A esquerda perdeu feio

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Quem olha o resultado da eleição municipal de ontem não sai com a impressão de que exista um Brasil polarizado. Não há. O que existe é um Brasil disputado pelo Centrão de um lado, pela direita radical do outro, salpicado com um temperinho de esquerda aqui e ali. Mas vamos começar por São Paulo. São Paulo nos ajuda a entender o Brasil.

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Pois bem… Cinquenta e seis mil, oitocentos e cinquenta e três votos num universo de nove milhões, trezentos mil e tantos eleitores. Essa é a diferença entre Pablo Marçal e Guilherme Boulos. Foi muito, muito, muito pouco. O segundo turno não foi entre Marçal e Nunes por um fio. Caísse uma chuva um pouco mais pesada num dos bairros do Centro, era um segundo turno de direita.

Por que Centro? Bem, para quem não conhece bem a geografia de São Paulo, a cidade é dividida em quatro grandes regiões. O Centro e as Zonas Sul, Norte e Leste. Em 2000, Marta Suplicy se elegeu prefeita vencendo no extremo Leste e na Zona Sul. É onde São Paulo é mais pobre. E ela foi mais mal votada no Centro, que é onde São Paulo é mais rica. Ontem, Boulos venceu no extremo Leste, como Marta. Mas venceu no Centro e perdeu para Ricardo Nunes na Zona Sul. Boulos foi melhor votado do que Marçal e Nunes onde São Paulo é mais rica. E a Zona Leste, a ZL, a São Paulo da Classe C, a primeira São Paulo periférica a ser chamada de periferia, a São Paulo menos arborizada, a São Paulo dos motoristas de Uber e motoqueiros de aplicativo, da turma que rala, a cidade do time popular dos operários de fábrica, o Corinthians, essa São Paulo votou em Pablo Marçal.

Boulos só vence se levar todos os votos de Tabata Amaral, de Datena e ainda carregar pelo menos um terço dos votos de Marçal. Sem os votos de Marçal, Boulos não tem qualquer chance contra o prefeito Ricardo Nunes.

Esse é o problema de Boulos e é, também, o problema de Maria do Rosário, lá em Porto Alegre. Ela, por um fio de cabelo, conseguiu levar a eleição pro segundo turno. Por muito pouco o atual prefeito, Sebastião Melo, com as enchentes do primeiro semestre e tudo, não venceu no domingo mesmo. O PT gaúcho vai precisar levar todos os votos dos adversários e torcer pra Melo perder uns no caminho. Já aconteceu antes, ninguém espera que aconteça agora.

Vejam, não é que o PT ficou menor. O PT saiu desta eleição maior do que estava. Tinha 178 prefeitos, elegeu 247. Melhorou. E, assim, se tornou o nono maior partido brasileiro em número de prefeituras. Mas quase tudo em cidade pequena. O PSD, partido de Gilberto Kassab, do prefeito carioca Eduardo Paes, que se reelegeu no primeiro turno, levou 877 prefeituras. Percebem a surra que o PT levou?

O MDB fez 845. O PP, 743. Tanto União Brasil quanto PL fizeram mais de quinhentas prefeituras. Até Republicanos, PSB e PSDB, o moribundo PSDB, fizeram mais prefeituras do que o PT.

Gente, o partido mais votado nas capitais do Nordeste foi o PL, o partido de Jair Bolsonaro. Ontem, o pessoal de esquerda estava espalhando o meme “este ano não tem o Nordeste para salvar” por aí. Que Nordeste? O PL elegeu o prefeito de Maceió no primeiro turno e vai disputar a segunda rodada em Aracaju, João Pessoa e Fortaleza. Em Fortaleza o adversário é o PT, que larga em desvantagem. Os petistas também estão no segundo turno em Natal. Nas capitais nordestinas, encerra aí. A esquerda que ganhou no Nordeste foi o PSB, o prefeito João Campos, do Recife, que a esquerda costuma dizer que não é esquerda de verdade.

Agora, nada disso quer dizer que Jair Bolsonaro se saiu bem, não, tá? Porque, vejam, o sujeito se apavorou com o movimento de seus eleitores pró-Pablo Marçal, em São Paulo, e seu sumiu do mapa. Quem botou Nunes embaixo do braço, o assumiu como seu candidato e saiu batendo perna pela cidade, pra cima e pra baixo, foi o governador Tarcisio de Freitas. Se Nunes perdesse, a conta do desgaste ia para Tarcisio. Tem tudo para fazer o prefeito da capital, se cacifa assim com mais poder, e vai depender menos de Bolsonaro. O candidato que Bolsonaro encampou, vestiu a camisa, foi no Rio, Alexandre Ramagem. Não chegou ao segundo turno. Então, ironicamente, a direita sai muito mais forte desta eleição, mas sai com claros sinais de que ela pode existir com força sem Jair Bolsonaro. Pode existir numa versão Centrão e pode existir também numa versão radical, sem o ex-presidente. Foi o que Pablo Marçal provou.

Provou isso e também rodou. Pablo Marçal acabou como político. A Justiça eleitoral tinha um problemaço com ele. Mas, o próprio candidato resolveu tudo em dois lances. Um, quando publicou aquele absurdo laudo médico falso, uma mentira contra Guilherme Boulos. Noutro, quando mesmo com a mentira não chegou ao segundo turno. Agora, Marçal vai terminar inelegível.

A gente fica com duas perguntas aqui. Por que Marçal se tornará inelegível? E, dois: o que aconteceu com a esquerda? Pista: continuar chamando gente pobre que vota na direita de burra, de manipulada ou alienada não resolve nada para a esquerda. Já passou da hora de calçar as sandálias da humildade e reconhecer que perdeu a capacidade de entender o que o povo busca.

Imagina a situação. Essa turma, os políticos anti-sistema como Bolsonaro, como Pablo Marçal, têm na raiz dos seus discursos a ideia de que existe um sistema, um colegiado de poderosos que impede o povo de chegar lá. E eles, claro, são os líderes do povo. Aí Marçal se elege prefeito de São Paulo e o que acontece? É cassado pela Justiça Eleitoral. Pior. É cassado porque violou as regras de paridade de gastos. Quer dizer, ele não pode botar seu dinheiro, ou suas empresas, a serviço de sua candidatura. Tem outras opções, é cassado porque houve uma violação do acordo interno de distribuição de candidaturas feito pelo PRTB e sancionado, no ano passado, pelo TSE.

Essas coisas são complicadas de explicar, não se resolve num vídeo de cinquenta segundos. O que soa? Ora, soa como o sistema está tirando o líder que o povo quer.

Mas, aí, o que aconteceu? Primeiro, Marçal não chegou ao segundo turno. Ficou muito perto, mas perdeu. Não bastasse isso, ele publicou um laudo falso, pateticamente falso, um laudo que foi desmontado por completo em poucas horas. O médico que assina? Está morto. Era hematologista, não psiquiatra. A logomarca da clínica no papel? Trocado. Na hora em que Boulos estaria sendo internado, na verdade estava fazendo uma live nas redes sociais. E já tem caso de o TSE ter tornado inelegível um político eleito por uso de desinformação na campanha. Tem coisa mais simples de explicar do que isso? Está sendo cassado porque inventou uma mentira cabeluda contra o adversário. E nem tinha chance de se eleger mesmo. Fecha o tampo. Lá no TSE a expectativa é de que Pablo Marçal estará inelegível quando vier a eleição de 2026.

Esse não atrapalha mais. Agora, que ninguém se engane. Ele inventou um jeito novo de falar com o eleitorado. A turma da Locomotiva, uma excelente agência de pesquisas, fez um estudo para a última edição da Veja. Mais da metade da Classe C quer a família tradicional preservada, considera que a religião é importante na criação dos filhos e não deseja educação sexual nas escolas. São a favor de programas sociais para combate da pobreza, querem escola pública de qualidade, saúde idem.

Agora, não acham que preservação das estruturas formais de trabalho sejam o melhor caminho. Querem mais opções para facilitar a vida de quem deseja empreender. Isso, ao mesmo tempo em que desejam aumento de impostos pros mais ricos. Parece pauta de esquerda, mas não é, não. As políticas de incentivo à indústria, no Brasil, que a esquerda favorece, dá incentivos fiscais a empresários grandes, em detrimento de fortalecer o empreendedor miúdo ali na ponta.

Essas pessoas não são irrazoáveis. Elas não acham, por exemplo, que dependente de drogas tenha de ser preso. Não, elas acham que eles precisam ser tratados com compaixão. Se dividem quase que meio a meio sobre repressão policial versus programas sociais. Mesma coisa com rigor na punição versus ressocialização de criminosos.

Gente, essas pessoas são cristãs. É isso que seus valores dizem. Querem ascender socialmente. Querem virar self made men. Gente que constrói riqueza, que cresce. Isso é uma baita energia. São conservadores, sim. Mas, mesmo sendo conservadores, 51% acham que casais homossexuais devem ter os mesmos direitos que os heterossexuais.

A dificuldade que a esquerda tem de falar com essas pessoas com quem Pablo Marçal conversa passa muito mais por política econômica do que por política social. Esse é o Brasil. Ontem, a esquerda tomou uma surra eleitoral. Vamos falar claro. Foi uma surra. Isso não aconteceu porque os brasileiros são alienados. Aconteceu porque os brasileiros ouviram o que a esquerda tem a oferecer e discordam. Tem duas saídas. Ou a esquerda se adapta ao brasileiro ou o convence de que está errado.

Mas, para convencer, vai precisar aprender a conversar no digital. Porque não está sabendo, não.

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