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Lobo solitário é o bolsonarismo

Tem uma discussão bem maluca acontecendo na internet brasileira que põe dois grupos em oposição. Um diz que o Tiu França era um lobo solitário. O outro, que ele é, na verdade, fruto do radicalismo bolsonarista no mundo digital. E aí está lá, o Bolsonaro, todo animado, dizendo que o terrorista do STF é um lobo solitário e não tem nada a ver com isso enquanto a esquerda, indignada, diz de presto: nada disso! Não é lobo solitário!

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A discussão não tem pé nem cabeça. Lobos solitários não nascem sem um ambiente de radicalização em seu entorno. Francisco Wanderley Luiz, de Rio do Sul, Santa Catarina, era um típico lobo solitário radicalizado por causa do bolsonarismo digital. E o fato de que o bolsonarismo gerou seu primeiro lobo solitário é motivo de alerta. Podem vir outros. A seu modo, eles são particularmente perigosos. Diferentemente do que acha a primeira dama Janja da Silva, ele não é um bestão que se matou com fogos de artifício. Ele é sinal de um perigo grande em ebulição na sociedade brasileira.

Este tema, o dos lobos solitários, não era um que se estudava muito até acontecer, nos Estados Unidos, o atentado a bomba contra um edifício federal na cidade de Oklahoma, em 1995. O autor do ataque foi um jovem chamado Timothy McVeigh. Era um supremacista branco convencido de que o governo americano violava a Constituição e as liberdades individuais por, em essência, existir. Ele não é o único caso. Houve lobos assim antes, muitos mais depois. Não existem apenas na extrema direita. Há ataques de lobos solitários radicalizados pelo islamismo totalitário na Europa e América do Norte, principalmente na primeira década deste século.

McVeigh é o típico lobo solitário. Sua ação foi horrorosa. Botou abaixo metade de um edifício gigantesco, um prédio onde funcionários públicos atendiam diariamente moradores da região e no qual ficava uma creche. Morreram 168 pessoas, incluindo dezenove crianças. Crianças bem pequenas, com menos de cinco anos. Foi uma carnificina. E ele fez isso com uma bomba caseira construída com fertilizantes, que pôs na parte traseira de uma picape e a estacionou ao lado do edifício. Não numa garagem subterrânea, junto aos alicerces. Não. Parou na rua, do lado do prédio.

A internet estava apenas começando naquele ano então a máquina de radicalização era muito menos eficiente. Timothy McVeigh frequentava encontros de supremacistas brancos, encontros físicos, mesmo, todo mundo no mesmo lugar. Frequentava algumas reuniões. Leu um ou dois livros de extrema direita que eram populares para essa turma. Era um processo mais lento, naquela época, e exigia das pessoas muito esforço. Um homem que entrava nas circunstâncias da vida pessoal que podem levar ao tipo de radicalização que pode terminar num ato de terrorismo precisava se esforçar muito para se expor à informação que o quebra. Que faz ele atravessar a ponte da inconsequência e do desespero e da barbárie. Por que é tudo ao mesmo tempo, sabe? É inconsequência, é desespero e é barbárie. Não é mais assim. Os ambientes que permitem esta radicalização são frequentados por todos nós. E alguém neste momento de fragilidade pessoal encontra o lugar que o torna um lobo solitário muito rápido.

A Praça dos Três Poderes é exposta. Completamente exposta. Quem faz piada com o fato de Tiu França ter chegado lá com fogos de artifício não tem ideia de como poderia ter sido. Porque se ele tivesse feito certas buscas na internet, poderíamos ter assistido a um Oklahoma City. No coração dos Três Poderes. O bolsonarismo produziu um monstro. E a maior diferença entre lobos solitários e grupos terroristas é o seguinte. Grupos terroristas juntam muita gente e, por isso mesmo, são facilmente identificados e podem ser monitorados por polícia e agências de inteligência. Lobos solitários são muito difíceis de identificar. Tem um monte de gente cuspindo teoria conspiratória bolsonarista na internet. A maioria é só um bando de desocupado que perdeu o contato com a realidade. Um percentual mínimo destes pode cruzar a linha. Quem? Não tem método para descobrir.

Existe um perigo. Depois que a porteira abre com o primeiro, o perigo pode ser maior. Fazer piada, chamar de bestão, é um erro terrível. Vamos entender quem a ciência descreve como o típico lobo solitário e por que Tiu França é um deles?

Primeiro: um lobo solitário não necessariamente atua sozinho. Pode ter uma ou duas pessoas que o ajudam, pode confidenciar para alguns conhecidos o que fará. Às vezes as pessoas não acreditam, às vezes não ligam. A diferença é que ele não faz parte de um grupo articulado e estruturado, com hierarquia, como um IRA, um ETA, uma al-Qaeda.

Aí algo precisa acontecer para que ele se sinta alienado, marginalizado. Completamente sem norte. No caso do Tiu França, no ano passado ele se divorciou da terceira mulher e perdeu os negócios que tinha por conta das pesadas enchentes em Santa Catarina. Qualquer um que já tenha passado por uma separação sabe como é uma tragédia pessoal. Uma morte em vida. Tem um luto. Se a isso se junta uma perda financeira de grande porte, dá uma desmontada feia na pessoa. Onde está o sentido da vida, sabe? O que define você como indivíduo?
Quando nada sobra, ainda há o grupo. Um grupo que o acolha e que tenha uma causa comum. Pode ser um grupo religioso. Pode ser um Alcoólicos Anônimos ou organização do tipo. Algo que traga de volta algum tipo de sentido. Mas nem todo grupo, nessas horas, dá uma corda de volta pra vida. Este grupo se ancora num senso comum do quê? E se este grupo tem na base a crença de que todos são vítimas de um mesmo processo? Que todos são humilhados por uma mesma entidade, uma mesma elite? E se este grupo, ao invés de trazer um sentido de salvação, ao invés oferece um inimigo comum? E se a história que o grupo conta é que este inimigo extingue você como indivíduo, como pessoa, este inimigo faz de você vítima de todo um sistema? Aí este inimigo desumano.

Se você acha que ele é desumano, você o desumanizou.

A pessoa de esquerda, para o extremista de direita, não é humana. Os ministros do Supremo Tribunal Federal não são humanos. As pessoas que trabalham no Palácio do Planalto não são humanas. Às vezes essa sensação é vaga. Abstrata. Mas, para alguns, para aqueles que vão se metendo mais e mais no buraco, aí é pior. Para aqueles que vão descendo mais fundo na ladeira da radicalização, este processo de desumanizar, de perder a capacidade de perceber como ser humano, ele chega no seu ponto máximo. Aconteceu com Tiu França. Ele certamente não está sozinho. Há outros como ele.

Uma das coisas que a radicalização faz, na cabeça da pessoa, é reconceituar tudo. A violência passa a ser legítima, pois dentro da cabeça dela é uma luta por sobrevivência. É uma luta contra a entidade que transforma o grupo em vítima. Sabe esse bando de gente que vem aqui nos comentários e fala que vivemos uma ditadura do Supremo? A maioria diz isso da boca pra fora. A maioria não pensa nisso vinte e quatro horas por dia. Mas todos, juntos, criam um ambiente no qual alguns poucos, que estão completamente desnorteados pelas circunstâncias da vida, encontram o próprio sentido da vida.

Tiu França é um lobo solitário radicalizado pelo bolsonarismo que não sabia lidar com explosivos. A Praça dos Três Poderes, de novo, é aberta. É feita para ser aberta, para receber o povo. É o coração da democracia. O tamanho da tragédia, o tamanho do crime, poderia ter sido muito maior. O risco às autoridades da República precisa ser levado a sério. Não dá para tratar o que aconteceu como incidente isolado. Pode vir outro.

A gente sabe como se lida com gente radicalizada. A gente sabe, já estudamos isso o suficiente, para compreender que desradicalização só ocorre quando uma sociedade se dá ao trabalho de reintegrar aqueles que se perderam. Quem trata os radicalizados como párias, como gente intratável, reforça isolamento. Quem os trata como ilegítimos, reforça o isolamento. Quem se recusa a conversar, reforça o isolamento. A gente vai ter de voltar a conversar. Não existe saída que não voltar a conversar.

Mas quem anistia os crimes cometidos, quem não leva a sério e não trata com a lei quem comete crimes, também prejudica o combate à radicalização. Precisamos fazer as duas coisas. Voltar a conversar com nossos vizinhos, com nossos familiares. Urgentemente. E julgar dentro da lei quem cometeu crimes por ter se radicalizado. Isso começa de cima. Mesmo que lá em cima esteja um inquilino do Alvorada.

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