Democratas liberais não queimam livros. Ou queimam?
Decisão de Flávio Dino sobre publicações homofóbicas levanta debate sobre discurso de ódio e liberdade de expressão
Na última semana, acompanhamos a repercussão de um julgamento do ministro Flávio Dino sobre um Recurso Extraordinário com Agravo apresentado pelo Ministério Público Federal ao Supremo Tribunal Federal. A decisão ordenou a retirada de circulação de alguns livros jurídicos e multou os autores e o editor — um caso explosivo nesses tempos de polarização e interessante para quem estuda a liberdade de expressão e o discurso de ódio.
O recurso contestava uma decisão do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4), que havia rejeitado o pedido de retirada e destruição de livros acusados de homofobia e discriminação. O MPF argumentava que os conteúdos violavam a dignidade humana e a igualdade, contendo discriminação e discurso de ódio. No entanto, o TRF4, por maioria, julgou que os trechos ofensivos estavam dispersos e que a defesa de ideias, mesmo em linguagem rude, não configura discurso de ódio.
Como relator, Dino acatou o pedido do MPF, ordenando a retirada dos livros, com exceção de uma obra, e impôs uma indenização de R$ 150 mil por danos morais coletivos. Os livros, publicados em 2008 e 2009, continham trechos que associavam a homossexualidade a abuso, promiscuidade e outras descrições preconceituosas, defendendo até a demissão por justa causa de funcionários LGBTQIA+.
No TRF4, o voto vencedor se apoiou no entendimento de que a liberdade de expressão deve ser preservada mesmo quando o conteúdo ofende, além de considerar que os trechos homofóbicos eram dispersos e não teriam impacto significativo, dada a natureza e o contexto das publicações. Já os votos vencidos, baseados nos quais Dino sustentou sua decisão, argumentavam que a liberdade de expressão não deve proteger discursos de ódio contra grupos vulneráveis, como LGBTQIA+ e mulheres, defendendo a intervenção do Judiciário para impedir abusos no exercício dessa liberdade.
Dino reforçou que o discurso de ódio excede os limites da liberdade de expressão, especialmente em relação a grupos vulneráveis. Argumenta que o discurso de ódio presente nas obras em questão extrapola os limites da liberdade de expressão e configura abuso de direito, justificando a intervenção do Poder Judiciário para coibir a propagação do preconceito e da discriminação.
A decisão de Dino fundamenta-se no argumento geral de que o discurso de ódio não é protegido pelo direito à liberdade de expressão. Contudo, esse é apenas um princípio; e estamos diante de um caso específico que requer a demonstração de que a situação exige a aplicação desse princípio.
Assim, cabe perguntar: por que, concretamente, decidiu-se pela censura posterior das obras? Primeiramente, considera-se que esses livros causaram “dano moral coletivo” a mulheres e à “comunidade LGBTQIAPN+”, um dano agravado pela “vulnerabilidade” dos grupos atingidos. Sendo alvos de “expressiva violência” no Brasil, a propagação de ideias que os desumanizam e inferiorizam contribuiria para perpetuar a violência e a discriminação, gerando um ambiente de hostilidade e intolerância.
Além disso, aponta-se como agravante o fato de serem publicações acadêmicas, que poderiam influenciar a formação ética de futuros operadores do direito. A credibilidade de publicações acadêmicas ampliaria o alcance e a legitimidade do discurso de ódio.
Por fim, acredita ser necessário reprimir esses abusos e responsabilizar seus autores, pois cabe ao Judiciário proteger grupos vulneráveis e garantir seus direitos fundamentais, entre os quais a dignidade humana e a igualdade.
No entanto, em relação ao dano moral, trata-se apenas de uma estimativa abstrata de prejuízo, já que a conexão entre esses livros obscuros, superados, e a perpetuação da violência e discriminação não foi demonstrada. Não há informações sobre o número de exemplares publicados ou sobre qualquer impacto registrado dessas obras, encontradas e denunciadas em uma biblioteca de uma universidade no interior do Paraná. A argumentação baseia-se inteiramente na premissa de que a propagação de ideias preconceituosas contribui para um clima de intolerância, o que poderia, por sua vez, fomentar a violência. Mais uma vez, temos um princípio, correto, mas não uma prova.
Sabe-se que é difícil demonstrar um nexo causal direto entre o discurso e a violência ou o crime. A decisão apoia-se, então, em outro princípio: a ideia de que há dano moral coletivo em casos de “discurso de ódio” mesmo sem comprovação de atos violentos decorrentes diretamente dele. Contudo, ainda resta demonstrar que os livros em questão constituem, de fato, “discurso de ódio”. O agravante relacionado ao caráter acadêmico das publicações é ainda mais questionável. Se estudantes de direito não tiverem discernimento para rejeitar argumentos preconceituosos tão simplórios e ultrapassados, estamos, de fato, diante de um caso perdido. Esses estudantes são a elite intelectual do país e, no contexto de sua formação, certamente tiveram contato com obras e autores capazes de lhes fornecer as ferramentas para enfrentar argumentos odiosos e extravagantes, ainda mais quando estúpidos. O fato de serem obras para consumo universitário deveria, na verdade, ser atenuante e não agravante.
Se a demonstração de um dano coletivo puder ser dispensada, sendo apenas presumida, abre-se caminho para a punição de qualquer discurso preconceituoso, desagradável ou odioso para algum grupo social.
E, enfim, todo o argumento sobre a necessidade de intervenção do Estado só se justifica se o dano moral coletivo for comprovado. Até o momento, temos apenas a formulação de um princípio, não a demonstração de um fato. Afinal, se a demonstração de um dano coletivo puder ser dispensada, sendo apenas presumida, abre-se caminho para a punição de qualquer discurso preconceituoso, desagradável ou odioso para algum grupo social. Estamos dispostos a ir tão longe?
Em suma, não há dúvida de que a liberdade de expressão, embora fundamental para a democracia, não é absoluta. A bibliografia sobre o tema oferece um consenso bastante sólido para apoiar esse princípio. Discursos que causam danos diretos e significativos, como incitação à violência ou difamação, podem ser restringidos. A questão central, então, consiste em definir quais discursos ultrapassam esses limites e como ponderar os direitos em conflito.
A decisão de Dino apoia-se na premissa de que o discurso de ódio, ao atingir grupos vulneráveis, causa danos que justificam sua restrição. Essa posição encontra respaldo em alguns bons argumentos sobre liberdade de expressão. Não é difícil reconhecer que a exclusão de certos discursos pode ser justificável para garantir a inclusão de grupos marginalizados e assegurar a própria existência do debate público. Diversos autores defendem a dignidade humana como um valor fundamental que impõe limites à liberdade de expressão, justificando a restrição de discursos que atacam essa dignidade. A sentença de Dino ecoa essa preocupação ao afirmar que “nenhum direito fundamental deve ser interpretado no sentido de autorizar a prática de atividades que visem à destruição de outros direitos ou liberdade”.
Por outro lado, essa mesma literatura oferece argumentos que podem ser contrários à decisão de Dino. A dificuldade em estabelecer uma relação causal entre certos discursos e o dano presumido pode levar a restrições com base em suposições abstratas, gerando um efeito “abafador” sobre o debate público: bocas caladas pela mão do Estado. Além disso, a crítica à suposta vulnerabilidade dos estudantes de direito questiona a premissa de que a exposição a ideias preconceituosas, por si só, causa danos. Esse argumento conecta-se à defesa da autonomia individual e da capacidade crítica dos cidadãos, valores essenciais em uma democracia. Não precisamos de um Estado que corra para “proteger” universitários da exposição a ideias erradas, estúpidas ou preconceituosas.
Assim, é difícil afirmar categoricamente que a sentença de Dino se justifica. A decisão baseia-se em interpretações da liberdade de expressão e do discurso de ódio que, embora amparadas em algumas teorias, são controversas e suscitam críticas válidas. A complexidade do caso reside na necessidade de ponderar direitos fundamentais em conflito: a liberdade de expressão dos autores e o direito dos leitores de conhecerem essas ideias versus a dignidade e igualdade dos grupos atingidos pelo discurso de ódio. A restrição à liberdade de expressão, mesmo em casos de discurso de ódio, requer uma análise cuidadosa do contexto, dos potenciais danos e das alternativas menos restritivas — algo que falhou miseravelmente neste caso, restando decisões baseadas exclusivamente em princípios.
A especificidade do caso — livros obscuros, sem repercussão prévia, direcionados a estudantes universitários — acentua as complexidades da discussão. A definição de discurso de ódio não é unânime, mas geralmente envolve a incitação à violência, hostilidade ou discriminação contra grupos vulneráveis. As frases destacadas na sentença, sem o contexto completo da obra, dificultam uma análise precisa. É necessário examinar se, no contexto integral, essas frases incitam à violência ou discriminação ou se expressam opiniões, mesmo que controversas ou ofensivas. A relatora do TRF4 acha que não: o fato de haver nessas obras incitação à violência ou vilipêndio dirigido diretamente a mulheres e homossexuais, ficou a ser demostrado; mas o ministro saltou diretamente para caracterizar os livros como contendo “discurso de ódio”.
E ainda há o chamado “efeito Streisand”: tentativas de silenciar uma informação, ideia ou opinião frequentemente geram curiosidade e interesse do público, motivando a disseminação da informação censurada de forma ainda mais ampla. A retirada de circulação e destruição desses livros obscuros e sem repercussão configura censura posterior, um ato extremo que levanta sérias preocupações ao abrir um precedente perigoso. A intervenção estatal para punir ideias com base em valores de um determinado grupo mina o debate livre e plural, essencial para a democracia, e pode autorizar qualquer grupo, com poder político suficiente, a censurar ideias publicadas que contrariem seus valores. E o que não faltam são grupos ultraconservadores e de extrema direita ávidos para mandar destruir livros e quadros, fechar exposições e prender autores e artistas uma vez que obtenham poder suficiente. E que exista precedente legal para se saltar de um juízo de valor negativo sobre expressões intelectuais e artísticas para uma acusação de dano moral coletivo para o qual se busca a intervenção do Judiciário.
Paradoxalmente, a sentença pode acabar prejudicando os grupos que tenta proteger, ao criar um precedente para censura posterior baseada em valores morais que grupos conservadores poderão usar para censurar ideias progressistas.
Paradoxalmente, a sentença pode acabar prejudicando os grupos que tenta proteger, ao criar um precedente para censura posterior baseada em valores morais que grupos conservadores poderão usar para censurar ideias progressistas e manifestações contrárias à sua visão de mundo. O combate à discriminação e ao preconceito deve basear-se na educação, no diálogo e na exposição a diferentes pontos de vista, sem recorrer à censura, exceto em último caso. A censura, mesmo a legítima censura posterior, em vez de promover a reflexão crítica, reforça o silêncio e a ignorância, dificultando a desconstrução de estereótipos e preconceitos.
Livros proibidos exercem um fascínio particular, especialmente em tempos de polarização em que ambos os lados suspeitam de poderosos complôs contra suas posições. A censura posterior, quando não se apoia em terreno democraticamente indiscutível, pode ser mais danosa aos grupos minoritários do que o próprio discurso que se pretende punir.
A questão da misoginia e homofobia no contexto da liberdade de expressão é complexa. É difícil traçar uma linha precisa entre livre expressão de opinião e discurso de ódio. Punir pela expressão, mesmo em casos de misoginia e homofobia, requer a demonstração de danos concretos, como incitação à violência ou discriminação. A mera expressão de opiniões ofensivas ou desrespeitosas, sem incitação a atos ilícitos, não deveria ser censurada. O Estado protege direitos, mas não é — nem deveria ser — a babá da sociedade.
Por fim, a censura posterior, como a retirada de circulação e destruição de livros já publicados, é uma medida extrema que só se justifica quando o conteúdo representa um perigo iminente à ordem pública ou à segurança individual, algo que, no presente caso, parece não ter sido demonstrado.
E, princípio por princípio, cabe lembrar um igualmente fundamental: democratas liberais não queimam livros. De forma que quando livros começam a queimar em uma democracia liberal, alguma coisa está definitivamente fora da ordem.