O que muda na mobilização do religioso

Um roteiro para entender o uso da religião e as possibilidades de êxito nas urnas

Impossível enfrentarmos qualquer processo eleitoral sem analisar como símbolos, valores, gramáticas e linguagens do “religioso” estão presentes em campanhas eleitorais e potencialmente influenciam os eleitores. Essa constatação é fruto de uma inegável tendência histórica, política e social recente: candidaturas com identidade, gramática e linguagem religiosa conectadas ao segmento cristão vêm crescendo como fenômeno político nas eleições desde 2016 e mostram êxito nas urnas.

Mas o que se mantém e o que observamos de mudanças nas eleições municipais deste ano? Fundamentalmente estamos falando de uma variação - ou evolução - desses mesmos atributos - a identidade, mais explícita ou menos explícita, passando pela gramática e pela adoção de uma linguagem de natureza religiosa bem ampla que, no fundo, comunica valores. Mapear esses padrões de continuidade e mudança é também uma forma de compreender melhor as sempre delicadas relações entre o mundo da religião e da política.

Destaco aqui alguns desses padrões:

1. A identidade religiosa explícita na urna é evangélica, mas não é mais tão atraente em si como em outros tempos

Políticos que adotam o título religioso na urna não mais constituem um elemento novo. Essa tendência teve um significativo aumento desde os anos 2000. Mas ela se reverteu da última eleição para cá, segundo dados do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento). Em números absolutos, as candidaturas aos executivos e legislativos municipais passaram de mais de 2 mil para cerca de 10 mil em 2020, e mais de 7 mil em 2024. Nesse período também aumentou o número de candidaturas em geral. Em termos proporcionais, em 2000, o número de candidaturas com identidade religiosa na urna representava 0,61% do total, enquanto nas eleições deste ano elas representam 1,73% do número total de candidatos inscritos em todos os mais de 5.500 municípios no Brasil.

É especialmente a partir de 2016 que essa proporção começa a se diferenciar. Desde então se mantém entre 1,4 e 1,7% do total de candidaturas. O acumulado do contexto pós-eleições nacionais de 2010 e 2014 não é um elemento trivial para esse aumento. Foi quando o chamado “voto religioso” passou a ser mais fortemente mobilizado em campanhas eleitorais. Os anos de 2010 e 2014 significaram eleições nacionais em que o tema do aborto passou a ser mais mobilizado, com significativa participação do eleitorado do campo evangélico como um fiel da balança para retirar votos da então candidata da esquerda Dilma Rousseff (em 2010 contra José Serra e em 2014 contra Aécio Neves). Houve uma mobilização ativa do campo cristão católico e evangélico na política e na sociedade, especialmente em reação aos avanços do Plano Nacional de Direitos Humanos, que começou a ser implementado já no final do segundo governo Lula.

Quanto ao perfil e estratégia eleitoral, os nomes de candidatos com títulos relacionados ao campo evangélico são também a maioria esmagadora desse perfil de candidaturas – representando 91% das candidaturas identificadas com alguma religião em 2024, a maioria delas do campo partidário que vai da extrema direita à centro-direita. Os termos mais recorrentes são: pastor, irmão, pastora, irmã e missionária.

A identidade religiosa explícita cresceu nas últimas décadas, mas não tem sido um fator que assegura sucesso eleitoral.

A identidade religiosa explícita cresceu nas últimas décadas, mas não tem sido um fator que necessariamente assegura sucesso eleitoral. É o que temos observado nas eleições municipais deste ano, o que pode indicar mudança e diversificação de estratégias. No comparativo entre oferta de candidaturas com esse perfil e aquelas efetivamente eleitas, o número vem caindo desde as últimas eleições municipais (2020).

2. Uma identidade religiosa cristã mobilizada de diversas formas vai se mostrando mais exitosa nas urnas

Se a identificação explicitamente religiosa na urna não tem sido um fator de êxito necessariamente, a identidade religiosa tem, sim, estado presente de maneira mais crescente em discursos e posicionamentos de candidaturas. Uma identidade cristã difusa, que por vezes aciona linguagens e símbolos bíblicos e, por outras, mobiliza moralidades religiosas de forma ampla.

Conforme estudo do ISER realizado nas eleições municipais de 2020 em algumas capitais, esse tipo de candidatura de mobilização diversa de sua identidade religiosa, apesar de representarem, em média, 10,71% do total de candidaturas, ao final das eleições os candidatos passaram a ocupar, também em média, 51,35% das cadeiras de cada Câmara Municipal pesquisada. Isso indica que a mobilização de aspectos religiosos e morais é uma estratégia eficaz para que candidaturas saiam vitoriosas.

A pesquisa aponta ainda que, na chamada eficácia eleitoral desses candidatos, os católicos também se saem bem: 31% de eleitos se dizem católicos, contra 16% de quem se apresentou como cristão (sem especificar a igreja ou denominação) e 13% de evangélicos. Neste caso, “cristãos” é como cada um se identificou ao longo das eleições, mas na prática representam fundamentalmente políticos ligados ao campo evangélico.

3. Uma gramática religiosa que se intensifica na extrema direita com reações também no campo progressista

Como já destacamos aqui nesse espaço, o deslocamento de parte significativa do eleitorado brasileiro para a extrema direita já vinha sendo observado em eleições anteriores e se aprofundou. E nesse cenário é inegável que a extrema direita, sendo ela realmente religiosa ou não, abraçou a gramática religiosa sobretudo para comunicar valores e está dando certo. Trata-se de um vetor importante de uma radicalização política em um dos pólos do espectro político eleitoral.

O campo progressista passou a reagir, incorporando elementos que também mobilizam sua identidade religiosa.

Mas neste contexto, as forças políticas se movem, agem e reagem. O campo progressista passou a reagir, incorporando elementos que também mobilizam sua identidade religiosa, resgatando vínculos comunitários, de solidariedade, de cuidado com a família e de promoção da justiça social. Nessa estratégia, candidaturas do campo progressista também têm adotado como estratégia a mobilização de identidade religiosa, mas enfatizando a importância da separação entre Igreja e Estado e fazendo a defesa do Estado laico. De alguma forma, um modo de tentar conter o avanço da influência da religião sobre a política institucional e sobre as pautas do Executivo, do Legislativo e do Judiciário, acessando seu vínculo comunitário com o eleitor. Será que vai funcionar, ou melhor, será que se está comunicando bem as diferenças em estratégia e visão política?

4. Linguagem que indica valores

Como quase tudo na vida hoje, eleição é igualmente forma e conteúdo. E algumas candidaturas parecem ter levado essa convicção ao paroxismo. Por diferentes razões – oportunismo ou sentido de oportunidade –, muitas candidaturas passaram a adotar cada vez mais a estratégia de mobilizar valores, sem que necessariamente precisem falar explicitamente de religião. Com isso, parece que, de repente, todo mundo virou religioso em campanhas eleitorais.

Não só se apresentam como falam claramente para um público religioso quando necessário. Os valores, os termos, as mensagens estão lá: superação, fé inabalável, prosperidade, trajetória, família tradicional, testemunho. Para bom entendedor, meia palavra basta.

E isso não está apenas no caso da vez mais explícito – Pablo Marçal. Façam um teste: naveguem por algumas candidaturas ao legislativo e ao executivo, no seu município, especialmente candidaturas do centro e centro direita. Procure os termos e posicionamentos que você irá encontrar.

Enquanto a superação e a crença em si beiram o milagroso, o eleitoral namora com o religioso.

5. Influência das corporações religiosas como um elemento constante

Grandes empreendimentos ou instituições de natureza religiosa não hesitam em atuar no processo eleitoral. Não raro lideranças, no seu papel de autoridades religiosas e comunitárias, vocalizam pautas partidárias, apontando, por exemplo, a ideia de que a esquerda ou as lideranças do espectro progressista são a fonte do problema. É uma tendência que se aprofunda a cada ciclo eleitoral desde a redemocratização.

Destaque-se, por exemplo, o papel das grandes corporações evangélicas pentecostais e sua real incidência nas eleições para os legislativos e executivos municipais. Os maiores exemplos desse esforço vêm das Assembleias de Deus, com suas diferentes subdivisões e ramificações – nem sempre alinhadas politicamente – e a Igreja Universal do Reino de Deus.

Há, contudo, uma possível – talvez, quem sabe – mudança em curso na Igreja Universal do Reino de Deus. Como noticiado, a Universal anunciou apoio ao prefeito do Rio de Janeiro, Eduardo Paes do PSD, na sua candidatura à reeleição. A Universal deixou de lançar candidatos a prefeituras de capitais pela primeira vez desde que, em 2005, criou um braço político – o partido Republicanos. Deu prioridade a alianças com candidatos de diferentes matizes, como o próprio Paes, que foi recebido na igreja após uma década de embates com o ex-prefeito Marcelo Crivella (Republicanos), bispo da Universal.

Uma coisa, porém, não muda: a presença dessas grandes corporações e sua influência eleitoral segue como um elemento constante na vida das eleições Brasil afora.

São diferentes portas de entrada – ou de saída – para entender esse fenômeno político inquestionável a cada eleição: a identidade religiosa como pregação e atração de eleitores. Possivelmente um roteiro para entender a fé e as possibilidades de êxito nas urnas, temas fundamentais do debate público em períodos como este.


*Ana Carolina Evangelista é cientista política com mestrado em relações internacionais pela PUC-SP e em gestão pública pela FGV-SP. É pesquisadora e diretora-executiva do Instituto de Estudos da Religião (Iser). Faz cobertura eleitoral desde 2018 com colunas na 'piauí' e no 'UOL'.

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