Quem realmente ganhou na França e Reino Unido

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Duas eleições muito surpreendentes aconteceram nesses últimos dias, no Reino Unido e na França. Estamos num ano eleitoral importante no mundo todo e poucas eleições têm a importância destas duas. O que aconteceu ali? Porque entender essas duas eleições também ajuda a entender essa ideia de grupos políticos democráticos e grupos políticos extremistas disputando o espaço político no Ocidente.

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A manchete crua que vocês vão ler é a seguinte: a esquerda ganha no Reino Unido e na França. Isso é inteiramente verdade e, no entanto, não diz o essencial do que realmente aconteceu nestes dois pleitos.

A Nova Frente Popular foi a vencedora na França, é o bloco de esquerda formado por quatro partidos. Dois deles são radicais, A França Insubmissa e o Partido Comunista, e dois partidos são mais para centristas, o tradicional Partido Socialista e os Verdes. E, olha, os votos ficaram divididos dentro desta frante, tá? O LFI, a França Insubmissa liderada por Jean-Luc Mélenchon, ficou na frente, mas a uma distância pequena dos socialistas. Os verdes e os socialistas têm juntos mais cadeiras do que os dois grupos radicais. E, ainda assim, a frente de esquerda vai precisar fazer uma aliança com o segundo lugar, o Ensemble, partido do presidente Emmanuel Macron, um partido centrista, um partido liberal, que ficou em segundo lugar na eleição, depois da frente de esquerda. Só em coalizão eles vão conseguir formar gabinete e indicar um primeiro ministro. A princípio, ficou difícil para Mélenchon indicar como premiê um nome seu. Mas vamos ver. É difícil fazer uma previsão agora.

Agora, sabe o que é mais impressionante? O que é mais impressionante é que dos partidos muito votados em toda eleição, vitoriosos ou derrotados, os mais relevantes são o grupo de Mélenchon, o partido de Macron, e o Reagrupamento Nacional, o partido de extrema direita liderado por Marine Le Pen. São as três grandes forças francesas. Dos três, nenhum deles existia há dez anos. Ou, se existiam, representavam forças irrelevantes. Guarda essa ideia.
No Reino Unido, o Partido Conservador teve sua maior derrota desde 1906. Nunca saiu de uma eleição com tão poucos deputados. E o Partido Trabalhista teve uma vitória formidável. Os trabalhistas haviam passado por uma guinada à esquerda, voltaram para o Centro e deram uma surra nos conservadores. O que a manchete não diz é o seguinte: o Reform, partido de extrema direita, teve sua melhor votação da história. O Partido Verde, também. Os Liberais Democratas tiveram um resultado excelente. São três partidos normalmente irrelevantes na política britânica. A política britânica, tecnicamente, é bipartidária, só tem espaço pra Trabalhistas e Conservadores. Mas, juntos, esses três partidos que deveriam ser nanicos tiveram uma votação tão grande quanto a dos Trabalhistas. Claro que jamais estariam unicos. Os Liberais Democratas são liberais progressistas, os Verdes se vêem à esquerda e o Reform é o partido do Brexit, é o bolsonarismo inglês, o trumpismo de lá. Mas se você soma o número de votos que os britânicos deram para estes três partidos, ele se equipara ao que os Trabalhistas tiveram.

O ponto aqui é o seguinte: os eleitores, tanto na França quanto no Reino Unidos, estão dizendo que querem outras forças. Querem outras ideias. Eles estão, às vezes, dispostos a radicalizar para encontrar algo diferente. O que está acontecendo?

Eu sou Pedro Doria, editor do Meio.

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E este aqui? Este é o Ponto de Partida.

Olha, não existe uma única definição de o que é esquerda e o que é direita. A mais tradicional, a que a gente encontra com mais frequência, é a do cientista político italiano Norberto Bobbio. O que ele diz é o seguinte: a diferença está na busca por igualdade. A esquerda considera que o objetivo de um sistema democrático é persistentemente diminuir a desigualdade. A direita, não. Não é que ela queira, necessariamente, uma sociedade desigual. Mas ela é tolerante com desigualdade.

Outro cientista político, o canadense Jean Laponce, propõe uma outra definição que nos ajuda a entender melhor a cabeça da direita. Para ele, o definidor crucial não é propriamente a questão da igualdade, mas a postura perante tradição. A direita considera importante preservar tradições, portanto mudar menos a estrutura da sociedade, manter certas hierarquias. A esquerda propõe transformar a sociedade.

O Laponce não está dizendo, aí, que o Bobbio está errado. As duas definições não são mutuamente excludentes. É que ao ressaltar a ideia de tradição, ele só está sugerindo que a indiferença da direita em relação à igualdade, muitas vezes, é porque a prioridade de valores é outra. A gente vê muita gente de esquerda, estão citando Marx mesmo que não saibam, reclamando de “pobre que vota na direita”. É o alienado. Está votando contra seus interesses. Só que não está. Para essa pessoa, frequentemente, não é a questão econômica a mais importante, a mais central em sua vida. É a de preservação de valores.
Isso é chave para compreender a radicalização da direita, na última década. Vamos lá: o que que aconteceu no mundo, desde a queda da União Soviética? Aconteceu a internet. Veio com força a pauta ambiental. As democracias ficaram mais intensas, abrindo espaço para demandas de grupos que viam seus direitos restritos. A comunidade LGBTQIA+, movimentos de mulheres, de negros.

Aí tem a globalização, que é um fenômeno tanto cultural quanto econômico. Por causa de tecnologia, porque ficou mais simples transferir dinheiro de um canto pro outro do mundo, também porque despencou o preço de transportar sejá lá o que for, ficou mais barato fabricar as coisas no sudeste asiático e trazer para as Américas e para a Europa, do que fabricar localmente. E não é só isso. Manufatura, a indústria de fazer objetos, ficou menos relevante na economia. Cada vez mais, o que dá dinheiro não é fazer coisas que a gente pega, mas é produção intelectual. É software, é genética, é química. Patentes. As grandes fortunas não são feitas mais por quem tem grandes fábricas mas por quem tem muitos PhDs trabalhando. Isso quer dizer que o trabalho de quem não tem diploma superior passou a valer ainda menos do que o de quem tem.

Além disso, a mesma queda do valor de transporte, a mesma aproximação do mundo que mudou a estrutura da economia, também levou a um boom de imigração. O mundo ficou mais próximo. A gente está exposto como nunca estivemos às diferenças. E isso muda a cultura, muda a cultura em toda parte. Junte a isso um processo de laicização que vem ocorrendo em todo o Ocidente. Estamos menos religiosos do que jamais fomos na história. Não é só que há mais ateus declarados no mundo. Mesmo muitas pessoas que se declaram como tendo uma religião só o dizem pelo ato de declarar, mas ignoram a prática.

Quer jogar mais um item na salada mista? A medicina mudou tão radicalmente nos últimos vinte anos que morríamos aos 60 e agora, cada vez mais de nós estende a vida até os 90. Isso acontece justamente no momento em que as pessoas estão parando de ter filhos. Isso quer dizer que sistemas de previdência social, que são a base do Estado de Bem-Estar Social, passaram a precisar sustentar um aposentado por 30 anos, não por dez. E justamente na hora que passou a ter menos gente contribuindo para a previdência porque tem menos gente jovem no mundo.

Esse processo todo traz dois tipos de consequências. Consequências econômicas e consequências culturais. O ponto fundamental é que as coisas estão mudando muito rápido e nem todo mundo aguenta o tranco de se adaptar. Além disso, há perdedores reais, há gente cuja vida piorou neste processo de mudança. E para ninguém a vida piorou tanto quanto homens de classe média baixa, que costumavam ser operários, no mundo desenvolvido. Mas não foi só para eles. O tipo do trabalho mudou, as regras da vida estão mudando para todo mundo.

Nós, humanos, lidamos com a vida através de histórias. As histórias que ouvimos é o que nos ajuda a dar conta da realidade. Tem outro cientista político, o italiano Pino Cofrancesco, que usa a palavra alma para caracterizar toda a direita, do centro à mais extremista. É uma palavra forte, né? Alma. A tradição, o continuar sendo como foram nossos pais, nossos avós, é o que organiza a vida. É o que dá sentido à vida. Quando a realidade impõe tantas mudanças simultâneas que tudo se desmonta, muita gente perde a bússola. A piada que você faz passou a ser ofensa mortal e indício de mau caráter. A auotoridade hierárquica que você tinha em casa passou a ser vista como autoritarismo. O tipo de emprego que você tinha e garantia a possibilidade de sustentar sua família não existe mais. E, ao não ser mais provedor, que tipo de homem você é? A alma, aquilo que define você, a garantia de que as coisas serão como sempre foram, ela está desaparecendo. Você está perdendo e os outros estão ganhando. O problema não é só de dinheiro, percebe? É a sensação de que você está sendo atropelado por um mundo que está mudando rápido demais. É a sensação de que você era um cidadão modelo e passou a ser visto como um bárbaro por gente mais rica que você, mais estudada que você, com mais poder que você. É humilhante. E você se radicaliza.

Quero meu país como ele era. Sem essas coisas novas. Uma das coisas que pouca gente por aqui na internet vai dizer é quão parecidos são os discursos de Jean-Luc Mélenchon e Marine Le Pen. Sim, Mélenchon é a nova esquerda francesa e Le Pen é tanto de direita quanto dá pra ser. Mas, olha, nacionalistas os dois. A França para os franceses. Intervenção do Estado na economia para levar dinheiro para os franceses que perderam. Seu eleitorado é o mesmo: os franceses de classe média baixa das periferias. Rejeição da União Europeia.

O Reform, o partido radical de direita britânico, teve sua melhor votação. Faz o mesmo discurso desde o Brexit. O Brexit já era esse discurso. É hora de começar a entender a dor dessas pessoas. É hora de entender, inclusive, que essa dor não se resolve só na economia. Dignidade não é só dinheiro no bolso.

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