‘A Vegetariana’, da vencedora do Nobel de literatura Han Kang, redimensiona as pequenas violências

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‘A Vegetariana’, aclamada obra da mais recente vencedora do Nobel de literatura, não é sobre alimentação ou sobre o dilema de comer ou não carne, por mais que o título possa sugerir isso. A autora sul-coreana Han Kang pega algo comum e cotidiano para explorar a profundidade das relações humanas. Na obra, há uma mulher, Yeonghye, que decide abandonar os alimentos de origem animal de sua dieta. Diferentemente de 8% da população mundial ou de 14% do Brasil que são vegetarianos, sua decisão não teve como motivo saúde, religião ou até o impacto ambiental da indústria da proteína animal. Foram sonhos. Ou pesadelos. O que seria uma simples decisão de dieta provoca uma série de questionamentos das pessoas ao seu redor, e o texto, bem-escrito e dinâmico, faz o leitor se questionar a todo momento sobre do que realmente se trata a obra, já que decidir o que se come não é algo atípico.

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Ambientado em Seul, o livro tem pouco mais de 100 páginas e apenas três capítulos, cada um do ponto de vista de alguma pessoa próxima de Yeonghye. Somente quando conta sobre seus recorrentes pesadelos é que ouvimos o seu ponto de vista sobre os fatos, que vão escalando a níveis difíceis de serem imaginados no começo da leitura.

Mas, afinal, sobre o que é o livro de Han Kang? Ao procurar mais detalhes sobre a obra, é difícil não se deparar com uma referência utilizada pela autora, um verso do poeta modernista coreano Yi Sáng (1910-1937) que, no contexto do violento colonialismo japonês no país, escreveu: “Eu acredito que os humanos deveriam ser plantas”. Por trás de aparente ingenuidade, a frase deixa implícita a incapacidade que os vegetais têm de fazer mal, ao contrário dos animais, ainda mais dos humanos, que nem sempre praticam a maldade apenas por sobrevivência ou instinto. No livro sul-coreano, a protagonista também parece querer pôr fim à violência. Mas então o leitor talvez, como eu, se pergunte por quais violências a protagonista passou, já que a protagonista é uma mulher comum da Coreia do Sul, em um contexto contemporâneo. E eis a genialidade da obra: apresentar aos poucos doses de violência cotidiana. Não aquela vista em guerras, mas a do dia a dia. Que por vezes vem em pequenas doses, facilitando com que nos dessensibilizemos dela. Aquela que acostuma o espectador e vai matando aos poucos a vítima, a desumanizando.

Ora, se Yeonghye não tem liberdade plena de escolher o que comer ou não, das coisas mais essenciais e básicas da vida, que dirá decidir se vai ou não fazer sexo com o marido – homem que diz a ter escolhido por ela não ser especial, demonstra frieza e um calculismo com a esposa pior do que o mais frio dos homens de grandes metrópoles. Depois de tanta desumanização ao longo das páginas, não é algo tão fora da realidade imaginar ou querer ser uma planta. A protagonista nunca se descreve como “vegetariana”, então, o próprio título do livro faz menção não a uma autodescrição, mas sim à forma com que os outros a enxergavam por não a compreenderem por inteiro. A quantas mulheres é negado o direito de ser? E depois, à menor demonstração de contrariedade com as normas sociais, quantas não são taxadas como loucas, estranhas ou outros adjetivos pejorativos?

Por fim, saindo da obra, é possível afirmar: a Coreia do Sul veio para ficar no campo das artes. Se Parasita venceu o Oscar, o K-pop é febre no mundo todo, os doramas lotam as listas dos streamings, e, agora, Han Kang vence o Nobel de literatura, não é por acaso. O país asiático entendeu que, hoje, para ganhar relevância e poder na balança global, não é necessário disparar um único tiro. Ao invés da ameaça, que tal exportar cultura? Claro, o país teve como projeto de Estado o investimento em suas obras e, dada a qualidade alcançada, não é preciso esforço para ter simpatizado com algum elemento ou expressão artística da Coreia do Sul. O conceito de “soft power” é exatamente esse: o domínio e o poder suave. Sem derramar sangue, no máximo derramando lágrimas de emoção de expectadores. E nesse sentido o Brasil sempre foi ativo, mas poderia ser muito mais. Não há desejo subjetivo que não seja antecedido por uma realidade objetiva. As plantas podem até não ser violentas, mas tampouco são capazes de produzir e absorver a arte. Alguma vantagem sobre elas nós teríamos que ter, certo?

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