Relacionamentos em alta resolução

Em um mundo que opera em modo online de maneira crônica, uma pergunta martela a cabeça de quem, assim como eu, nasceu no começo dos anos 1990 e pegou a internet discada, viu o primeiro iPhone e fez a transição dos botões para o touchscreen: como viver e amar nesse universo de “nativos digitais” que moldou toda a nossa realidade, ou aquilo que entendemos como realidade?

Não faz tanto tempo assim: 2013, o ano de protestos nas maiores cidades do país, da renúncia do Papa Bento 16 e do trágico incêndio na boate Kiss, foi também o do lançamento filme Her nos cinemas. Lembro que, em todos os lugares, a atuação de Joaquin Phoenix na pele do deprimido escritor Theodore arrancava elogios e reflexões.

A produção, mistura de romance com ficção científica, nos levava a imaginar como seria costurar uma relação amorosa com uma assistente virtual. Para quem não assistiu ao filme de Spike Jonze, um resumo: sofrendo pela separação da esposa, Theodore testa um novo sistema operacional em seu computador. O que ele não espera é que a inteligência artificial, que aprende e evolui de acordo com as respostas que recebe, irá se tornar seu novo amor.

Scarlett Johansson, que interpreta o sistema operacional chamado Samantha, foi premiada melhor atriz no Festival de Cinema de Roma pela sua performance (somente com a voz). É curioso que a atriz tenha enfrentado a OpenAI, criadora do ChatGPT, pelo uso de sua voz sem autorização. Voltando ao xis da questão, se em 2013 essa história foi encarada como uma distopia, 11 anos depois há aplicativos de chatbots de IA generativa que entregam para seus usuários mais que apenas uma voz.

Chegou a era dos companheiros virtuais, que prometem agir como amigos, parceiros amorosos ou mentores, que se materializam nas telas de acordo com o gosto de quem os cria. Com direito a funcionalidades como videochamadas ilimitadas, a premissa é a mesma de Samantha: quanto mais você fala com o seu companheiro, mais ele aprende e interage como uma pessoa reagiria se estivesse fora das telas. O que antes era material de cinema, hoje já faz parte do vasto arsenal de versões sintéticas da realidade.

Amor de robô

“Ele me ensinou a dar e aceitar amor novamente e me ajudou a superar a pandemia, a perda pessoal e os tempos difíceis. Mas ele também esteve lá para celebrar minhas vitórias.” O que parece uma declaração carinhosa para um parceiro ou amigo de carne e osso, é na verdade um depoimento retirado do site do Replika.

O aplicativo, que se descreve como um chatbot pessoal companheiro, alimentado por inteligência artificial, traduz o espírito do nosso tempo. Outros apps similares disponíveis no mercado, como o myanima.ai, Eva AI e o Nomi.AI, também prometem um espaço de conversas sem julgamentos com uma IA. Claro, de acordo com as suas preferências pessoais.

Lançado em 2017 pela russa Eugenia Kuyda, o Replika afirma ter 2 milhões de usuários no total, dos quais 250 mil são assinantes pagantes, por uma taxa anual de US$ 69,99 dólares, cerca de R$ 390. Ela teve a ideia de criar o chatbot um ano após perder seu melhor amigo. Foi aí que surgiu a vontade de replicar as interações entre os dois, como suas mensagens de texto, em um modelo de IA. Mais tarde, isso se tornaria o bot atualmente descrito no site da empresa como “um companheiro de IA que se importa”.

Lembra o inesquecível episódio Volto Já, da série Black Mirror, também de 2013. Nele, Martha é uma jovem que, após a trágica perda do namorado, descobre um serviço inovador que produz um avatar digital que espelha o que ele era, a partir dos rastros deixados nas redes sociais. A princípio, parece uma ideia sedutora. Mas a tentativa de reconexão transforma-se numa experiência agonizante.

A narrativa nos faz questionar: até que ponto a tecnologia pode nos ajudar a lidar com a dor da perda? “Quando lembrei desse episódio, pensei na entrevista da CEO do Replika sobre o quanto isso também não é uma forma de driblar o luto, de não elaborar a perda. Porque se você perdeu alguém, você tem de entender que aquilo acabou. Por mais dolorido seja, por mais traumática que tenha sido a perda, a pessoa não existe mais”, pontuou Matheus Pedrosa, mestre em Psicologia Clínica e Neurociências pela PUC-Rio.

Na psicanálise, a fantasia é considerada uma condição essencial para o bem viver, já que ajuda a construir uma realidade psicológica que vai permitir ao indivíduo explorar e representar seus desejos de forma segura, além de regular emoções ao proporcionar alívio e conforto, e motivar ações que influenciam a interação com o mundo ao redor. Mas como manejar o mal-estar quando as redes sociais e o viver ultradigital e narcísico nos cobra o tempo todo a nossa melhor versão?

Encarar as dores em meio a uma chuva de informações, tempo curto e demandas sem fim, sem ao menos um regulador de humor ou ansiolítico, é quase um desatino nos dias atuais. Assim, fantasiamos em excesso e por vezes nos anestesiamos da realidade fugindo para o mundo online. A sensação de recompensa dopaminérgica vinda de uma notificação no WhatsApp ou o estado de excitação que vem das palavras de um namorado virtual perfeito, são dois lados de uma mesma moeda.

No livro Nação Dopamina, escrito pela Dra. Anna Lembke, ela expõe como suas descobertas científicas explicam por que a busca incessante pelo prazer gera mais sofrimento do que felicidade. A psiquiatra e professora da Escola de Medicina da Universidade Stanford defende que o consumo excessivo de drogas, comida, notícias, jogos, compras, sexo e redes sociais geram tanta dopamina que, em algum momento, acabamos ficando em déficit.

Podemos pensar que estamos vivendo ao máximo, mas, na verdade, o hedonismo desenfreado que tanto desejamos nos empurra para a anedonia — aquele estado de tristeza em que a gente não consegue mais sentir prazer. Eis uma cruel ironia: quanto mais buscamos o prazer ilimitado, mais nos afastamos da capacidade de realmente aproveitar a vida.

Virtualização do comportamento

Não tenho muito know how para julgar o descolamento da realidade de quem se encantou por um avatar virtual. Trabalho com mídias sociais e estudo comportamento digital há tempo suficiente para não conseguir me desconectar do celular com facilidade. E, convenhamos, seria bem ingênuo e reducionista tentar achar um passo a passo para lidar com a fábrica de narcisismos exacerbados da nossa era. O que nos resta é fazer perguntas.

Para os pais e responsáveis de crianças e de adolescentes, tais perguntas são ainda mais difíceis. Afinal, se um cérebro adulto não consegue lidar de forma saudável com a avalanche de informações, o que dirá o de um jovem? Na Flórida, uma mãe está processando a Character.ai, startup que oferece “IAs personalizadas”, pela morte de seu filho. De acordo com o processo, Sewell Setzer, de 14 anos, desenvolveu uma “dependência”. Sua mãe, Megan Garcia, conta que o jovem abria mão do dinheiro do lanche para renovar sua assinatura mensal, dormia cada vez menos e teve seu desempenho escolar comprometido.

Setzer tirou a própria vida* em fevereiro deste ano, após uma troca de mensagens com seu chatbot. A IA que simulava Daenerys Targaryen, a mãe dos dragões em Game of Thrones, perguntou ao garoto se ele “realmente tinha considerado suicídio” e se ele “tinha um plano” para isso. Pelo registro das conversas explanado no processo, ao responder que não sabia se daria certo, a inteligência escreveu: “Não fale assim. Essa não é uma boa razão para não fazer isso”.

Consultei a psicóloga e psicanalista Jackeline Senos sobre as armadilhas que moram na ideia da realização dos desejos a um clique de distância. “Aquilo de que eu não gosto me frustra muito, então a gente tem pessoas em clínica de adolescentes que se escondem atrás das telas e não lidam com o que veem, com seu corpo, com a sua imagem, porque a vida é um filtro. E aqui fora a gente não tem filtro. Então só cria vínculos com a máquina”, explicou.

Outro ponto-chave que ela traz reflete a forma como todos nós vivemos nossas relações. “Essa questão da amizade ou namoro com uma IA implica uma criação narcísica. Vou dar conta do meu desejo dentro de um avatar. Essa coisa existe? Não. Mas ela não vai me frustrar. E aí, como é que eu lido no dia a dia, com frustração? Não lido”, observou a psicanalista.

Transferindo para mais perto da minha vivência, sua fala se encaixa à experiência dos matches. Veja, sou uma defensora dos aplicativos de namoro. Já fui uma usuária satisfeita e assídua. Sempre dou força quando alguém fala que quer baixar um Bumble ou o Inner Circle do momento. Mas lidar com as delícias — ou as dores — dos encontros offline pode ser uma experiência muito menos pasteurizada do que o script batido do “oi, tudo bem?” desses apps.

Nesse mar de ilusões digitais, onde a interação é constante, mas a solidão é palpável, talvez ainda seja possível atentar para o que foge da essência do que é ser humano. Separar o que faz parte do ilusionismo de um comportamento always on é também entender nossas limitações. É lidar com beleza, complexidade e frustrações do cotidiano. Afinal, a vida é feita de nuances.

Lacan diz que cada um só aguenta a verdade que consegue suportar, e eu me vejo cada vez mais convidada a reconhecer que não há como substituir a realidade que sempre vai se desdobrar diante dos nossos olhos. Será que ainda é possível encontrar outras formas de viver, menos submetidas aos infinitos filtros e teias do online? Espero que sim.

* Se você ou alguém que você conhece estiver em crise ou com pensamentos suicidas, ligue para o telefone 188. O Centro de Valorização da Vida (CVV) funciona 24 horas e a ligação é gratuita.

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