial vítima, além de ser considerado um inimigo do bolsonarismo. Vale lembrar, no entanto, que todas as ações penais em relação ao 8 de janeiro questionavam a isenção de Moraes para tratar do tema, pelo fato de ele ter sido atacado pelos manifestantes. Esse questionamento, porém, foi superado por unanimidade pelo plenário do STF. É claro que um possível novo questionamento por parte de Bolsonaro sobre a competência de Moraes para julgá-lo pode ser levado novamente ao plenário, mas a tendência é de que esse argumento, novamente, não seja aceito.
A defesa dos golpistas segue por dois caminhos para tentar minar a gravidade das acusações que vêm com as investigações da Polícia Federal. O primeiro é alegar que pensar em um crime não é o mesmo que cometê-lo. O segundo é tentar dizer que Moraes não pode ser vítima e juiz ao mesmo tempo. Juristas ouvidos pelo Meio rebatem ambas as estratégias.
Oscar Vilhena Vieira, professor fundador da FGV Direito e membro da Comissão Arns, refuta a tese de que os golpistas apenas elucubraram e não colocaram em prática o golpe. “O ato de ameaça às eleições, a tentativa de desestabilizar o Tribunal Superior Eleitoral, a reunião com os embaixadores, a tentativa de explosão do caminhão, a presença e a tolerância com os manifestantes na porta dos quartéis, todo esse conjunto de atos são ataques ao Estado de Direito”, argumentou em entrevista ao Meio.
Já sobre a questão da suspeição, Vilhena pensa que, se a PGR denunciar os 37 indiciados por algum crime em que o Alexandre seja a vítima, é evidente que ele não pode ser o juiz desse próprio processo, ou seja, terá de se declarar impedido de julgar. “Mas nesse caso agora, se essa tentativa de homicídio dele não for objeto de denúncia, e acho que não deve ser, porque houve uma troca de informações, mas não chegaram a tentar, não vejo porque ele não possa julgar.”
Para o presidente do o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM), Renato Stanziola Vieira, seria fundamental que o plenário do STF decida o quanto antes sobre a existência ou não de suspeição de um de seus integrantes “para que se deixe de debater sobre a conduta de um de seus membros e se volte a atenção para a gravidade do problema concreto, suscitado com a nova tentativa de golpe há pouco descoberta”, apontou. “A Corte, ao debater de forma colegiada a situação de possível interesse pessoal de um de seus integrantes, dará exemplo de serenidade e grandeza, e é disso que todos os jurisdicionados precisam.”
Lembrando que a imparcialidade é princípio reitor do processo penal, entende que “talvez a Corte se depare com a novidade de ter de separar o que coloca uma pessoa individualmente como vítima, e assim interessada em se autoproteger e condenar alguém, e outra, que coloca a instituição como um todo como vítima de ataque antidemocrático, com o que se dilui o interesse de qualquer de seus membros no desfecho do caso. Imagino que os argumentos passem por esse debate, se vierem a público.”
Azougue político, o advogado criminal de Brasília Antônio Carlos Almeida Castro é mais enfático ao descartar o argumento: “Aceitar a tese da suspeição seria dar ao investigado o controle de quem ele quer como juiz do seu caso”. Sublinha ainda que o fato de a defesa de Bolsonaro não ter se debruçado para negar os fatos apresentados pela polícia no inquérito demonstra que, “ao que parece, o trabalho da PF foi tão bem-feito tecnicamente que está 'irrespondível'.”
A impunidade dos militares golpistas
No inquérito da Polícia Federal sobre a trama golpista, 25 militares foram indiciados, sendo que sete deles são oficiais-generais. Os militares representam dois terços do total de 37 indiciados pela PF. Se as prisões dos acusados forem confirmadas no curso do processo, terá se quebrado uma longa história de impunidade de militares de alta patente no Brasil.
Golpes militares marcam a República brasileira desde a proclamação. Mais do que isso, militares de alta patente nunca são responsabilizados criminalmente pelas rupturas institucionais. Se o ciclo for quebrado agora, será um sinal inequívoco de que os mecanismos da democracia começam a funcionar no país, 135 após o golpe dado pelo Marechal Deodoro da Fonseca, que pôs fim ao regime monárquico no Brasil, com a derrubada do imperador Pedro II.
Se a história, por aqui, se repete como farda, os enredos dos golpes são todos muito parecidos, sempre com setores da elite econômica manobrando para a tomada de poder pelos militares, em busca de benesses do Estado. Em 1889, o grande motor econômico era o fim da escravidão. Contrariados com a Lei Áurea, promulgada um ano antes em 1888, os grande latifundiários, que se viam obrigados a contratar trabalhadores imigrantes em suas fazendas, se uniram aos republicanos como vingança contra o Império que havia decretado o fim da mão de obra escrava.
Curiosamente, Deodoro era tido como leal a Dom Pedro II, havia concordado em marchar com algumas centenas de soltados sobre a cidade do Rio de Janeiro para depor o Visconde de Ouro Preto, ministro de Pedro II, visto como o responsável pelos baixos salários dos militares, uma das fontes de insatisfação na caserna. A outra era o impedimento de participar da vida política do Império. Numa manobra astuta, conspiradores como Benjamin Constant o aliciam argumentando que se apenas o Visconde de Ouro Preto fosse deposto, um desafeto do marechal, Gaspar de Silveira Martins, senador do império e ex-ministro da fazenda, assumiria o posto de primeiro-ministro. Foi o suficiente para convencer o marechal a dar o golpe que instaurou a República.
Dois anos depois, Deodoro dá um golpe dentro do golpe. O marechal foi chefe interino da República até a aprovação da primeira Constituição republicana em 14 de fevereiro de 1891. Foi eleito presidente numa eleição indireta, tendo seu opositor, o marechal Floriano Peixoto, como vice. Pressionado pela oposição, ainda no primeiro ano de sua presidência, Deodoro decide, por decreto, dissolver o Congresso Nacional e declarar Estado de Sítio, autorizando o Exército a cercar a Câmara e o Senado e prender oposicionistas. Era 3 de novembro de 1891.
O autogolpe de Deodoro durou 20 dias. Sob pressão da Marinha, no episódio da Primeira Revolta da Armada, Deodoro renuncia. Floriano assume o governo. E Deodoro fica impune. O caso de Floriano divide historiadores. Há quem defenda que, ao chegar ao poder pela pressão da Marinha e ao não convocar novas eleições, ele teria dado também um golpe. Mas há quem entenda que, neste episódio, ele simplesmente assumiu o poder após a renúncia do presidente. Seu governo é marcado pela força. Apesar de restaurar o Congresso, ele volta a dissolvê-lo em 1892. Enfrenta a Segunda Revolta da Armada Um ano depois, mas não cede como Deodoro. Entrega o poder 15 de novembro de 1894 a Prudente de Morais, que inicia o período civil da Primeira República, conhecido como café com leite, pelo pacto de alternância de poder entre São Paulo e Minas Gerais. Floriano também não é punido por seus excessos e morre um ano depois de deixar o poder.
A República Velha cai com a Revolução de 1930. A primeira civil-militar e a inaugurar o eufemismo revolução para golpe de Estado. Descontente com o resultado das eleições, e tendo como estopim o assassinato de João Pessoa, na Paraíba, o candidato perdedor Getúlio Vargas inicia uma revolta, arregimentando membros das polícias estaduais de Minas, do Rio Grande do Sul e da Paraíba, e, como sempre, setores do Exército. O pano de fundo é o rompimento da alternância entre mineiros e paulistas com a candidatura vencedora de Washignton Luís.
O golpismo civil-militar
Getúlio revoga a Constituição de 1891 e passa a governar por decretos até ser eleito indiretamente em 1934. Três anos depois, ele dá mais um golpe. Usando como justificativa o Plano Cohen, depois provado ser uma peça ficcional de um plano comunista para a tomada do poder no Brasil, Getúlio dissolve o Congresso e cancela as eleições de 1938. Fica no poder até 1945, quando é deposto por militares, em mais um golpe contra a República. Mais uma vez, ninguém é punido e os militares não assumem o poder. José Linhares, presidente do Supremo Tribunal Federal, assume temporariamente para garantir as eleições de dezembro de 1945 entre dois militares, o brigadeiro Eduardo Gomes e o marechal Eurico Dutra, que sai vencedor.
Getúlio volta ao poder em 1950. Mas em 1954 se mata tentando impedir mais um golpe de Estado urdido pelas Forças Armadas. Em 1955, Juscelino Kubitschek é eleito. O presidente em exercício, Café Filho, e o presidente da Câmara, Carlos Luz, tentam impedir sua posse, mas o general Henrique Lott dá mais um golpe, desta vez em favor da democracia, e garante a posse de Jucelino e de seu vice, João Goulart.
Em 1964, Goulart seria deposto pelo último golpe militar bem-sucedido. Acusado de comunista, sempre o mesmo fantasma, o oligarca gaúcho foi deposto pelos militares. Agora os tenentes golpistas dos anos 1930 se tornavam os generais golpistas dos anos 1960. A mais longa ditadura brasileira sofre um golpe dentro do golpe em 1968, com o AI-5, que inaugura o período mais sanguinário da perseguição política depois do Estado Novo de Vargas, com censura, prisões, torturas, deportações e desaparecimentos. A democracia só volta, de maneira indireta, em 1985. E, de novo, os militares são anistiados de seus crimes.
Resta saber se agora o Estado Democrático de Direito vai conseguir colocar um fim nessa nefasta tradição de impunidade.
Um par perfeito
Aquela tarde de sábado de julho foi de gatilhos. Um do AR-15 de onde saiu o tiro que pegou de raspão na orelha de Donald Trump, então candidato republicano à Presidência dos Estados Unidos. Outro em um de seus concorrentes. Para Robert Kennedy Jr, até ali um ex-democrata que concorria como independente, a cena de um presidente/candidato baleado era tragicamente familiar. Ele perdeu seu pai, Robert, assim, em 1968. E já havia perdido o tio, John, cinco anos antes. Ver Trump sangrando mexeu com RFK Jr. E o republicano, fascinado com a ideia de ter um Kennedy para chamar de seu, viu a oportunidade com clareza.
Por intermédio do hoje influenciador da ultradireita Tucker Carlson, Trump telefonou ainda naquela tarde para RFK Jr. Comentou como prefere as vacinas em “pequenas doses” e não em porções cavalares em bebês, que depois “vão mudando radicalmente”. Era uma senha. RFK Jr. ouvia silente. Trump não lhe deu muita chance de falar, seguiu tagarelando. E acrescentou que queria fazer algo “grande” com o Kennedy. “Vai ser bom para você.” Um mês e meio depois, RFK Jr. desistiu da corrida e endossou Trump. E agora será seu secretário de Saúde — o correspondente ao ministro da pasta no Brasil.
Além do sobrenome, RFK Jr. tem exatamente mais um atributo para ser o dono dessa tarefa: ele é um ativista antivacinas. Radical, vocal, extremo, negacionista. Depois de empreender uma longa carreira como advogado ambientalista, o que lhe rendeu amizades com estrelas de Hollywood que compartilhavam da causa, Bobby Jr. abraçou, sem restrições, a bandeira antivacinas e todas as teorias conspiratórias que envolvem esse movimento. Especialmente a de que vacinas causam autismo — o que, não custa repetir, é mentira. É dessa “mudança radical” que Trump estava falando no tal telefonema. Mas o que esperar de um homem que, no auge da pandemia de covid-19, na presidência do país onde mais morreram pessoas da doença, sugeriu que se tratasse o vírus com injeções de desinfetante?
Pois, embora a ideia de uma chapa Trump-Kennedy não tenha prosperado, como o agora eleito chegou a cogitar, o casamento está consumado na promessa do futuro presidente de que Bobby Jr. pode “go wild” na Saúde. E “wild” é com ele mesmo. Como diz um sábio homem deste Meio, o que separa um excêntrico de um maluco é a conta bancária. E entre as “excentricidades” de Bobby Jr. está a inacreditável história de que, em 2014, ele encontrou um filhote de urso morto numa viagem e decidiu trazer a carcaça para casa, tirar fotos com ela, e depois desovar no Central Park. Talvez tenha sido consequência da ainda mais incrível história que emergiu na campanha, de que ele alegou, num depoimento sobre seu conturbado segundo divórcio, que um verme havia comido um pedaço de seu cérebro e, por isso, ele tinha perda de memória.
Mas “wild” não está na sua excentricidade ou mesmo no seu passado de consumo pesado de drogas. Está mais no que ele advoga para “Make America Healthy (saudável) Again”. Uma estratégia manjada dos extremistas é, intencionalmente ou não, misturar suas teorias conspiratórias a alegações verdadeiras ou críveis para que as primeiras ganhem ares de legitimidade. Assim, parte da retórica de Bobby Jr. é a de uma luta contra alimentos ultraprocessados, excesso de produtos químicos e de açúcar, e contra a ganância da indústria farmacêutica. Não parece ótimo?
Uma das alternativas aos alimentos ultraprocessados que ele oferece e propaga: o leite cru, sem pasteurização. A comunidade científica tem consenso sobre isso. A versão sem tratamento do leite carrega perigos de contágio por E. Coli e salmonela. Sobre os químicos, RFK Jr. espalha uma teoria da conspiração antiga, conhecida como Chemtrails, que é a ideia de que aquele rastro de linhas brancas que os aviões deixam nos céus é, na verdade, produto de uma ação de agentes do Estado e de grandes corporações para espalhar tóxicos e promover um controle populacional. Aproveitando o ensejo contra químicos, ele quer proibir a adição de flúor no tratamento da água. E defende que a exposição a muitos químicos é o que causa disforia de gênero, conforme narrou ao guru extremista Jordan Peterson.
Seu negacionismo na saúde vai muito além. Ele nega que o vírus do HIV provoque aids. Sobre a covid, além de promover o uso de ivermectina e cloroquina, ele diz que a doença foi criada em laboratório para poupar judeus e chineses. E que é bastante plausível que essa tenha sido, na verdade, uma “plandemia”, ou seja, uma pandemia planejada para criar “armas de obediência” da população.
No caso da ganância da Big Pharma, parte do que ele imagina que seja uma forma de combater isso é evitar que elas desenvolvam… vacinas. É um argumento relativamente fácil o que ele faz de que não se deve confiar numa indústria que depende de você ficar doente para lucrar. Soa pouco conspiracionista e mais em linha com o que o lucro desmedido de grandes corporações pode gerar. Acontece que negar a ciência para combater a sede insaciável da Big Pharma não pode ser um caminho saudável. E elas investem pesado em medicamentos e vacinas que são absolutamente essenciais para a saúde pública.
Pensando somente nos imunizantes, considere que um estudo de 2024 mostrou que, nos Estados Unidos, entre crianças nascidas de 1994 a 2023, nove vacinas impediram perto de 1,1 milhão de mortes. E pouparam pelo menos US$ 504 bilhões de gastos médicos diretos. Com a influência de Bobby Jr. sobre as indicações para o CDC, que determinam se as vacinas serão gratuitas para as crianças e outros grupos de risco, e da FDA, que define os prazos de aprovação de medicamentos e vacinas, todo esse investimento e distribuição podem ser desmantelados.
Árvore genealógica
Robert F. Kennedy Jr. é o terceiro dos 11 filhos de Ethel Skakel e Robert F. Kennedy. Ele nasceu em 1954 e foi um dos que carregaram o caixão do pai na cerimônia de sepultamento, aos 14 anos. O democrata havia ganhado as primárias e seria o candidato à presidência daquele ano. Apesar de um grau de descontentamento com os governos democratas anteriores, Bobby carregava em si um pacote de atributos que trazia de volta alguma esperança ao lado progressista, especialmente depois do assassinato de Martin Luther King Jr. meses antes. Logo depois do discurso no hotel Ambassador, em Los Angeles, Bobby foi alvejado pelo jovem palestino Sirhan Sirhan. Viúva, com 11 filhos, Ethel despachou Bobby Jr. para viver com um amigo da família. O garoto se despejou na cocaína e na heroína e no vício em sexo. Teria algumas acusações de assédio sexual ao longo da vida. Mas foi se reabilitando com a carreira na advocacia ambiental e com a aura de excêntrico conquistada com hábitos como a falcoaria. “Ele queria ter algo que fizesse os outros fazerem ‘Oh, wow!’”, disse um primo seu à New Yorker. Isso ele tem conseguido.
A maioria de seus irmãos e outros familiares denunciaram sua candidatura como um “perigo para nosso país” e classificaram o endosso a Trump como uma “traição”. Sua família ambientalista também o deserdou, levando em conta o quanto Trump representa de ameaça ao meio ambiente com sua plataforma de “drill, baby, drill”, entre outras.
Ser antivacina foi a forma que Bobby Jr. encontrou de ser anti-sistema, mesmo sendo herdeiro direto dele, assim como Trump. O casamento funciona bem nesse aspecto, tanto que ambos assistiram à apuração dos votos juntinhos em Mar-a-Lago. As escolhas de Trump para seu gabinete estão sob escrutínio, naturalmente, e tendem a ser aprovadas pelo Congresso que pesa favoravelmente a seu lado. A não ser no caso de alguém tão sórdido quanto Matt Gaetz, que foi renegado até pelo trumpismo, imagine só. Não parece que vá ser o caso de Bobby Jr. E na iminência de uma crise com a gripe aviária, que vem alarmando os pesquisadores, é de se temer demais o que nos reserva o futuro próximo.
Ecos do G20, a morte de uma estrela, as ofensas dos estudantes da PUC aos da USP nos Jogos Jurídicos, o medo de um ataque russo na Suécia e, claro, as receitas da Panelinha. Veja os mais clicados da semana:
1. g1: Vídeo mostra como o presidente Lula tratou os líderes do G20, dos abraços calorosos com Joe Biden e Emanuel Macron e ao protocolar aperto de mãos com Javier Milei.
2. CNN Brasil: A primeira foto de uma estrela fora da nossa galáxia revela morte lenta do astro.
3. Panelinha: Como fazer biscoitos de amêndoas delicados e docinhos na medida certa.
4. Folha: PUC cria comissão que pode expulsar quem chamou alunos da USP de 'cotistas' e 'pobres' nos Jogos Jurídicos.
5. Politico: Suécia imprime panfleto alertando cidadãos sobre o que fazer em caso de ataque russo.