Alexandre fez

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Exige um desejo imenso de muita gente enxergar na reportagem que a Folha de São Paulo publicou ontem, com mensagens trocadas por assessores de Alexandre de Moraes, uma nova Vaza Jato. A coisa é engraçada. Um dos mais veementes é o próprio Deltan Dallagnol, que está alucinado nas redes. Mas a primeira e a maior diferença entre a Vaza Jato e estas novas trocas de mensagem levantadas pelo jornalista Glenn Greenwald, é a seguinte. Lá eram mensagens entre o Deltan, que liderava os procuradores, e o juiz Sergio Moro. Eram mensagens entre as partes nas quais o juiz ajudava um dos lados que ele deveria julgar. Aqui são conversas entre dois assessores que respondiam a um mesmo juiz. O que essas conversas mostram? Mostram como as salsichas são feitas, como as conversas acontecem, as palavras que se escolhe com uma sem cerimônia no uso do poder. Mas não há nenhuma ilegalidade clara.

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As críticas que podem e devem ser feitas não são novas e muita gente, eu inclusive, vem fazendo essas críticas faz bastante tempo. Mas antes de a gente entrar no que a Folha trouxe, tem um ponto inicial que é fundamental compreender. A democracia brasileira entortou, e entortou feio nos últimos dez anos. O movimento legítimo que nasceu em 2013 contra a fisiologia política, contra a corrupção, exigindo um Estado mais capaz de entregar serviços públicos de qualidade desaguou em uma piora generalizada do sistema. Desaguou numa perda importante de princípios democráticos. Por toda parte.

Do que estou falando? Gente, o Legislativo outorgou pra si o poder de execução orçamentária. Ele cria o orçamento e define a execução. A lógica de independência dos três poderes faz, justamente, que um poder defina o orçamento e o outro, separado, o execute. Faz o gasto de acordo com suas prioridades de política pública. É por isso, porque executa o Orçamento, que o Executivo tem esse nome. O Poder Executivo mirrou, ficou sem muita capacidade de ação. Ao perder a capacidade de determinar os gastos públicos fora dos obrigatórios, se tornou refém do Congresso. E o Congresso não tem o ônus dos gastos mal feitos, a conta da popularidade ainda fica pro Executivo, não importa o presidente. Enquanto isso, o Poder Judiciário se politizou. O Judiciário decide quem investigará, como investigará, orienta a investigação para depois julgar. No Supremo, presidentes indicam ministros para serem do seu time. E isso tudo ocorre num ambiente em que a sociedade rachou em dois e um pedaço quer amordaçar o outro, tirar do outro o direito de se expressar e participar politicamente.

Sim, o Judiciário está muito torto. Sim, o Judiciário está fazendo política. Mas o Judiciário é só uma peça do problema. Não adianta se fixar numa peça sem olhar pras outras. O problema não está no STF, ou no Congresso ou no Planalto. O problema está em toda a Praça dos Três Poderes. A série de ações que sucederam a 2013 foram deteriorando lentamente a democracia brasileira. O que temos hoje são frangalhos.

A violência e as mentiras do PT contra Marina Silva em 2014, a tentativa por Aécio Neves de disseminar dúvidas contra o sistema eleitoral, a Lava Jato de Curitiba que tinha o objetivo de atacar o PT. Depois o impeachment que tinha o objetivo de derrubar a Lava Jato. As duas forçadas de barra para produzir a cassação de Michel Temer, o rombo absurdo imposto à Petrobras para pagar políticos, a prisão de Lula num processo sem provas claras sobre a origem dos recursos para a compra dos imóveis, tudo num contexto de ação com fins políticos do Judiciário e da PGR. Tudo num contexto de política feita com o fígado para eliminar adversários.

Daí a eleição de Jair Bolsonaro com um discurso contra a política, o ataque de Bolsonaro à Câmara de Rodrigo Maia e ao Supremo, a submissão da Procuradoria Geral da República ao presidente, o Orçamento Secreto de Arthur Lira. A intervenção de Michel Temer para abortar o impeachment de Bolsonaro após um discurso aberrantemente golpista no Sete de Setembro de 2020. O ataque contra as urnas eletrônicas e o reforço da campanha contra as eleições. O planejamento por quatro generais de Exército e o comandante da Marinha de um golpe militar. O Oito de Janeiro. E, sim, um inquérito aberto no Supremo em que juiz e procurador são a mesma pessoa que calhou de ser também o presidente do TSE.

A democracia brasileira quebrou, mas tudo isso é sintoma, porque antes ela quebrou na base. Quebrou no momento em que a sociedade rachou. No momento em que metade do país considera a outra metade ilegítima. Claro, todo mundo tem seus argumentos, e eu posso até simpatizar com os argumentos de um lado mais do que com outros. Mas que ninguém tenha dúvida. Democracia nenhuma se sustenta se a sociedade se divide em dois e ambos os grupos se recusam a reconhecer um o direito de opinião do outro.

Vamos conversar sobre o que diz a Folha. Mas é preciso conversar atento a dois conceitos inteiramente distintos. Um é o que pode ser feito dentro da lei. Outro é o que não deveria poder ser feito dentro da lei. São duas coisas muito diferentes.

Eu sou Pedro Doria, editor do Meio.

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E este aqui? Este é o Ponto de Partida.

Passei a manhã conversando com juristas e outras pessoas bastante próximas dos ministros do STF e do TSE. O que ouvi dessas cinco pessoas são variações de uma mesma ideia. Não há ilegalidade. Vamos voltar àquele ponto? Uma coisa é o que pode ser feito dentro da lei. Outra é o que não deveria poder ser feito dentro da lei. São muito diferentes e o que ocorreu não devesse poder numa democracia. Mas, na nossa, hoje, pode.

O que a Folha publicou até agora é uma série de conversas, as principais envolvendo dois assessores ligados ao ministro Alexandre de Moraes. Um, Airton Vieira, juiz instrutor do gabinete do ministro no Supremo. Outro, Eduardo Tagliaferro, que na época era chefe da Assessoria Especial de Enfrentamento à Desinformação do Tribunal Superior Eleitoral.

No período dessas trocas de mensagem, Alexandre estava vestindo três chapéus diferentes. Um, ministro do Supremo. Outro, ministro encarregado, no Supremo, de dois inquéritos muito peculiares. O inquérito das milícias digitais e o das fake news. O que faz destes dois inquéritos distintos é que foram abertos sem pedido da Procuradoria Geral da República e quem faz o papel de procurador é o próprio Alexandre. O terceiro chapéu que ele usava era o de presidente do Tribunal Superior Eleitoral.

Pois é. O TSE tem uma peculiaridade, tá? Diferentemente de todos os outros tribunais, ele pode agir como polícia. Um juiz eleitoral pode atuar como se fosse um delegado. Isto quer dizer o seguinte. Dependendo do chapéu que usasse, Alexandre poderia atuar como juiz, como procurador e como o policial que investiga.

É um absurdo, tá? Democracias separam estes poderes porque o caminho para abuso é imenso. Mas se entendeu, na Constituição, que o TSE deveria ter poder de polícia porque, numa eleição, as decisões têm de ser rápidas. Um juiz viu um problema, precisa agir imediatamente para evitar dano. E essa é uma ideia razoável.

Os dois inquéritos abertos de ofício no Supremo só aconteceram porque o governo Bolsonaro imobilizou um pedaço fundamental do Estado brasileiro, que é o Ministério Público. Ele impediu, ali, de o Estado se defender de ações absurdas do presidente da República. Então, perante um presidente que estava concretamente agindo na direção de forçar um golpe de Estado, o Supremo foi criativo, inventou uma leitura do seu regimento interno e fez nascer esses dois processos em que juiz e procurador são a mesma pessoa.

Olha, essa foi uma solução para um problema que não existe mais, desde que Paulo Gonet assumiu a PGR e Aras nos deixou. O Supremo já deveria ter aberto mão deste poder. Era o certo a fazer. Mas não quer abrir mão. E a decisão foi constitucional. O Supremo tem autoridade para fazer esse troço. Aí você junta as duas coisas e temos este resultado. A mesma pessoa, para um conjunto bastante específico de casos, pode agir simultaneamente como juiz, como procurador e como policial investigador.

Não deveria ser legal. Fere o espírito de uma democracia. É potencialmente autoritário. Mas é legal.

O que tivemos na Lava Jato? Tivemos um juiz instruindo o Ministério Público a respeito do que ele queria. Ou seja, o juiz estava tomando o lado de uma das partes num processo. O que temos aqui? Dois servidores do judiciário trocando informações. Um fazendo pedido de uma investigação e o outro produzindo a investigação. E estamos falando de investigação de informações públicas. Que exige ler sites e ler redes sociais. Exige ler coisas a que eu, você ou qualquer um temos o acesso para ler.

Essa história abre discussões e mais discussões. A primeira começa com o ímpeto censor que se impôs na democracia brasileira. Todo mundo está querendo calar a boca de todo mundo o tempo todo. Todos os grupos políticos acham que tem um tipo de ideia que deveria ser impedida de circular. Olha, quem ficou defendendo Escola Sem Partido e quer proibir livros em escolas públicas não tem autoridade para falar em censura. Mas quem ataca na internet as pessoas por uso de palavras ou quer bloquear nas redes tudo quanto é ideia mais radical de direita é igual. Elogiar ditador ou genocida de esquerda está liberado, tem um bando de youtubber fazendo. Mas para imbecil que elogia ditador e genocida de direita é necessário banimento perpétuo. Coerentes, não somos. Para os nossos tudo, para os outros o silêncio imposto.

E, neste cenário, no meio dessa confusão, temos sim um pequeno grupo de pessoas que trabalhou concretamente para incitar um golpe de Estado. Fazer a distinção entre incitar crime e manifestar opiniões das quais não gostamos sempre foi difícil. Num ambiente político em que todo mundo está falando “isso tinha de ser proibido” o tempo todo, a tranquilidade para ter esse debate é impossível.

Alguns dos casos listados pela Folha, envolvendo o que parecem ter sido pedidos do ministro Alexandre, podem perfeitamente ser tratados como censura judicial. E a gente deveria ser capaz de ter uma conversa ponderada sobre os limites do poder de calar. Só que a gente não consegue ter, no Brasil de hoje, esta tranquilidade. Porque somos uma sociedade rachada e que perdeu a capacidade de conversar.

Se não conseguimos conversar sobre os limites democráticos do que se pode falar, imagine conversar sobre os limites de atuação dos três poderes? Porque, vejam: não é uma Vaza Jato. Ao que parece, com o que saiu até agora, Alexandre de Moraes agiu dentro da lei. Se, numa democracia, não deveria alguém poder ser juiz, promotor e policial ao mesmo tempo mas a lei o permite, deveríamos estar discutindo a lei. E achar que essa discussão se limita ao Judiciário é uma ilusão.

Nossa democracia não saiu incólume dos últimos dez anos de crise. Ela está seriamente danificada. Não vai se resolver enquanto nos odiarmos. O dano vem do ódio.

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