Recapitulando
Ao olhar para o passado, o desempenho de governo e oposição pode trazer indícios do futuro
O primeiro turno das eleições municipais está ali na esquina do próximo domingo. Seus resultados interessam na medida em que sirvam para medir o estado das forças políticas do país e, a partir daí, indagar para onde caminha a democracia brasileira. As eleições de 2024 assinalam tanto os dois anos de fim do governo Bolsonaro quanto os dois anos do terceiro mandato de Lula. Por aqui que a análise deve começar.
Regimes políticos podem durar indefinidamente do ponto de vista formal. Assim, a monarquia constitucional britânica e a república norte-americana perduram há séculos: respectivamente, desde 1689 e 1787 (ou 1865, se contarmos da guerra civil). O que interessa, porém, é o regime do ponto de vista substantivo. Refiro-me ao seu modelo de governabilidade, ou seja, à forma como as instituições políticas encontram e eventualmente perdem a sua rotina, de acordo com as transformações socioeconômicas ocorridas na sua base.
O sistema constitucional e representativo brasileiro, como o britânico e norte-americano, é bastante antigo. Em breve completará dois séculos. Começou em 1826, quando Parlamento e Supremo Tribunal começaram a funcionar. De lá para cá, sofreu muitas transformações. Durante um longo processo de democratização, transitou-se primeiro da monarquia absoluta para a parlamentar e desta última para república presidencial. Na sequência, atravessamos várias repúblicas – algumas mais liberais, outras mais autoritárias –, até chegarmos à atual, a de 1988, que consolidou a democracia.
A estabilidade institucional não chega automaticamente com a inauguração formal do regime. Necessita de uma governabilidade que paute a relação entre os poderes. No Império, ela demorou vinte anos, com o modelo regressista ou saquarema de governabilidade de Bernardo de Vasconcelos. Na Primeira República, depois de dez anos, com a política dos governadores de Campos Sales. Estabilidade não houve no Brasil depois de 1930: nem no Estado Novo, nem na República de 1946, nem na ditadura militar. Na República de 1988, depois de seis anos, ela chegou com a organização do presidencialismo de coalizão no governo Fernando Henrique.
Modelos de governabilidade perigam quando as instituições não acompanham as mudanças sociais e ocorre uma crise de legitimidade do sistema político.
Modelos de governabilidade perigam quando as instituições não acompanham as mudanças sociais e ocorre uma crise de legitimidade do sistema político. Se havia um cimento que levava à rua os insatisfeitos das jornadas de 2013, era justamente o reclamo de não se sentirem representados. A operação Lava Jato serviu de para-raios para a insatisfação generalizada. Como se o Judiciário pudesse substituir o Legislativo e o Executivo como representantes da nação e obrigá-los a golpe de sentenças a se tornarem mais representativos.
Turbinada pela crise econômica, a de representatividade colapsou o modelo de governabilidade e levou o país a experimentar uma espiral de instabilidade contínua nos anos seguintes. Para sobreviver à “revolução judiciarista”, o sistema político derrubou uma presidente da República, enquanto o judiciarismo quase derrubou seu sucessor. Temer fez o que pôde para neutralizar a “revolução”, e o Supremo Tribunal Federal (STF) entrou na roda da desmoralização. A nova direita não se via contemplada na progressista república de 1988, protegida pelo Supremo Tribunal. Só uma nova eleição geral poderia devolver legitimidade ao sistema.
Democracia em risco
Foi nesse quadro que ocorreram as eleições de 2018. Nunca a democracia correu tanto perigo. Caso Haddad tivesse vencido, talvez ali sim um golpe militar o tivesse impedido de tomar posse. Bastavam, dizia-se, um cabo e um soldado. Mas a eleição de Bolsonaro operou como o equivalente funcional de um golpe e dispensou a ruptura formal. A nova direita, contudo, não entrou não somente no Planalto: entrou no Congresso e nas governadorias de Estados. A renovação reduziu a pressão das ruas e das redes sobre o sistema político. Bolsonaro poderia ter governado desde o início no quadro desse sistema renovado. Como Collor em 1990, o ambiente de desmoralização geral lhe teria permitido fazer o que quisesse.
Não foi o que Bolsonaro fez. Cercado por uma malta de desqualificados, seu único projeto político era o de submeter toda a direita à camarilha em torno de sua família e perpetuar-se no poder, obedecendo à malta golpista de reacionários e fascistas das ruas e das redes. Para tanto, continuou fazendo o papel de populista antissistema, atacando e fazendo atacar diuturnamente o Supremo e o Congresso, governando apenas com olavistas e militares. Para o Supremo, do ponto de vista político, os ataques foram um presente, que lhe permitiram abandonar reinventar-se como bastião da democracia constitucional.
O centrão do Congresso viu uma oportunidade de se meter e obter assim ganhos na briga entre entre Bolsonaro e o Supremo. Depois de décadas de presidencialismo de coalizão e, depois, de judiciarismo, o sonho de Arthur Lira e Ciro Nogueira era recuperar o poder perdido com a saída de Temer e perenizar a autonomia e imunidade do bloco, por um semipresidencialismo de fato ou de direito. A inexperiência, a estupidez e a arrogância de Bolsonaro adiaram a aliança para a segunda metade do mandado, quando o fantasma do impeachment lhe bateu as portas. Foi quando o STF liberou Lula para concorrer à eleição de 2022. Quando viu que perderia a reeleição, Bolsonaro tentou roubá-la; quando a perdeu, tentou dar um golpe de Estado, e fracassou.
Quando Bolsonaro assumiu, não se sabia qual seria o sentido histórico de seu governo na República de 1988. Ele podia ser um Castelo Branco – um militar que derrubasse o regime. Ou podia ser também um Hermes da Fonseca – outro militar, cujo quadriênio violento e caótico (1910-1914) suspendeu a política dos governadores, decretou estados de sítio, ignorou acórdãos do Supremo e bombardeou capitais como Salvador e Manaus. Mas foi um intervalo no regime. Seu sucessor, o pacífico Venceslau Brás, não só restaurou como reforçou as rotinas institucionais da República de 1891.
Olhando a posteriori, Bolsonaro esteve mais para Hermes. Daí talvez se possa extrair também o significado histórico do governo Lula 3, o de – como Venceslau – abortar o militarismo, restaurando a normalidade institucional. Seus críticos frequentemente o comparam a Boric, presidente do Chile, supostamente representativo de uma esquerda moderna, não populista e… impopular. Deveriam-no comparar a Lopez Obrador, presidente do México, populista que usou sua popularidade para aniquilar a autonomia do judiciário federal. Lula se encontra em um meio-termo, cuja popularidade está a serviço da institucionalidade.
Da mesma forma, não se deve esquecer que a restauração de Venceslau durou pouco. Em 1922, os canhões do forte de Copacabana recolocaram o regime em xeque até sua derrocada em 1930.
Eleições de domingo
E é nesse cenário que terão lugar as eleições do próximo domingo. O desempenho de governo e oposição poderia trazer alguns indícios do futuro. À direita, será preciso verificar se os radicais desistiram do golpismo, ou estão apenas paralisados com a inelegibilidade de Bolsonaro, que se tornou um fantasma impotente na cena política, sem expectativa de poder. Com todos os seus vícios, o populismo radical de Marçal ao menos não trouxe de volta os militares que Lula recolocou na caserna.
Uma vez que as portas do sistema lhes tenham sido abertas, os próprios radicais de direita tenham se aprendido a operar dentro do sistema.
Há que se contemplar a hipótese de que, uma vez que as portas do sistema lhes tenham sido abertas, os próprios radicais de direita tenham se aprendido a operar dentro do sistema, retomando o modus operandi parasitário do próprio Bolsonaro quando deputado, que o denunciava para melhor viver às suas custas. Inclusive porque todo o esforço da direita centrônica – de Lira, Nogueira, Valdemar – sempre foi no sentido de canalizar os dividendos eleitorais do populismo radical e depois domesticá-lo à disciplina partidária e institucional. Tarcísio e Nunes são frutos exemplares dessa colheita.
Do lado da esquerda, o governo Lula 3 é provavelmente o melhor que poderíamos ter, nas atuais circunstâncias. Demonstra capacidade de aprender, dentro de uma correlação de forças que lhe é desfavorável. Tenta desarmar a autonomia do centrão, ao menos em parte, por meio do judiciarismo de coalização. Sabe que o futuro de seu grupo depende de sua capacidade de continuar agregando forças à direita do PT. Mas ele visivelmente não representa o futuro. O governo se ressente de certa falta de imaginação própria das restaurações, orientado por muitas ideias produzidas para uma conjuntura passada. E a idade do incumbente também limita sua expectativa de poder.
Parece questão de tempo para que a esquerda sofra profundas transformações. Não faz sentido que haja uma direita radical forte sem que ela produza cedo ou tarde uma esquerda igualmente intransigente. Em um período de retração do ideal cosmopolita da globalização, seria de esperar a renovação da esquerda pelo lado nacionalista e desenvolvimentista, dessa vez vestida à chinesa. Essa mudança, que se espera para o médio prazo, obrigará a uma reelaboração das pautas identitárias, ainda muito tributárias de um cosmopolitismo declinante. Aqui também haverá fragmentação do campo político e disputa entre lideranças emergentes.
Haverá espaço aí para uma candidatura viável de centro em 2026? Não seria impossível. De um lado, embora hegemônica, a direita está na oposição e carece de uma liderança viável e incontestada. Bolsonaro só quer saber de mobilizar forças para escapar da prisão e impedir o surgimento de qualquer alternativa a si mesmo. Isso enfraquece a posição de seu escolhido, Tarcísio de Freitas, que pode preferir a reeleição em São Paulo. Do outro lado, embora na oposição, a esquerda está defensiva, incapaz de eleger ninguém, senão o próprio Lula, ou alguém moderado por ele ungido, como Haddad. As circunstâncias podem levá-lo eventualmente a apoiar alguém mais à direita, como Eduardo Paes. Mas ainda há muito chão pela frente.