A cadeirada e o atentado
Donald Trump sofreu o segundo atentado à vida dele, no domingo. No mesmo domingo, no debate dos candidatos a prefeito de São Paulo, a maior cidade do país, um dos concorrentes achou razoável a ideia de pegar uma cadeira e sentar nas costas do outro. De alguma forma, o jogo da política está se transformando. A violência ficou normal.
Este não é um fenômeno novo, momentos do tipo já aconteceram no passado. É só que a gente não via tanta violência política faz algum tempo. Mas, em 1968, nos Estados Unidos, Martin Luther King foi assassinado e, dois meses depois, Bobby Kennedy foi assassinado. O principal líder do movimento antirracista e um candidato à presidência que era irmão de um presidente assassinado. Este é o mesmo ano em que a polícia militar do Rio matou um estudante ao invadir com brutalidade um restaurante universitário no início da repressão que levaria ao AI-5, à tortura, às mortes, aos desaparecimentos. Um momento em que a extrema esquerda organizou guerrilhas com objetivo de substituir a ditadura militar por uma ditadura comunista. Então, sim, houve momentos de violência política no passado. É só que faz algum tempo que isso não era recorrente. Talvez um caso aqui, outro ali.
Na última eleição presidencial brasileira, algumas pessoas foram mortas por causa do debate político. As três sedes dos poderes, em Brasília, foram atacadas por uma horda de vândalos no oito de janeiro. Jair Bolsonaro foi vítima de uma tentativa de assassinato em 2018. Donald Trump sofreu, agora, duas tentativas de assassinato. José Luiz Datena atacou Pablo Marçal no braço duas vezes em dois debates no último mês.
Agora, olha o que aconteceu lá nos Estados Unidos. Há dois meses, quando houve o primeiro atentado contra Donald Trump, os democratas suspenderam sua campanha. O Congresso parou. Houve um debate nacional a respeito do que estava acontecendo. Agora esse fim de semana? Kamala Harris condenou, Tim Walz condenou, o presidente Joe Biden condenou, e aí os três seguiram com a vida. Fizeram mais discursos, deram entrevistas, tudo como dantes no quartel de Abrantes. Alguém poderia argumentar: insensíveis. Nada. Deu duas horas e a equipe de Donald Trump aproveitou-se do momento para mandar um email dizendo “não vão nos parar” e me vê um dinheiro aí. Usou para arrecadar fundos e não desmarcou um único compromisso de campanha. Os jornais deram manchete, as televisões falaram do assunto, mas nada se compara com a primeira tentativa.
A palavra não é “normalizar”. O conceito de “normalizar” é uma bobagem à qual as pessoas se apegaram nos últimos tempos. Ninguém normaliza nada. Nós não temos o poder de normalizar qualquer coisa por um gesto consciente. Ou as coisas são normais, no sentido de habituais, ou não são. A gente apenas reconhece que algo que era incomum deixou de sê-lo. E a verdade é que, assim como se tornou comum a presença de um movimento popular de extrema direita, se tornou comum violência política. E, como quaisquer outros seres humanos na história, nós agimos sem espanto perante o que é habitual. Se políticos com grande popularidade vêm da esquerda ou da direita radicais, depois de um tempo ninguém fica mesmo mais chocado. E, se violência política acontece com mais frequência, idem.
O problema não é normalizar. Normal, ora, normal passou a ser. A conversa que a gente tem de ter é outra. Só porque é normal não quer dizer que a gente tenha de achar bom. E isto quer dizer que precisamos tentar responder a uma pergunta crucial: por que se tornou normal?
Onde começa a violência política? Ela começa em nós. Jair Bolsonaro não mudou em 2018. Não mudou em 2016. Quem cobre política no Rio de Janeiro desde o século passado, este é o meu caso e de muitos outros jornalistas, conhece Bolsonaro há bastante tempo. A maioria das coisas que ele fala hoje, já falava trinta anos atrás. Não foi ele que mudou. Seu discurso sempre foi violento. Seu discurso sempre foi um de defesa da ditadura, da tortura, de policiais matando gente pobre porque desconfia ser bandido. A diferença não está nele. A diferença é que vinte anos atrás não havia uma massa de brasileiros disposta a votar nele. Passou a haver.
Talvez Donald Trump não fosse um político violento e radical. Ele é diferente de Bolsonaro neste sentido. Mas ele sempre foi um populista, sempre fez o necessário para aparecer e fazer dinheiro sem qualquer escrúpulo. Sempre foi preconceituoso, sempre foi machista. Nenhuma supresa aí. O que mudou é que o eleitorado americano, em um determinado momento, achou que ter alguém com a personalidade de Trump na presidência era uma boa ideia. E, como político, Trump adotou sim um discurso de maior violência.
Mas, se a busca por violência na política está em nós, está na sociedade, onde é que ela começa? De onde ela vem, que não estava por aí antes?
Vocês já pararam para prestar atenção em como é que a gente conversava sobre política quando havia Twitter? Era só na base da pancada. O que aconteceu foi o Twitter. O que aconteceu foram as redes. O que aconteceu foi uma conversa sobre política mediada por algoritmos.
O ponto é o seguinte. O que o algoritmo quer? Ele quer que a gente volte e volte às redes para vermos muita propaganda. É disso que elas vivem. Então o algoritmo fica medindo as reações humanas para ver que tipo de coisa precisa botar na nossa frente para que a gente fique voltando o tempo todo. A palavra bacana para isso é engajamento. Estar engajado com um conteúdo, quer dizer, com um vídeo, uma foto, um texto, quer dizer estar emocionalmente envolvido.
A palavra “engajamento” pode ser bonitinha, mas olha, estar engajado com um vídeo ou um tuíte não é ficar contemplativo. É estar irritado, é estar chocado. Quando a gente está falando em política, o que engaja é ficar incitando raiva do outro lado. É convencer as pessoas de que estamos num conflito muito sério e a metade da população que discorda politicamente de você representa uma ameaça existencial.
É deste jeito que começamos a falar sobre política. E este problema não ocorre apenas na direita. Os cancelamentos que a turma identitária promove são, em essência, jogar contra um ser humano qualquer uma onda de ódio. Boa parte do conteúdo que viraliza nas redes, em política, é violento.
Aí dizem que isso é só blablablá de rede social. Não é. A violência já escapuliu para nossa vida real, de carne e osso, faz muito tempo. Quando rompemos relações com amigos, com antigos amores, com gente muito, muito próxima, como irmãos, como pais, é porque a violência já escorreu das redes para a vida real.
Trump incita violência. Bolsonaro incita violência. Marçal infiltra violência. Mas eles fazem isso, em essência, porque incitar violência é o jeito mais fácil de viralizar nas redes, de mobilizar as bases de seus movimentos políticos. É o jeito de agrupar eleitores na direção do voto. Se Pablo Marçal fica provocando todos os candidatos o tempo todo, é porque ele sabe que o conflito dá um bom momento de rede social. Quantas vezes vimos a cadeirada? Ele se tornou o assunto.
Sim, se você incita a violência o tempo todo, tem uma hora que ela escorre do virtual e vem pro real. Se você fala em armas o tempo todo, uma hora alguém usa a arma. Quem se mobiliza mais por violência é quem vai ouvir mais estes políticos. E algumas dessas pessoas têm, sim, problemas psiquiátricos, desequilíbrios. Um dia, o sujeito que era trumpista mas se engajou com os ucranianos decidiu ter raiva de Trump porque ele gosta de Putin. Um dia Marçal chamou o vigésimo pro braço e o sujeito é pouco equilibrado e foi mesmo.
O que a gente não poder perder a noção é de que Marshall McLuhan estava certo. É daqueles intelectuais dos anos 60 que paramos de ler, a garotada nos curso de comunicação fica lendo filósofo francês mas este medievalista canadense que teve um dos insights mais importantes da teoria da comunicação em todo o século 20 foi esquecido.
A mídia é a mensagem. McLuhan estava certo. Vivemos a ilusão de que a mensagem está no que falamos. No conteúdo. Não está. A mensagem essencial está na forma. Na mídia que usamos. Pelas plataformas sociais, as mensagens sempre são emocionalmente intensas. E, em política, particularmente violentas.
Nossa conversa sobre política está muito violenta. Essa violência transborda para o mundo. E ela vem de um único lugar. Do meio dominante em que o diálogo se dá. Um meio que, em essência, repudia o diálogo. Já conversamos inúmeras vezes sobre isso, e precisaremos conversar inúmeras vezes mais até conseguirmos mudar este processo. O meio é a mensagem. O meio das plataformas sociais, mediadas por estes algoritmos que ativam engajamento, são puro suco de violência.
Enquanto forem nosso principal veículo de comunicação, a gente não vai fugir disso.