Quem votou em Trump

Donald Trump é o novo presidente americano. Eleito para voltar à Casa Branca quatro anos após tê-la deixado. Trump não venceu por desinformação. Não venceu por alguma artimanha russa. Não houve qualquer conspiração. Os eleitores que votaram nele sabiam exatamente no que estavam votando. Ele foi presidente por quatro anos. E o escolheram para presidir os Estados Unidos.

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Uma pesquisa de boca de urna da CNN, na Pensilvânia, revelou que 61% dos eleitores de Donald Trump no estado consideram que a democracia americana está sob grave ameaça.

Registrem isso, porque é importante. Mais de metade dos eleitores de Trump, na Pensilvânia, votaram nele por considerar a democracia ameaçada. Mais eleitores de Trump, na Pensilvânia, consideram a democracia ameaçada do que eleitores de Kamala Harris. Eles estão errados, bastante errados. Eles não compreendem o que uma democracia é, tampouco o estrago que Trump realizará na democracia americana. Mas não importa. O que importa é o que eles acham, como eles se sentem e o voto que depositaram na urna.

A Pensilvânia era um dos sete estados em que o pleito estava empatado. A Pensilvânia é parte, também, do Rust Belt, o Cinturão da Ferrugem, um conjunto de estados que concentram a produção industrial americana. Dos sete estados pêndulos, três estão nesse grupo, além da Pensilvânia, também Michigan e Wisconsin. Sempre foram estados democratas até 2016, quando os três ajudaram a eleger Trump. Naquela eleição, os democratas estavam tão convictos de que era impossível operários votarem na direita que Hillary Clinton sequer passou por lá. Não fez um único discurso. Aí veio o susto, a eleição de Trump, a pandemia e tudo o mais.

Em 2020, as coisas voltaram ao normal, ou o que parecia ser o normal. Michigan, Wisconsin e Pensilvânia votaram em Joe Biden. Bem, o que boa parte dos analistas, perante as pesquisas de opinião, perante a operação do Partido Democrata nos três estados, estava vendo era o seguinte: Michigan e Wisconsin devem votar em Harris. A Pensilvânia é dúvida. Não era certo, mas era tendência.

Vejam só: as pesquisas não estavam erradas. As pesquisas não erraram. As pesquisas mostravam esses estados bastante divididos. Mas, confiando na operação do Partido Democrata de convencer as pessoas a saírem de casa e votar, confiando numa possível inclinação das pesquisas, a leitura foi esta. Era a leitura de nós na imprensa e era a leitura dos democratas. E estava errada. Michigan, Wisconsin e Pensilvânia votaram em Trump. Os operários votaram em Trump.

E não são operários brancos, racistas, não. O que os eleitores todos, inclusive os de Trump, disseram na pesquisa de boca de urna é que, ao menos naquela região do país, imigração era uma preocupação bastante pequena. Inflação era uma preocupação grande. Imigração, não.
Em 2020, 8% dos eleitores negros do Wisconsin votaram em Trump. Este ano, 20%. Na Pensilvânia, também 20% dos eleitores negros votaram em Trump.

Em todos os Estados Unidos, 45% dos eleitores latinos votaram nele. Quase metade. Donald Trump não foi eleito pelos ricos. Não foi eleito pelos brancos. 54% dos eleitores americanos, neste pleito, eram eleitoras. Mulheres. 45% do eleitorado feminino votou em Trump. De novo: a maior parte do eleitorado era composto por mulheres e quase metade delas votaram em Trump.

É claro que muita mentira foi falada durante a campanha. Mas essas pessoas todas viveram por quatro anos sob um governo Donald Trump. Por isso repito isso: elas sabem o que é um governo Trump. Elas é que, conscientemente, preferiram o retorno dele. Mais do que isso. Ao que tudo indica, deram a ele, também, maioria na Câmara e no Senado. A do Senado já é certa, há um cisco de chance de os democratas terem maioria na Câmara. Mas está difícil. Se isso se confirmar, o que vai rolar é o seguinte: por dois anos, Donald J. Trump será presidente, aprovará boa parte de seus projetos no Congresso e terá a ampla simpatia da Suprema Corte.

Quer dizer, a maioria do eleitorado americano escolheu, ativamente, alguém par botar fogo no sistema. Botar tudo abaixo. Reconstruir do zero. Por quê? Porque a democracia está em risco. Por causa dos imigrantes? Não no Rust Belt. O que a turma trabalhadora, a classe média baixa, disse à pesquisa de boca de urna é que sua maior preocupação era com a democracia em primeiro lugar e, em segundo, com a economia. Por quê? Inflação alta. Os preços estão altos. Então o problema foi política pública inflacionária por parte do governo Biden? Também, também, mas não só. A gente precisa segurar essa palavra. Democracia. O que querem dizer? O que estão dizendo que está em risco?

A democracia é o mundo como ele era. Donald Trump não tem isso para oferecer. Como os democratas não têm. O mundo em que os operários tinham uma vida estável e uma renda digna não existe mais. Vamos lá porque isso é importante. Está na origem da crise da esquerda e do sucesso da extrema direita. Como é que o mundo do pós guerra funcionava? Qual a origem da social-democracia europeia e, de certa forma, americana?

Primeiro, o que fazia dinheiro, o que gerava riqueza, era fabricar coisas. Manufatura. Eletrodomésticos, automóveis, coisas que comprávamos. Uma grande empresa do pós-guerra, uma Ford, uma GE, tinha milhões de funcionários no mundo. Porque para fabricar precisava de muita gente no chão de muita fábrica. Então essas empresas ganhavam muito dinheiro e distribuíam, na forma de salários, para muita gente.

Segundo ponto: havia mais jovens do que velhos. As pessoas tinham muitos filhos. O resultado é que sempre tinha muita gente trabalhando e pouca gente aposentada. Então essa muita gente trabalhando, fabricando coisas, pagava um quinhão mensal e isso financiava a rede de seguridade social. Aposentadoria, pensões, educação pública, saúde pública. O dinheiro entrava, pagava os aposentados, pagava a teia de proteção, as pessoas tinham férias, indenizações, tudo equilibrado.

Aí aconteceram três ou quatro coisas que mudaram tudo.

Transporte naval ficou muito barato. Levar coisas de um lado pro outro do mundo despencou de preço por uma série de razões. Transmitir dinheiro de um canto pro outro também ficou muito simples, muito rápido e muito barato. Internet, gente. Você põe a conta bancária, clica, o dinheiro sai daqui e vai pro outro lado do mundo. Bem, fabricar coisa na China é muito mais barato do que fabricar na França, nos Estados Unidos ou no Brasil. E transportar pra França, pros Estados Unidos e pro Brasil não encarece a ponto de não compensar a economia no custo.

Junte a isso mais dois elementos. O primeiro, tecnologia de automação industrial explodiu. Não precisa mais de operário para a maioria das funções. Simplesmente não precisa. Robô faz. E nós decidimos ter poucos filhos. Os casais têm, em geral, um filho. Ou seja, tem menos jovem do que velhos. Aqueles casais antigos, que tinham um monte de filhos? Aqueles filhos de ontem, que trabalharam à beça pra financiar a aposentadoria dos velhos de ontem? São os velhos de hoje. São saudáveis. Vivem mais. E querem suas aposentadorias. Só que tem pouco jovem pra pagar. E esses poucos jovens não têm mais aqueles empregos antigos. Por quê?

Porque a economia mudou. Não se fabrica mais coisas. Se fabrica conhecimento. O que gera riqueza é patente e propriedade industrial. A Apple e a Microsoft são as maiores empresas do mundo e não têm uma fábrica. Terceirizam tudo. É irrelevante ter fábrica, a riqueza está no conhecimento, nos produtos que imaginam e mandam os outros fabricar com robôs industriais. Sem operários. E, olha, a Apple e a Microsoft não têm milhões de funcionários como a Ford ou a GE. Elas têm dezenas de milhares de funcionários. Fazem muito mais dinheiro, mas muito, muito mais, do que as grandes de antes. E distribuem para muito menos gente, porque precisam empregar muito menos.

Quando os operários do Michigan, do Wisconsin ou da Pensilvânia dizem que querem sua democracia de volta, é disso que estão falando. Quando dizem que querem fazer America Great Again, é isso. Donald Trump não tem esse mundo para lhes oferecer. Esse mundo não existe mais. Agora, a esquerda também não tem esse mundo pra oferecer. Porque não adianta reclamar de desindustrialização, não adianta reclamar de reforma da previdência. De concentração de renda.

A gente precisa inventar as regras para este mundo que se transformou. Isso não é fácil de fazer, muito pelo contrário. Enquanto isso, Donald Trump foi eleito, tem nas mãos o Projeto 2025 e vai desmontar por dentro o sistema de pesos e contrapesos da democracia americana. Porque seus eleitores podem não compreender isso com clareza, mas Donald Trump é uma ameaça real à democracia americana.

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