É hora da prisão, Bolsonaro
Entre novembro de 2022 e janeiro do ano passado, o Brasil sofreu uma tentativa de golpe de Estado. O ato final deste processo foi a intentona bolsonaresca, como a apelidou o cientista político Claudio Couto, do dia 8 de janeiro. Ontem mais cedo, o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, criou uma comissão especial para estudar o projeto de anistia de todas as pessoas que invadiram os palácios do Congresso, do Planalto e do Supremo. Essa comissão é uma boa notícia. Quer dizer que Lira tem zero pressa de votar a tal anistia. Não que faça muita diferença. A Câmara pode até ser de direita, mas são no máximo uns 150 deputados os dispostos a votar esse troço.
Também ontem, tivemos a notícia de que o relatório final da Polícia Federal concluiu que a Secretaria de Segurança Pública do Distrito Federal falhou gravemente na sua obrigação de proteger a República. A falta maior foi por conta da ausência repentina, inesperada mesmo, do secretário de segurança. Quem era o secretário? Anderson Torres. O sujeito que dias antes ainda servia como ministro da Justiça do governo Bolsonaro. Mas não foi só a ausência dele. O governo do DF sabia que havia risco da invasão, essas informações estavam num relatório de inteligência, e isso não foi compartilhado com quem devia. Parece, até, que deixaram de propósito acontecer. Que surpresa. Esse é o resultado de um inquérito da Polícia Federal.
Ou seja, a responsabilidade pelos ataques aos prédios não é apenas dos mais de duzentos condenados. É, também, pelas faltas graves do comando da polícia de Brasília. E segue tendo condenação. Na sexta-feira foram mais doze réus denunciados pela Procuradoria-Geral da República, condenados por incitação e associação criminosa. No caso desses, não vão cumprir pena de prisão, terão de prestar 225 horas de serviços à comunidade e precisarão sentar na sala de aula para aprender o que é democracia. Vai doer no bolso, também. Foram condenados, coletivamente, a pagar uma indenização no valor mínimo de 5 milhões de reais por danos morais. A conta vai ser dividida por todos que forem condenados, ao fim do processo. Nessa sessão de sexta-feira, outros dois sujeitos foram condenados a doze anos de reclusão pelo crime de abolição violenta do Estado Democrático de Direito, por golpe de Estado e por associação criminosa armada.
Tem algumas discussões que nós precisamos ter. A primeira começa pelo empenho do PL nessa anistia. O discurso, da boca para fora, é o seguinte: são pobres coitados. Não fizeram nada demais. Eram desavisados, patriotas sonhando com um Brasil melhor, frustrados com o resultado da eleição. Só extravasaram. As pessoas fazem bobagem na vida. Isso não justifica as penas tão severas desse Supremo malvado.
Esse é o discurso do PL, do partido de Jair Bolsonaro.
Sabe, uma das coisas que vocês têm me ouvido falar mais, aqui, é o seguinte: precisamos tratar adultos como adultos. Coisa insuportável esse paternalismo. Vamos tratar as pessoas com decência. Como quem é capaz de compreender o mundo ao redor, tirar conclusões por conta própria. Para a esquerda, isso quer dizer o seguinte: adultos na periferia querem outro tipo de trabalho? Querem crescer? Essas pessoas não são manipuladas, iludidas por um capitalismo malvado que se esconde embaixo da cama. Essas pessoas querem o que gente quer em todo canto do mundo. Uma vida melhor. Fazem suas escolhas, chegam às conclusões a respeito de seus próprios valores, e votam de acordo. Para a turma bolsonarista, isso quer dizer o seguinte: espatifou a vidraça de um palácio, fez cocô no meio de um salão de mármore, destruiu um relógio antiquíssimo, rasgou a tela de uma obra de arte? Invadiu o que estava trancado? Adultos são adultos, sabem perfeitamente quando estão cometendo um crime. As penas são duras? São. Essas pessoas tinham um propósito ali: impedir que o presidente da República eleito pelo voto popular governasse. É crime. É um crime particularmente grave. Não conhecia a pena? Era só procurar no Google.
Mas, agora vem cá: algum de vocês acredita no discurso do PL? Alguém realmente acha que Bolsonaro está preocupado com qualquer pessoa além dele e dos filhos? Pois é. Não é disso que trata a ideia de anistia, né?
Bolsonaro sabe que o menor dos problemas dele é ter tido os direitos políticos cassados. Ele sabe muito bem o que o rigor do Supremo com esses pobres coitados quer dizer. Quer dizer que os ministros estão começando o julgamento da tentativa de golpe de Estado de baixo e vão subir, vão subir, vão até o topo. E se gente apanhada com barra de ferro na mão está sendo condenada a doze anos de reclusão, imagina quem mandou?
O que Bolsonaro quer é muito simples. Se o Congresso anistia a arraia miúda, a chance aumenta de anistiar o chefe lá em cima.
Olha, de vez em quando, por aqui, pintam uns desavisados dizendo que não dá pra chamar aquela palhaçada do 8 de janeiro de golpe de Estado. A República jamais esteve e risco, eles dizem. Só os prédios foram danificados. Pois bem, quem diz isso não acompanhou as investigações da Polícia Federal. Porque o problema não é o 8 de janeiro. O 8 de janeiro foi a última cartada, a última tentativa desesperada de impedir o governo Lula de seguir. De derrubar a República de 1988.
Nós temos documentos, trocas de mensagens e depoimentos de viva voz que afirmam o seguinte: ao perder a eleição presidencial de 2022, o presidente Jair Bolsonaro pediu aos comandantes de Exército, Marinha e Aeronáutica que dessem um golpe militar.
A coisa aconteceria da seguinte forma: Bolsonaro declararia Estado de Defesa, que serve para convocar as Forças Armadas para “restabelecer a ordem pública e a paz social quando há grave e iminente instabilidade institucional”. A partir daí, militares de elite dariam voz de prisão para ministros do Supremo e do Tribunal Superior Eleitoral, e o governo montaria uma Comissão de Regularidade Eleitoral que reveria o processo, inventaria uma fraude que não houve e aí acabou. Uma nova eleição seria convocada, certamente a la Maduro, e Bolsonaro permaneceria presidente.
Vejam: isto não é uma suposição. Temos duas testemunhas afirmando em depoimento à polícia que o então presidente Jair Bolsonaro explicou este plano em minúcias. As duas testemunhas são o general de Exército Marco Antônio Freire Gomes e o tenente-brigadeiro do Ar Carlos de Almeida Baptista Júnior. Estamos falando de quem, na época, eram os comandantes do Exército e da Aeronáutica. Se testemunhas deste calibre não valem, nenhuma testemunha vale. E os dois disseram: não. Freire Gomes se virou para o presidente e deixou muito claro. “Do ponto de vista militar, não há possibilidade de reverter o resultado das eleições.” Foi o que o comandante do Exército Brasileiro precisou dizer pra Bolsonaro. Os dois disseram pra polícia, inclusive, que o almirante de Esquadra Almir Garnier Santos, o comandante da Marinha, topou. Disse que a Marinha estava à disposição.
É preciso deixar uma coisa clara, aqui: isto é a descrição de um golpe militar. Se as Forças Armadas dão suporte com seus homens e equipamentos a um processo de cancelar eleições legítimas para mudar que manda no país, é isso que um golpe militar é. Definição de dicionário. Não deu certo. E não deu certo por um motivo muito simples. Quem estava no comando de duas das três armas fez o que tem de fazer. Os dois seguiram a Constituição. Só isso.
Quando Exército e Aeronáutica não entraram no jogo, o golpe não pôde acontecer. Sem as armas, sem o uso da força, não haveria prisão de ministros do Supremo e, sem esta prisão, não teria comissão nenhuma. É aí que o 8 de Janeiro entra. Lula tomou posse e o ministro da Justiça Anderson Torres, um dos responsáveis pelo planejamento do golpe, virou convenientemente o chefe da polícia do Distrito Federal. Ele teve, nas suas mãos, a oportunidade de uma última cartada.
Uma multidão de pessoas foi convocada pra Brasília. Eles foram. Foram convocadas a invadir os palácios dos Três Poderes. Anderson desmontou o aparato de segurança do Distrito Federal para que a invasão ocorresse e aí correu pros Estados Unidos. Era para estar longe quando o desastre se impusesse. Ô gente covarde, essa. Deixa o povão fazer o estrago e fica bem de longe observando. A esperança era de que o novo presidente impetrasse uma Garantia da Lei e da Ordem e, assim, convocasse as Forças Armadas para assumir a segurança de Brasília. Literalmente queriam que Lula pusesse os tanques na Esplanada dos Ministérios. Era uma última oportunidade de fazer o golpe acontecer.
Só que não aconteceu. Não aconteceu porque o governo federal havia entendido o óbvio. Que, se o alto comando das Forças era constitucional, não estava claro, como continua não estando claro, que todos os militares entendam seu papel numa democracia.
Bolsonaro não quer a anistia da arraia miúda golpista. Ele quer a sua anistia. Ele, os generais de reserva que se envolveram no planejamento do golpe, Anderson Torres, Filipe Martins, o almirante Garnier, todos tomaram parte no crime mais grave contra uma democracia. Em toda história da República brasileira, incontáveis vezes militares fizeram isso. Derrubaram a Constituição ou, ao menos, tentaram fazê-lo. Esta não foi a primeira vez, muito pelo contrário.
Agora o que está acontecendo é o seguinte: Jair Bolsonaro está em seu momento mais fraco desde que deixou a presidência. Toda a direita entendeu que ele é popular, mas não consegue ganhar eleição. Tarcisio de Freitas ficou maior do que ele. Gilberto Kassab é maior do que ele. Waldemar da Costa Neto tem mais poder do que ele. Ronaldo Caiado deu uma volta nele. Arthur Lira não tirou o projeto da anistia da frente um dia após o segundo turno das eleições à toa. Bolsonaro está descoberto, cassado, sem direitos políticos, sem aliado que dependa de seus votos em cargo importante. O flanco abriu e os tubarões começaram a cercá-lo. A gente vai assistir a essa dança nos próximos anos.
E, olha, é hora de a gente tratar isso com rigor. O Congresso não parece que vai anistiar quem já foi condenado. Isso abre espaço para o Supremo cumprir seu papel. Condenar todo mundo. Do sujeito pego com a barra de ferro dentro dos três poderes ao cara lá no Alvorada que um dia convidou um general, um brigadeiro e um almirante para fazerem um movimento.