Computador é o passado

Eu sou daqueles que perde o amigo, mas não perde a piada. Uma das minhas grandes diversões é mandar para os amigos audiófilos aquele cartum clássico da New Yorker onde um cara diz para outro “as duas coisas que me atraíram no vinil foram o custo exorbitante e a inconveniência”. Pois bem, existe um hobby mais caro e inconveniente que colecionar bolachas enormes feitas de subproduto de petróleo: a retrocomputação.

Escrevo essa introdução com o risco de perder mais alguns amigos, mas vamos lá. Quem não tem saudades dos disquetes de 5¼ polegadas, das telas de fósforo verde, do barulhinho do modem, dos programas distribuídos em fita cassete? Você pode não ter, mas muita gente tem e usa seu dinheiro e tempo livre programando e restaurando equipamentos dos tempos da computação pessoal movida a vapor.

Não há como mensurar o tamanho do mercado da computação saudosista, mas ele existe. A TecToy, por exemplo, ainda vende uma versão de seu Master System, console que fez a alegria de muita criança nos anos 1980. Ela também tem uma versão revista e reduzida do lendário Atari, uma réplica miniaturizada do console original, quase com a mesma dimensão dos seus joysticks. Relançou o Mega Drive em 2020, mas o console baseado em emulação não agradou os retrogamers de verdade por trazer incompatibilidades com vários games clássicos.

“Nosso negócio é o retrô”, diz Marcus Garret, que fundou com o português Filipe Veiga a softhouse Bitnamic, focada em resgatar jogos clássicos de plataformas como MSX, Atari, ZX Spectrum, Intellivision e outras. “Nós tínhamos essa vontade de relançar jogos clássicos e criar jogos novos para as plataformas que a gente usava na juventude”. A reverência com os jogos é exemplar. Os retrodesenvolvedores aproveitam que a capacidade atual das placas de cartuchos são bem maiores que há quarenta anos e acrescentam melhorias como trilha mais robusta, novas telas. Também capricham na apresentação distribuindo o jogo com cartucho, manual e caixinha, coisa que muitos não tinham na época.

Um dos clássicos resgatados foi o jogo Avenida Paulista, criado por Maurício Bussab, onde uma bruxa sequestrava Pietro Maria Bardi, então diretor do MASP, para transformá-lo em um bode e o jogador precisava enfrentar feiticeiros, monstros e terroristas para libertá-lo. A Bitnamic começou a refazer o game para MSX, mas Carlos Madruga, outro retrogamer entusiasmado, se interessou por fazer uma versão do jogo para Intellivision. Em uma demonstração cabal de como os retrogamers formam uma comunidade mundial, Avenida Paulista foi relançado em uma feira nos EUA, por uma empresa italiana com tela e ilustrações criadas por um artista canadense. Foram adicionados gráficos mostrando cenas da região da Paulista dos anos 80 e uma nova trilha ao jogo original, que era basicamente um adventure em modo texto. A nova versão foi lançada como Paulista Avenue Redux em setembro na Portland Retro Gaming Expo (PRGE), uma das maiores feiras mundiais para os fãs de jogos antigos.

Segundo Bussab, a reação normal das pessoas quando ele conta que está lançando um game é “como assim, lançando um jogo para MSX em 2024? Você tá maluco? As pessoas nem imaginam que exista uma comunidade que compra esses jogos”. Um retrogame, com cartucho, manual, capinha e tudo, custa entre US$ 60 e US$ 90, dependendo da plataforma. Em média, cada jogo vende de cem a trezentas cópias.

“As pessoas compram porque lembram da época em que possuíam os consoles, mas não tinham dinheiro para comprar os jogos”, diz Veiga. “Os retrogamers hardcore querem ter o hardware, ter o prazer tátil, até olfativo. Um cartucho do Odyssey tem um cheiro extremamente característico”, diz Garret. “Eles gostam mesmo de mexer com o hardware, o game é consequência”. Quem quiser saber mais sobre games brasileiros da década de 1980 pode ir atrás do documentário Loading… dirigido por Garret.
“Tem gente que olha feio quando eu digo que não tenho hardware nenhum, só jogo em emuladores”, diz Bussab. Para Veiga, esses são minoria. “Não podemos esquecer que o retrogaming nasceu na emulação nos anos 1990. Programadores conseguiram fazer a engenharia reversa dos chips dos anos 1970 e 1980 para rodar programas de plataformas antigas”. Mas o mundo da retrocomputação não se divide apenas em puristas de hardware e pragmáticos de emulador. Existe uma terceira via, que utiliza dispositivos FPGA, chips programáveis como o MISTer, que podem emular (sintetizar é o termo usado, para diferenciar da emulação por software) perfeitamente dezenas de plataformas legado.

Dá para ganhar dinheiro com isso?

O que fazer quando uma peça quebra? Como manter um hobby baseado em um equipamento que não é fabricado há quase quarenta anos? É possível, com muita perseverança e a ajuda de pessoas como Rafael Rigues, cujo hobby é exatamente produzir peças para MSX. “Eu não produzo hardware para ganhar dinheiro, como fonte de renda. É um hobby que ajuda a pagar os custos e comprar mais hardware para manter a plataforma viva”, diz ele.

Em cinco anos, Rigues vendeu cerca de trezentos JoyMega, um adaptador para fazer o joystick do MegaDrive funcionar no MSX. “Eu fico espantado em saber que existem mais de trezentas pessoas no Brasil querendo jogar games de MSX”, diz Rigues. Ele já pensou em exportar esses acessórios, porque existe um mercado muito grande de MSX na Espanha e no Japão, mas desistiu devido à burocracia para se exportar em pequena escala no Brasil.

O futuro é retrô

A retrocomputação vai acabar porque seus defensores são um bando de boomers saudosistas que não duram até a próxima década? Longe disso. Afinal, todos somos hardware e um dia estaremos ultrapassados. “Na PRGE, vi que uma das plataformas de maior sucesso era o PlayStation 3 e me assustei. Caramba, PS3 já é retrô”, diz Madruga.

Em uma época onde tudo é digital, suas músicas, seus filmes e seus livros estão na nuvem, querer ter um console para brincar, um cartucho para assoprar quando o jogo não funciona, não é nenhuma maluquice retrô. É sanidade vintage.

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