A religião como arma política e a radicalização de um dos polos

O que recente pesquisa realizada nos EUA sobre a influência da religião na vida pública e a visão da sociedade sobre isso podem indicar para o Brasil?

A religião parece brotar do chão cada vez que se analisa política no Brasil hoje. Seja na cobertura sobre eleições ou no que tem acontecido no Congresso Nacional, não conseguimos ficar um dia sem falar sobre como estão as intenções de voto no segmento evangélico ou sobre o posicionamento do deputado a, b ou c que destacou suas referências religiosas para justificar seu voto ou sua nova proposta de lei. Mas o que aconteceu? Por que vemos mais religião na política? Sempre esteve ali e nós é que não estávamos prestando atenção ou falando sobre o assunto? Por que não é mais possível falar sobre eleições e política no Brasil e não ter algum pontinho de religião ali querendo aparecer?

E será que tudo tem mesmo a ver com religião? Eu diria que não. E se extrapolarmos para a realidade brasileira uma recente pesquisa divulgada nos EUA, talvez mais gente comece a se perguntar se estamos mesmo falando sobre uma invasão indiscriminada da religião na política ou se estamos assistindo a uma incorporação sistemática, radicalizada e instrumental da religião por um dos polos. A segunda opção parece mais verdadeira.

O Pew Research Center ouviu cerca de 12.600 adultos em fevereiro deste ano e constatou que a grande maioria dos adultos americanos concorda que a influência da religião na vida pública está diminuindo — 80% deles, o mais alto percentual registrado pelo instituto em seus levantamentos — mas metade vê isso como algo negativo. Qual metade? Há clivagens importantes entre Republicanos e Democratas, entre evangélicos e católicos e entre adultos mais velhos e jovens adultos. Entre republicanos, 68% consideram que a diminuição da influência da religião sobre a sociedade é algo ruim, contra apenas 33% entre democratas. A mesma pesquisa indica que a maioria expressa apoio ao princípio da separação entre Igreja e Estado e poucos acham que o governo federal deveria declarar o cristianismo como a religião oficial do país, mas há uma aparente divisão entre quem concorda e quem discorda que o governo federal deveria promover os valores morais cristãos: 44% contra 39%. Nem tudo é sobre religião, mas muito é sobre a polarização.

Os adultos jovens são mais propensos do que os adultos mais velhos a dizer que o governo não deveria declarar o cristianismo como religião oficial do país nem promover os valores morais cristãos. Assim como são os mais jovens que discordam mais veementemente que a diminuição da influência da religião na vida pública seja algo ruim.

Também há um sentimento crescente de que as próprias crenças religiosas das pessoas entram em conflito com a sociedade em que vivem e que é melhor não discutir sobre as divergências religiosas.

No geral, existem sinais generalizados de desconforto com a trajetória da religião na vida americana. Essa insatisfação não é apenas entre os americanos religiosos. Pelo contrário, muitos americanos religiosos e não religiosos afirmam sentir que suas crenças religiosas os colocam em desacordo com a cultura dominante, com as pessoas ao seu redor e com o outro lado do espectro político. Por exemplo: 48% dos adultos nos EUA afirmam que há “muito” ou “algum” conflito entre suas crenças religiosas e a cultura americana dominante.

Os polos também estão presos nas suas próprias bolhas.

Os americanos estão quase igualmente divididos sobre se os cristãos conservadores foram longe demais ao tentar promover seus valores religiosos no governo e nas escolas públicas, assim como se os liberais seculares foram longe demais ao tentar manter os valores religiosos fora dessas instituições. A maioria dos americanos sem filiação religiosa (72%) e democratas (72%) afirmam que os cristãos conservadores foram longe demais. E a maioria dos cristãos (63%) e republicanos (76%) dizem que os liberais seculares foram longe demais.

Ao mesmo tempo, para os cristãos, a política está “secularizada demais” (63%) e, para os não religiosos, a política está “religiosa demais” (73%).

A pesquisa também radiografa grandes divisões partidárias em questões sobre o papel adequado da religião na sociedade, com os republicanos mais favoráveis do que os democratas à influência religiosa na governança e na vida pública. Por exemplo: 42% dos republicanos e independentes com tendência republicana dizem que, quando a Bíblia e a vontade do povo entram em conflito, a Bíblia deve ter mais influência nas leis dos EUA do que a vontade do povo. Apenas 16% dos democratas e independentes com tendência democrata dizem isso.

Cerca de metade dos adultos nos EUA (48%) dizem que é importante para o presidente ter fortes crenças religiosas. É menor (37%) o percentual de quem considera importante o presidente ter as mesmas crenças religiosas que as deles.

Os republicanos são muito mais propensos do que os democratas a valorizar qualidades religiosas em um presidente, e os cristãos são mais propensos do que os não afiliados religiosamente a fazer o mesmo. Por exemplo: os republicanos e simpatizantes do Partido Republicano têm duas vezes mais probabilidade do que os democratas e simpatizantes do Partido Democrata de dizer que é importante ter um presidente que tenha as mesmas crenças religiosas que eles (51% contra 25%).

O Pew comparou ainda o conhecimento e o apoio dos americanos ao nacionalismo cristão e não encontrou nenhuma mudança significativa entre 2022 e 2024. A porcentagem de quem disse ter ouvido ou lido sobre o nacionalismo cristão (45%) e de quem disse nunca ter ouvido ou lido sobre o nacionalismo cristão (54%) permaneceu a mesma em ambos os anos. No mesmo período, também não se moveram os percentuais em torno das atitudes e crenças de quem já tinha ouvido sobre o conceito e de quem tinha uma visão favorável sobre ele. Ou seja, deu-se um longo período de debates, com a religião mobilizando confrontos e divergências acaloradas, e com a ideia de nacionalismo cristão sendo bombardeada na opinião pública e no debate digital - criticada por um espectro e louvada por outro - e nada mudou. Nem no conhecimento sobre o assunto, nem na percepção e opinião sobre ele.

David French considera o uso político da religião a 'divisão política mais negligenciada e mais reveladora dos EUA'

Os números levaram um especialista no tema, o analista político David French, a publicar no jornal The New York Times uma reflexão sobre o que ele considera “a divisão política mais negligenciada e mais reveladora dos EUA”. Segundo ele, um furioso debate sobre o nacionalismo cristão havia inundado os espaços online, com disputas sobre seu teor, sua aplicabilidade e sua aplicação como modelo para a nação por determinados segmentos, mas uma conversa online não é a mesma coisa que uma conversa nacional. Houve um debate intenso, sim, mas ela foi conduzida dentro das redes polarizadas do país. Ao mesmo tempo, apenas uma minoria dos americanos é verdadeiramente ativa nos debates políticos e esta mesma minoria está exaurindo e alienando o resto do país.

Talvez possamos extrapolar parte dessa reflexão sobre o real papel da religião na polarização política para o Brasil. O que serviu para o quê? Quem está usando quem?

Forças da extrema direita no Brasil hoje são as que mais mobilizam a religião ao lidar com os desafios cotidianos e concretos das pessoas em meio à crise social, econômica, política e de segurança pública. Nesse contexto, políticos – religiosos ou não – mobilizam o religioso e suas formas contemporâneas mais individualizantes e dogmáticas como uma forma de apresentar alternativas que permitam um retorno da ordem, da previsibilidade, da segurança e da unidade.

Na política brasileira hoje, a religião também é um recurso discursivo de pertencimento e recuperação da ordem utilizado pelos ultraconservadores, ou neoconservadores, para fazer avançar suas pautas nos espaços institucionais. Não é apenas sobre determinados grupos religiosos buscando impor a sua moral para a totalidade da sociedade via políticas de Estado, mas é, também, sobre as novas facetas do conservadorismo brasileiro, que usa a religião para se comunicar com as classes populares e criar vínculos simbólicos e afetivos com ele. Essa construção torna praticamente impossível de se dissociar moral religiosa, agenda política, demandas sociais e dilemas pessoais.

Ao mesmo tempo, a presença de lideranças religiosas no espaço público e na política tem uma enorme influência em moldar esse cenário e, hoje, as lideranças religiosas com força política e voz pública marcante são as de cunho ultraconservador. É um movimento duplo: o ser político que mobiliza o religioso e os líderes religiosos, hoje em sua maioria evangélicos, que usam o espaço da política institucional para impor a moral do seu segmento como agenda geral.

Apenas a partir de 2010, as pesquisas de opinião e de intenção de voto no Brasil começaram a destacar as clivagens com relação à identidade e pertencimento religioso.

Em 2008, por exemplo, pesquisa de intenção de voto sobre a sucessão presidencial depois de dois mandatos do presidente Lula não media identidade religiosa dos respondentes. Não era uma questão para entender o perfil do eleitor naquele momento. Não era, ainda.

Em pleno ano eleitoral, em 2010, para o Datafolha, por exemplo, foi mais importante entender como votariam leitores do jornal Folha de S.Paulo do que identificar o perfil do voto de determinados segmentos religiosos. A pesquisa feita às vésperas do 1º turno não destacava o pertencimento religioso nas intenções de voto; já a do segundo turno sim, quando explodiu o debate sobre a questão do aborto e isso virou tema central das campanhas entre os dois candidatos — Dilma Rousseff (PT) e José Serra (PSDB). Desde então, e apenas a partir de então, os institutos de pesquisa de opinião passaram a destacar a religião nas suas análises.

Nada disso acontece por acaso. Foi o período de reações ao III Programa Nacional de Direitos Humanos (o PNDH-3), apresentado pelo governo Lula 2. Reações que levam a uma articulação sem precedentes entre católicos e evangélicos no Congresso Nacional pela “defesa da família”, com o foco principal no combate à descriminalização do aborto e ao reconhecimento de direitos da população LGBTQIA+. Foram temas que dominaram a disputa eleitoral para a Presidência naquele momento e que não sairiam do debate público e da pauta central do ativismo político de grupos religiosos.

Nas eleições nacionais seguintes, essa maior aliança entre parlamentares religiosos e não religiosos ultraconservadores expandiu-se para outras agendas como educação e segurança pública, como vimos nitidamente em 2018. Uma espécie de nova agenda religiosa-conservadora mais radicalizada que viria a ser um pilar do bolsonarismo e da aliança bolsonarismo-Bíblia vista hoje no Congresso Nacional.

Uma possível “direita cristã versão brasileira” é um vetor importante de uma radicalização política em um dos polos

O deslocamento, portanto, de parte significativa do eleitorado brasileiro para a extrema direita já vinha sendo observado em eleições anteriores, mas se aprofundou nas eleições de 2018. Uma possível “direita cristã versão brasileira” — versão brasileira porque aqui conta com aliados não necessariamente cristãos e muitas vezes nada religiosos – é um vetor importante de uma radicalização política em um dos polos. Uma radicalização de caráter intolerante, excludente e que visa impor a sua moral a toda a sociedade.

Assim como nos EUA, mais do que um problema relacionado à polarização, portanto, estamos diante de um providencial e perigoso uso fundamentalista da religião como arma política – e esse uso se dá num dos pólos, uma extrema direita que se aferra à Bíblia, ao ultraconservadorismo e aos cristãos como forma de demonização do outro e de radicalização da política.

Por um lado, não sabemos explicar todas as camadas por trás de uma ultradireita que aumentou sua base social e também ocupa o espaço público para vocalizar suas demandas e visões de mundo. Por outro, não queremos aceitar a ideia de que essas forças políticas e ideológicas que ganharam as ruas não sairão de lá tão cedo, assim como as estruturas clássicas da esquerda de articulação política e intermediação social nos territórios não são mais as que cumprem esse papel com a mesma credibilidade e apelo popular.


*Ana Carolina Evangelista é cientista política com mestrado em relações internacionais pela PUC-SP e em gestão pública pela FGV-SP. É pesquisadora e diretora-executiva do Instituto de Estudos da Religião (Iser). Faz cobertura eleitoral desde 2018 com colunas na 'piauí' e no 'UOL'.

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